Ao completar três anos de seu governo, Evo Morales e o Movimento ao Socialismo (MAS) conseguiram uma nova Constituição para Bolívia. O “sim” à Constituição obteve 61% dos votos. Porém a oposição burguesa dos prefeitos e cívicos da chamada Meia Lua foi, mais uma vez, majoritária em seus departamentos e chegaram a crescer eleitoralmente.

O referendo constitucional de 25 de janeiro teve participação recorde de 90% da população, superando os 83% no referendo revocatório de agosto de 2008. Isso se explica pelas expectativas das massas camponesas, indígenas e trabalhadoras de que suas vidas poderiam mudar com uma nova Constituição.

Embaladas pela promessa, durante os três anos do governo Morales, as massas lutaram contra os obstáculos impostos pela direita à formação da Assembleia Constituinte. Por isso o levante da ultradireita da Meia Lua, região que congrega os departamentos mais ricos do país, em setembro do ano passado. Nessas lutas, tombaram vários camponeses, como as vítimas do massacre de Pando.

Mesmo assim, em outubro, os camponeses, indígenas e trabalhadores urbanos se levantaram nacionalmente, marchando até Santa Cruz – foco das ações reacionárias – cercando a cidade durante alguns dias. Mais uma vez, Evo e o MAS pediram calma às massas. A saída apresentada por Morales para frear o processo revolucionário foi a formação de uma grande mesa de diálogo nacional com os supostos golpistas, com o objetivo de refazer a proposta de Constituição que havia sido aprovada pela Assembleia Constituinte.

A grande traição de Evo
A Constituição que foi ao referendo é filha legítima dessa mesa de diálogo. Seu conteúdo incorporou as principais exigências da burguesia da Meia Lua sobre a autonomia departamental, ou seja, de maior controle sobre os recursos naturais em suas regiões.

Os atores desse grande acordo foram o governo e a escória dos partidos tradicionais. Uma comissão secreta de parlamentares do MAS, PODEMOS, UM e MNR (partidos burgueses) alterou mais de 150 artigos de um total de 411 do texto aprovado pela Assembléia. O retrocesso foi gigantesco.

Sobre a questão fundiária, o texto valida os principais interesses econômicos da burguesia em detrimento dos camponeses pobres. O artigo 315 legaliza a grande propriedade da terra e prevê que poderão existir grandes empresas agrícolas: cada sócio terá direito a 5 mil hectares.

Há uma legalização do latifúndio, já que a consulta sobre a extensão máxima de 5 mil ou 10 mil hectares não tem validade para as terras compradas antes do dia 25 de janeiro. A família de Branco Marincovich, expoentes do latifúndio no país, poderá dormir tranqüila, pois suas fazendas de soja não estão ameaçadas.

Sobre os recursos naturais, há uma armadilha no texto aprovado. Enquanto Evo fala que a nova Constituição garante os recursos naturais sob o controle do povo boliviano, a verdade é que no artigo 351 diz: “O Estado, assumirá o controle e a direção sobre a exploração, industrialização, transporte e comercialização dos recursos naturais estratégicos através de entidades públicas, cooperativas ou comunitárias que poderão, por sua vez, contratar empresas privadas e constituir empresas mistas”. Além disso, o artigo transitório de número 7 propõe que “as concessões sobre recursos naturais deverão adequar-se aos direitos já adquiridos”, isto é, respeita os contratos assinados com as grandes multinacionais.

Sobre a água, é reconhecida como um direito fundamental para a vida e a soberania do povo (artigo 373). Contudo, se permitirá o gerenciamento por cooperativas e empresas mistas para ganhar o apoio das cooperativas de Santa Cruz.

A descentralização dos serviços públicos, uma orientação do Banco Mundial, está perfeitamente contemplada na nova Constituição pactuada: “O gerenciamento da educação e saúde passam a ser concorrências compartilhadas entre o Estado central e os departamentos” (artigo 299). Já não será função principal do Estado cuidar e pagar por estes serviços.

Mas os aspectos democráticos, de reconhecimento dos direitos indígenas não dariam um caráter progressivo à Constituição? É verdade que esta é a primeira constituição do país que reconhece os direitos indígenas, mas essa não é a essência do texto. Os direitos democráticos e a luta contra a opressão deve caminhar junto com uma mudança estrutural na economia.

O artigo 394 no texto original dizia: “O Estado reconhece, protege e garante a propriedade comunitária ou coletiva, que compreende o território indígena originário camponês, as comunidades interculturais originárias e das comunidades camponesas”. O acordo modificou esse artigo. Ficou assim: “Garantem-se os direitos legalmente adquiridos por proprietários particulares cujos prédios encontrem-se localizados no interior dos TCOs”.

Essa Constituição continua sendo burguesa. Mantém o capitalismo semicolonial e os interesses das multinacionais. Diante da crise econômica que golpeia aos trabalhadores, a Constituição não proíbe as demissões e ainda protege a propriedade privada dos ricos. A Constituição não garante nem a estabilidade trabalhista.

No artigo 49, diz: “proíbe-se a demissão injustificada”, mas não há nenhum castigo às empresas que despeçam. Enquanto um setor das bases e a Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB) pedem ao governo a nacionalização sem indenização das empresas que demitirem, a Constituição vai no sentido oposto: defende a propriedade privada dos empresários.

O voto pelo “não”
A Lucha Socialista, seção boliviana da LIT-QI, distribuiu uma declaração que dizia: “frente a uma Constituição pactuada com a direita e a oligarquia, vote ‘não´, em defesa da Agenda de Outubro”.

O voto de classe no “não” é para derrotar um projeto de uma Constituição burguesa, resultado do acordo entre o governo e a direita, completamente diferente do “não” proposto por alguns setores da direita. A partir de uma posição operária e revolucionária, não fazemos nenhuma unidade com a burguesia.

Seria um erro não alertar os trabalhadores sobre o real conteúdo desta Constituição pactuada com a direita. Era preciso denunciar o objetivo do governo de sepultar o processo revolucionário no país. Portanto, a Constituição pactuada devia ser derrotada com o voto “não”.