Propaganda da Coca Cola em Moscou

“O artigo a seguir é o primeiro da série “Socialismo no Século XXI”, que abordará os principais temas do Seminário da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI), que ocorreu no Brasil, em julho. Em uma iniciativa inédita, cerca de 70 militantes, de 12 organizações de diversos países, entre elas o PSTU, retomaram debates colocados pela queda do muro. São polêmicas que marcaram profundamente a esquerda revolucionária nestes 15 anos, dividindo-a muitas vezes, e reunificando-a em tantas outras.

Durante muitas décadas, os países do Leste Europeu, a China, Cuba e,principalmente, a ex-URSS foram dirigidos por burocracias, que dividiam o sistema econômico mundial com o imperialismo e defendiam que era possível alcançar o socialismo em um só país. No fim da década de 80, um furacão sacudiu esses países, derrubando os regimes stalinistas e os partidos comunistas. Para boa parte dos ativistas, a impressão – incentivada pela reação imperialista – foi a de que a ação das massas foi responsável pela volta do mercado e que, diante disso, só caberia pensar no socialismo em um horizonte distante.

Ao contrário, acreditamos que a burocracia teve um papel de agente da restauração.
Este primeiro artigo da série aborda alguns temas-chaves. Qual era o caráter desse Estado? Qual a diferença com os dos países do Leste, surgidos com o fim da guerra? Quando exatamente o capitalismo voltou à URSS? Quais os fatos determinantes para a restauração? Qual o papel que cumpriu a burocracia, em suas diversas variantes?

O seminário da LIT analisou ainda o caráter da burocracia e seu papel durante os diversos períodos da história, como no pós-guerra, e debateu os fatores que permitiram a essa conquistar o poder no Estado operário e eliminar seus opositores, como Leon Trostky. Assim, construiu um poderoso aparato stalinista, com o qual traiu dezenas de revoluções, algumas decisivas, como nos países centrais da Europa. Esse aparato ruiu. Hoje o mundo assiste a novas revoluções, como na Bolívia e em outros países da América Latina. Estes debates são fundamentais para compreender o mundo em que vivemos e atualizar o programa para a revolução socialista“.

O dirigente do Secretariado Unificado da IV Internacional, Pierre Frank, dizia em 1977 que era impossível que o imperialismo conseguisse restaurar o capitalismo na ex-URSS: “a perspectiva de uma restauração do capitalismo na União Soviética está descartada”, e, além do mais, afirmava que “na União Soviética já quase não existem forças sociais ou políticas significativas a favor da restauração do capitalismo”.

Anos mais tarde, em 1989, ou seja, em pleno processo de restauração na ex-URSS, Ernest Mandel, o mais importante dirigente dessa corrente, explicava o porquê desse raciocínio: “crer que Gorbachev ou a ala ‘liberal’ da burocracia de conjunto querem ou quiseram restaurar o capitalismo é deixar-se enganar completamente sobre a natureza, as bases e a amplitude de seus privilégios e de seu poder”.

Para esses dirigentes, a burocracia governante da ex-URSS não era uma força social restauracionista. Para eles, a burocracia precisava do Estado operário para defender seus privilégios e isso fazia com que ela cumprisse um papel progressivo. Daí defenderem a idéia de que a burocracia tinha um “duplo caráter”.

Pierre Frank e sobretudo Mandel foram vistos durante muitos anos como os principais porta-vozes das posições de Trotsky. Por isso, foi inevitável que um importante setor da esquerda – ao ver que o capitalismo estava sendo restaurado e, além disso, ao ver que era a burocracia que estava à frente da restauração – tivesse chegado à conclusão que Trotsky havia se equivocado.

Trotsky sempre defendeu o contrário do que diziam esses dirigentes. Para ele, se a burocracia se mantinha no poder (o que ocorreu), a restauração do capitalismo não só era possível como inevitável.

“O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, convertendo-se cada vez mais no órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrotará as novas formas de propriedade e voltará a afundar o país no capitalismo, ou a classe operária derrotará a burocracia e abrirá o caminho para o socialismo”.

Para Mandel, a burocracia, para defender seus interesses, precisava do Estado operário. Para Trotsky, isso era válido apenas em uma primeira fase. Para ele, do ponto de vista histórico, a burocracia buscaria perpetuar seus privilégios e, por isso, precisava restaurar o capitalismo. Vejamos como aborda esse tema justamente na Revolução Traída: “Admitamos que nem um partido revolucionário, nem um partido contra-revolucionário se apoderem do poder e que é a burocracia a que se mantém à frente do poder (o que ocorreu em todos os ex-Estados operários). A evolução das relações sociais não cessa (…) ela (a burocracia) restabeleceu as patentes e as condecorações; será, então, inevitavelmente necessário que busque apoio nas relações de propriedade. Provavelmente se poderá argumentar que pouco importa ao funcionário a forma de propriedade da qual retira seus lucros. Mas isso significa ignorar a instabilidade dos direitos da burocracia e o problema de sua descendência (…) Os privilégios que não se podem legar a seus descendentes perdem a metade de seu valor. O direito de legar é inseparável do direito de propriedade. Não basta ser diretor de um truste, é necessário ser acionista”. Mais claro impossível. Para Trotsky, a burocracia precisava não só manter seus privilégios, mas perpetuá-los, e, por isso, termina essa frase dizendo: “não basta ser diretor” (não basta ser burocrata), “é necessário ser acionista” (é necessário ser burguês).

Nahuel Moreno, seguindo o pensamento de Trotsky, mais de uma vez combateu as posições de Mandel e seus seguidores. No livro A Ditadura Revolucionária do Proletariado, polemizando com a resolução do SU Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado, dizia em 1978: “amanhã, ou em dez ou vinte anos, há perigo de restauração? E questionava o SU: Para o SU, as futuras e atuais ditaduras operárias não terão que enfrentar nenhum inimigo importante, nem o imperialismo, nem a restauração capitalista. E agregava: “o Plano Carter é a política do imperialismo a serviço da restauração. Seu plano econômico, político e militar assenta-se na demagógica campanha pelos direitos humanos (…) Essa propaganda democratista do imperialismo se assenta no justo movimento democrático que ocorre nos Estados operários, como conseqüência do caráter totalitário e reacionário de seus atuais governos (…) o trotskismo tem a obrigação de levar clareza às massas (…) de denunciar a nova estratégia contra-revolucionária do imperialismo e alertar sobre o conseqüente perigo de restauração capitalista nos Estados operários. Sobre a burocracia, dizia: “a burguesia restauracionista não será a velha burguesia, e sim a ampla maioria dos tecnocratas, a burocracia, a aristocracia operária e koljoziana”.

Nesse longo debate entre as correntes principistas e revisionistas do trotskismo, a história acabou por dar razão às primeiras. A burocracia não foi derrubada e levou os ex-Estados operários à restauração do capitalismo. No entanto, é necessário dizer que as correntes principistas, que souberam prever a restauração, não foram capazes de identificá-la quando ela começou a ser concretizada, tanto na China (a partir de 1978) como na ex-URSS (a partir de 1986). Isso também nos obriga a dar uma explicação.

A burguesia e a tomada do poder

A restauração do capitalismo é, em certo sentido, um acontecimento de signo oposto à expropriação da burguesia e à construção dos Estados operários.

A expropriação da burguesia e a construção de um Estado operário significa uma revolução na estrutura econômica, mas essa revolução não começa na estrutura, e sim na superestrutura. O mesmo ocorre com a restauração do capitalismo, só que ao contrário. A restauração significa uma contra-revolução na estrutura, que começa na superestrutura.

Não pode haver expropriação da burguesia e construção de um Estado operário se primeiro a classe operária não tomar o poder. Da mesma forma, não pode haver, em um Estado operário, restauração do capitalismo sem que primeiro a burguesia tenha recuperado o poder.

Quando os bolcheviques tomaram o poder, não começaram por expropriar a burguesia. O monopólio do comércio exterior, a planificação econômica e a expropriação da burguesia, ou seja, a construção desse Estado operário foi um processo que ocorreu durante vários anos. Mas esse processo, ninguém questiona, teve início em outubro de 1917. Essa é a data que divide águas entre a velha e a nova ordem.

Com a restauração do capitalismo, ocorreu o mesmo, só que no sentido contrário. Houve um momento em que a burguesia tomou o poder (ou melhor, recuperou o poder) e a partir daí iniciou o desmonte dos restos do Estado operário. Acabou com o monopólio do comércio exterior, com a planificação econômica e com a propriedade estatal das empresas e das terras. Tudo isso foi ocorrendo durante muitos anos, e mesmo continua até hoje, mas há um momento que é qualitativo, que também divide águas, e esse momento é fevereiro-março de 1986.

1986: o capitalismo mundial recupera a URSS
Em março de 1985, Mijail Gorbachev foi eleito para o cargo de Secretário-Geral do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). Daí lançou, em âmbito nacional e internacional, a Perestroika (reorganização) e a Glasnost (transparência).

O texto da Perestroika estava repleto de frases confusas e intencionalmente ambíguas. Mas o tempo encarregou-se de demonstrar que o verdadeiro conteúdo desse projeto não era outro que tentar sair da decadência econômica por via da restauração do capitalismo. Quanto à Glasnost, era uma tentativa de fazer algumas reformas políticas no marco da manutenção do regime ditatorial de partido único.

Alexander Yákovlev, que foi o cérebro da Perestroika, não hesitou em confessar os verdadeiros objetivos da mesma: “se se deixasse que persistissem os métodos com os quais funcionava a economia soviética na época (…) nosso país se encontraria relegado a ser uma potência econômica de segunda ordem e no fim do século, talvez decaísse ao nível dos países pobres do Terceiro Mundo. Apesar de não termos avançado muito nessa memória, indicamos, no entanto, algumas diretrizes que exigiam uma mudança drástica do sistema econômico. Propúnhamos um modelo de desenvolvimento que daria às empresas autonomia financeira e liberdade de iniciativa a fim de romper o cerco centralizador ou reduzi-lo ao mínimo possível (…) Por outro lado, favorecíamos a organização de empresas mistas, e não só em colaboração com os países socialistas e os países do Terceiro Mundo, mas também com os países ocidentais. Para nós, era a única possibilidade de que a URSS participasse da divisão internacional do trabalho, nos intercâmbios de capital, de inversões. A liberdade econômica é inseparável da liberdade política (…) Era necessário abolir o monopólio da propriedade estatal (…) É necessário introduzir a economia de mercado o quanto antes”.

A subida do “renovador” Gorbachev, que chegou ao cargo de Secretário-Geral do PCUS apoiado por Gromyko e a sinistra KGB, foi a demonstração de que a maioria da burocracia, diante dos reiterados fracassos econômicos, era sensível à proposta de Gorbachev de fazer mudanças radicais na economia, ou seja, restaurar o capitalismo.

Como não podia ser de outra forma, nesses anos, Gorbachev começou a ser visto como a “menina dos olhos” das grandes potências imperialistas, especialmente o governo Reagan, nos EUA. Esses projetos (a Perestroika e a Glasnost) eram a resultante quase pura, no âmbito da URSS, da ofensiva econômica com formas democráticas lançada pelo imperialismo norte-americano que denominamos reação democrática.

Durante todo o ano de 1985, Gorbachev, atuando como o representante da maioria da burocracia e do capitalismo internacional, limitou-se a fazer propaganda de seu projeto. Mas essa situação mudaria drasticamente a partir de 1986.

Em fevereiro-março desse ano, realizou-se o 270 Congresso do PCUS que votou um novo Comitê Central. Nunca, nos últimos 25 anos, ocorrera uma mudança tão profunda. Foram eleitos 97 novos quadros e 22 suplentes tiveram direito a voto. Na prática, entraram 119 novos dirigentes (da equipe do “renovador”) em um CC de 307 membros, no qual Gorbachev já tinha um peso importante.

A partir desse momento, Gorbachev sentiu-se suficientemente forte para passar da propaganda à ação. Em poucos meses, o parlamento, seguindo as ordens do CC, votou uma série de leis que tinham como objetivo desmontar o que sobrava do Estado operário e restaurar o capitalismo. Em outras palavras, a partir de fevereiro de 1986, por intermédio de Gorbachev e seu pessoal, a burguesia recuperou o poder na URSS.

Rumo à restauração
Já em agosto de 1986, ou seja, apenas cinco meses depois do 270 Congresso do PCUS, o governo autoriza a constituição de empresas conjuntas com capital estrangeiro; em setembro, começa a ser liberado o trabalho privado, mediante a Lei sobre atividades individuais. Em junho de 1987, aprova-se a Lei de empresas do Estado, com a qual se acaba com as subvenções do Estado para as empresas, ao mesmo tempo que as autoriza a comercializar livremente com o exterior. Dessa forma, deu-se o golpe mortal na planificação econômica central e no monopólio do comércio exterior. Em maio de 1988, aprova-se a Lei sobre cooperativas, que facilita o surgimento de um grande número de empresas privadas. Em dezembro de 1988, é aprovado um decreto que legaliza a venda de casas. Nesse mesmo ano, aprova-se uma lei que liberaliza a atividade bancária. Nesse período, dissolve-se o Ministério do Comércio Exterior (que era o responsável pelo monopólio do comércio exterior). Em 1990, em âmbito da Federação Russa, vota-se a Lei sobre atividades empresariais, com a qual se libera totalmente a atuação de todo tipo de empresas capitalistas.

Como resultado de todas essas medidas, já em 1989, há 200 mil cooperativas e quase cinco milhões de associados. Em 1994, 50% das empresas já estavam privatizadas e, dessa forma, a produção não-estatal chegava a quase 60% do PIB.

Em várias oportunidades, nos perguntaram: como é possível que em 1986 a burguesia haja retomado o poder se nesse momento na ex-URSS a burguesia não existia como classe? Esse tipo de pergunta leva embutidas três incompreensões. Em primeiro lugar, é preciso entender que a burguesia é uma classe internacional; em segundo lugar, que, na maioria dos casos, a burguesia não governa de forma direta, e sim por meio de seus representantes pequeno-burgueses; em terceiro lugar, é preciso entender que, apesar de na URSS não existir uma burguesia como classe, existia um enorme setor parasitário (a burocracia), com um nível de vida similar ao da burguesia e com íntimas relações com ela, que eram aspirantes a burgueses. Gorbachev era o representante desse setor social e o agente pequeno-burguês do imperialismo, e, como tal, era a cabeça mais visível de um novo Estado que se propunha restaurar o capitalismo.

Post author
Publication Date