Centenas de trabalhadores foram perseguidos, demitidos e até torturados

Documento final da Comissão Nacional da Verdade traz relato de violações cometidas pelo Estado brasileiro

O documento final da Comissão Nacional da Verdade, em suas mais de três mil páginas, traz o relato das violações cometidas pelo Estado brasileiro, entre os anos 1946 e 1988, especialmente após o golpe militar de 1964. São testemunhos de torturas, estupros, assassinatos, sequestros, desaparecimentos, perseguições. O trabalho traz um pouco de luz sobre um dos períodos mais tristes da história do país.
 
Uma das principais descobertas foi a existência do Centro Comunitário de Segurança do Vale do Paraíba (Cecose). Fruto da contribuição do Grupo de Pesquisa da Comissão da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região/CSP-Conlutas, a descoberta comprova a relação do empresariado com a ditadura militar. Este trecho pode ser encontrado no texto 2 do segundo volume, na página 64 do Relatório Final da CNV.
 
O Cecose era um organismo de colaboração que visava garantir os interesses comuns ao segmento empresarial e ao Estado, como a manutenção da segurança patrimonial e política das fábricas e da área estratégica do Vale do Paraíba. Conter e monitorar o movimento operário e suas organizações, por meio do compartilhamento de informações sobre a situação das fábricas, do movimento operário, sindicatos e partidos de esquerda; além de organizar a repressão ao movimento operário, eram suas tarefas.
 
O Grupo de Pesquisa da Comissão da Verdade dos Metalúrgicos de São José dos Campos  identificou a participação de, pelo menos, 25 empresas nas reuniões do Cecose, sendo 14 transnacionais (Caterpillar, Cebrace, Embrape, Ericson, FiEl, Ford, General Motors, Johnson & Johnson, Kodak, National, Phillips, Rhodia e Volkswagen), oito nacionais (Avibras, Confab, Engesa, FNV, Mecânica Pesada, Tecelagem Parayba, Vibasa e Villares) e quatro estatais (Cosipa, Embraer, Petrobras e Telesp), não estando descartada a  possibilidade de que mais empresas tenham participado das reuniões.
 
Fruto dessa relação, centenas de trabalhadores foram perseguidos, demitidos e torturados.
 
Um dos fatores determinantes que levou ao golpe de 1964 foi a polarização de projetos político-econômicos. De um lado, empresários e militares, que almejavam aumentar a produtividade e a concentração de riquezas. De outro, os trabalhadores, cujo movimento estava em ascenso desde 1950.
 
Com o golpe, iniciou-se uma política econômica que produziu rapidamente maior acumulação do capital a partir da superexploração da força de trabalho, sendo o metalúrgico (principal setor da indústria brasileira) o mais prejudicado. Aumentou o controle estatal sobre as organizações sindicais, exigindo que os sindicatos se tornassem órgãos de colaboração de classe. A classe trabalhadora foi, portanto, o alvo estratégico primordial da repressão, da política econômica e das graves violações de direitos praticados por civis e militares. As organizações dos trabalhadores passaram ser consideradas “subversivas” e “inimigas”. A repressão dentro e fora das fábricas passou a ter a legitimidade da defesa da segurança e do desenvolvimento nacional.
 
A apresentação do relatório final da Comissão da Verdade começou com um discurso emocionado da presidente Dilma Rousseff, porém, em nenhum momento se falou em condenações. Diferentemente da Argentina e do Chile, que instauraram Comissões da Verdade logo após o fim da Ditadura Civil Militar, a CNV brasileira foi instaurada quase 30 anos depois do fim do regime militar.
 
É necessário reconhecer a importância do trabalho realizado pela CNV, porém, é necessário muito mais do que resgatar a memória dos crimes cometidos. O lema “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” apenas terá validade se o Brasil seguir o exemplo de países como Argentina e Chile, que prenderam aqueles que torturaram e que colaboraram com o regime militar, acabando com a impunidade em relação aos crimes cometidos contra a humanidade.
 
O relatório final da CNV identificou 377 autores de violações aos direitos humanos, dentre eles presidentes, tenentes, generais, diplomatas, médicos legistas, policiais militares e civis, acusados de delitos como mortes, torturas estupros e desaparecimentos de corpos.
 
É necessária a imediata abertura dos arquivos militares para que seja possível seguir a apuração destes crimes. É necessária a revisão da Lei de Anistia que beneficia não apenas as vítimas da ditadura, mas também os torturadores.
 
É necessário, ainda, que as empresas que financiaram a ditadura sejam obrigadas a criar um fundo para a reparação financeira aos trabalhadores perseguidos. Que estas empresas sejam impedidas de continuar monitorando os trabalhadores e realizando demissões políticas, filmando assembleias, utilizando assédio moral por meio de supervisores e diretores de recursos humanos.
 
Além disso, é urgente a desmilitarização da Polícia Militar, um resquício da ditadura que continua reprimindo as mobilizações dos trabalhadores e gerando o genocídio da juventude negra nas periferias brasileiras.
 
Porém sabemos que as mesmas empresas que apoiaram o regime militar continuam financiando as campanhas eleitorais dos principais partidos brasileiros. Por isso, não podemos esperar que o governo Dilma realize esta punição. Não podemos esperar também do Congresso Nacional, que é dominado pelos grandes empresários.
 
É necessária uma ampla mobilização da classe trabalhadora, que ela se levante e vá às ruas exigir do governo Dilma punição dos torturadores e das empresas que colaboraram com a repressão. 
 
Como falou o dirigente da Executiva Nacional da CSP-Conlutas Luiz Carlos Prates, o Mancha, na solenidade de entrega do relatório do Grupo de Trabalho, os trabalhadores não lutaram contra a ditadura militar apenas para conseguirem votar. Sua luta era para que os patrões não pudessem mais explorar os trabalhadores. 
 
“O sonho da revolução socialista ainda não foi alcançado e a grande homenagem que podemos fazer aos trabalhadores que tombaram lutando por uma nova sociedade é resgatar o sonho de que a classe operária alcance o poder”, afirmou.
 
 
* Amanda Menconi é mestranda em Ciências Sociais e pesquisadora da Comissão da Verdade dos Metalúrgicos de São José dos Campos e região.