Nas últimas semanas, o povo haitiano saiu às ruas para protestar contra o aumento dos preços dos alimentos e contra a presença das tropas da ONU – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).

De fevereiro de 2007 a fevereiro deste ano, o arroz subiu 24% e o governo haitiano foi obrigado a suspender as exportações do produto. A farinha de trigo subiu 31,2% no mesmo período, e o pão, 27%.

Resultado da fome sofrida pelos haitianos, várias manifestações contra o aumento dos preços dos alimentos acabaram em mortos e feridos pela violenta polícia local e pelos soldados da ONU, muitos deles brasileiros. As manifestações chegaram, inclusive, a causar a demissão do primeiro ministro, Jacques Edouard Aléxis.

Para falar sobre as mobilizações que sacudiram o país, o Opinião Socialista entrevistou Didier Dominique, professor e sindicalista haitiano do movimento Batalha Operária (Batay Ouvriye), organização sindical e popular do país caribenho, que esteve recentemente no Brasil.

Na entrevista, Didier relata o drama da fome que o povo haitiano enfrenta. Muitos são obrigados a comer biscoitos de argila porque não têm comida. Além de apresentar um relato vivo das manifestações, o sindicalista também denuncia as ações repressivas da Minustah, que mataram pelo menos seis haitianos e semearam o terror nos bairros populares de Porto Príncipe, capital do país. Confira abaixo os principais temas abordados na entrevista.

Salário de Fome
“O que ocorreu no Haiti recentemente é resultado de uma política cruel de exploração extrema da mão de obra barata haitiana, das fábricas maquiladoras, das multinacionais instaladas nas zonas francas.

O Haiti é um país muito afetado pela pobreza. O projeto da burguesia de baratear a mão de obra levou a uma contradição imensa.

O recente aumento de preços do petróleo, do transporte e do arroz, nossa comida básica, se contrasta com o menor salário de todo o continente americano. O salário mínimo do país é de US$ 1,75 por dia. Eu acabo de vir de um encontro latino-americano e notei que os salários mais baixos do continente são de 100 ou 200 dólares por mês, enquanto no Haiti é de 40 dólares.

Nós, do Batay Ouvriye, fizemos mobilizações pela necessidade de aumentar os salários e corrigi-los de acordo com a inflação. Há cinco anos o salário mínimo não é reajustado. Defendemos um salário de 450 gurdes (US$ 90).

Além do aumento dos preços dos alimentos, também enfrentamos o problema do transporte. Há cinco anos, o trabalhador pegava um ônibus para ir ao trabalho. Hoje são no mínimo três. Isso é resultado da forte migração para as cidades.

O próprio governo, por meio do Ministério do Trabalho, calculou uma cesta básica de 300 gurdes (US$ 60). Isso está escrito em um documento oficial. Mas a burguesia disse que não podia aumentar o salário em mais de 3,5 gurdes. Isso é uma coisa incrível, os trabalhadores não podiam acreditar. Por isso, saímos às ruas em mobilizações operárias, em vários pontos de Porto Príncipe e em outras cidades.
Nosso propósito era levantar o ânimo e fortalecer os protestos. Realizamos três semanas de mobilizações muito intensas, nos bairros e nas fábricas”.

Comida Cara
“Enquanto nos mobilizávamos por salário, de repente veio o aumento dos preços dos alimentos e do transporte. Uma pequena marmita de arroz, que era vendida por 22 gurdes, passou a custar 30 gurdes. O transporte, que era de 7 a 8 gurdes, subiu para 15 gurdes. Lançamos um panfleto dizendo que só a mobilização geral pode parar essa situação.

Ocorreram manifestações nas cidades de Gonaives, Petit-Goave e Les Cayes, no sul do Haiti. Grupos partidários de Aristides, ligados ao seu partido, o Lavalas, chamaram as mobilizações em Porto Príncipe. Mas logo perderam o controle e o processo transbordou. Todos começaram a sair às ruas. No primeiro dia, o povo foi para a frente dos ministérios. No segundo dia, a população levantou barricadas. As manifestações seguiram no terceiro, quarto e quinto dia. Enquanto isso, René Préval (presidente do Haiti) não dizia nada. Disse apenas que eram bandidos”.

Biscoito de argila
“Quem ganha 70 gurdes não come nada no Haiti. Muitos não comem mais a refeição do meio-dia. Para comer, o povo tem feito biscoitos e pão de argila, isto é, de terra! O problema hoje é comer. O povo não almoça e ainda é obrigado a comer terra”.

Derrubando os portões do Palácio
“Préval disse que também sofria com o alto custo de vida. O que é, para nós, uma piada de mau gosto. Há três meses, ele disse ainda que participaria de uma mobilização contra o custo de vida que passasse pelo Palácio.

Durante os protestos, o povo foi até o Palácio do governo. Quando o povo chegou em frente ao Palácio, muitos disseram: ‘Préval, nós viemos buscá-lo’. Com fome, a multidão derrubou os portões do Palácio Nacional. O povo só não entrou no prédio porque ficou surpreso com suas próprias ações e não sabia o que fazer.
Em seguida, chegou a Minustah e começou a reprimir a manifestação. Préval dever ter ficado muito grato, pois salvaram a sua vida”.

Terror da Minustah
“Em Porto Príncipe, a Minustah respondeu aos protestos com bloqueios de ruas. Em seguida, lançaram gás lacrimogêneo, dispararam balas de borracha e, depois, balas de verdade, matando e ferindo pessoas. O povo começou a atirar pedras contra a Minustah e os manifestantes começaram a gritar ‘Fora a Minustah!’

Alguns haitianos, que também estavam armados, começaram a disparar e chegaram a matar um soldado do Senegal, que, aliás, tinha queimado um mercado com outros soldados.

Após a manifestação no Palácio Nacional, a Minustah começou a entrar nos bairros populares para aterrorizar a população. O povo ainda queria sair para protestar. Mas não era permitida a concentração de mais de três ou quatro pessoas nas ruas.

Para mim, as ações da Minustah são mais do que repressão. É terror. Alguns ativistas da Batay Ouvriye relatam que tiveram que se jogar no chão para não serem atingidos por disparos dos soldados. Com a repressão, as ruas ficaram vazias e o povo não saía de casa.

É por isso que agora a relação do povo com a Minustah é péssima. ‘Abaixo a Minustah. Abaixo a ocupação. Abaixo a miséria!’ é o que agora se ouve nas ruas”.

Pronunciamento do presidente
“Depois da repressão, Préval finalmente apareceu na TV para anunciar medidas. Nesse momento, o povo queria sair de novo às ruas, porque não estava de acordo com as medidas anunciadas. Préval não disse nada que pudesse solucionar o problema da fome. Disse apenas que a produção nacional deveria aumentar, ou seja, que a situação se resolveria em seis meses. Mas o povo não pode esperar. Préval se mostrou realmente irresponsável”.

Etanol
“Não acredito que seja viável para o Haiti o plano do Etanol proposto por Lula. Porque esse plano vai produzir ainda mais fome. Será produzida cana-de-açúcar para a produção de combustíveis e esse plano vai tomar ainda mais terras para o cultivo de cana, e não para comida. Ou seja, mais comida será importada e a soberania alimentar será cada vez mais ameaçada. O Haiti é muito pequeno e o plano do Etanol vai acabar com toda a produção de alimentos. Isso pode ser fatal para nós”.

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