Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

No final do ano passado, foi lançada a edição comemorativa dos álbuns Clube da Esquina 1 e 2 (1972 e 1978). Relançados numa belíssima edição restaurada e remixada sob a supervisão artística de Milton Nascimento, os discos são uma excelente oportunidade para conhecer ou reencontrar algumas das mais belas canções da música popular brasileira feitas nos últimos 30 anos.

Canções que marcaram época não só por suas belas letras, mas também por seus elaboradíssimos arranjos, que mesclavam influências tão distintas como os ritmos tradicionais das comunidades negras mineiras (como o jongo, as toadas e o congo), o cancioneiro latino-americano, a bossa nova, o samba, o rock e o jazz. Tudo isso sob a batuta de uma “molecada” (alguns deles ainda adolescentes, os mais velhos na faixa dos 20 anos) mergulhada na cultura mineira.

Jovens músicos, com distintos talentos e formação, como Milton, Beto Guedes, Lô e Márcio Borges, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, Vermelho, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Paulo Braga e Tavito, que, nos final dos anos 60, formaram “clube”, que apesar de nunca ter existido de fato, tornou-se um dos mais famosos de nossa história cultural.

Cavaleiros marginais

A história do tal “clube” começou cerca de dez anos antes do lançamento do primeiro disco e o nome surgiu devido à mãe dos irmãos Borges, que quase todas as noites era obrigada a repetir a mesma frase para quem procurasse por seus filhos: “Estão lá na esquina, cantando e tocando violão; estão naquele maldito clube da esquina”.

A esquina em questão era a da R. Divinópolis com a R. Paraisópolis, no bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte, próxima tanto da casa dos Borges quanto do apartamento para onde Milton Nascimento e o pianista Wagner Tiso haviam se mudado, em 1963, vindo de Três Pontas.

Era lá que os garotos se encontravam e fizeram suas primeiras apresentações. O palco era a calçada e os espectadores se “sentavam” em “mesas”, riscadas com giz no chão, as quais, vale lembrar, eram “vendidas” para os fãs da época.

A bronca da mãe de Márcio e Lô vinha da má fama que a turma de violeiros e cantores havia ganhado em parte da vizinhança e do fato que, o grupo, não poucas vezes, foi disperso pelas constantes rondas policiais que, nos anos de chumbo, não tinham simpatia alguma por qualquer tipo de agrupamento “suspeito”.

O que ficou para a História, no entanto, foi o fato de que naquela esquina, em meio a discussões políticas e animadas conversas regadas à cerveja e caipirinhas, brotou, em 1964, a parceria entre Milton e Márcio Borges, letrista das primeiras músicas “Novena”, “Gira, girou” e “Crença” consagradas na voz do cantor negro, que já fazia certo sucesso “bares da vida”, em BH.

Nessa mesma época, os ainda adolescentes Lô Borges e Beto Guedes montaram a banda The Beavers, fortemente influenciada pelo som dos Beatles. Nos anos seguintes, a carreira de Milton Nascimento ganhou um forte impulso, fundamentalmente devido seu sucesso nos festivais promovidos pelas emissoras de TV. Em 1966, “Cidade vazia” (de Baden Powell e Lula Freire) ficou em quarto lugar no Festival da Excelsior.

Em 67, três de suas músicas foram classificadas no II Festival Internacional da Canção: Travessia (primeira parceria com Fernando Brant), em segundo lugar; Morro Velho, em sétimo e Maria, minha fé, que ficou entre as 15 finalistas. No mesmo período seu talento como compositor foi consagrado quando Elis Regina gravou a belíssima Canção do sal.

Sucessos à parte, o “Clube” continuava a crescer, sempre assimilando novas influências. Flávio Venturini entrou com seus arranjos e composições poéticas; Tavinho Moura apresentou ao grupo as canções folclóricas mineiras (que, depois, Milton gravaria no disco Geraes) e o violinista Toninho Horta contribuiu com o swing do jazz nas composições do grupo.

É importante lembrar que tudo isto estava ocorrendo no mesmo momento em que a ditadura militar recém instalada fechava o cerco sobre os movimentos sociais e atacava ferozmente toda e qualquer forma de liberdade e, por isso mesmo, em muitos sentidos, o “Clube da Esquina” pode ser considerado uma expressão daquilo que estava ocorrendo nas margens da sociedade.

Primeiro do ponto de vista político. Num momento em que os militares tentavam calar e alienar a sociedade, os jovens mineiros ousaram cantar a liberdade, o prazer de viver, apesar de todos os obstáculos e optaram por abordar, mesmo que metaforicamente, temas políticos e sociais, indo, inclusive, na contracorrente das melosas canções românticas ou da despolitizada onda da “jovem-guarda”, que ganhavam espaço na época.

Além disso, não é de menor importância que o grupo não só tenha contribuído para romper com o predomínio do eixo Rio-São Paulo na produção musical do período, mas também tenha feito uma proeza ainda maior: dobrar uma esquina de BH para cair no mundo.


Sou do mundo, sou Minas Gerais…

Apesar de não estar incluída nos álbuns do “clube”, a música Para Lennon e McCartney, composta em 1983, e particularmente seu último verso, em muitos sentidos traduz o espírito dos sons produzidos por aquela garotada. Além de ser uma das mais inspiradas criações dos beatlemaníacos irmãos Borges, Milton e Fernand Brant, a música é uma “homenagem-protesto”, em que os músicos, em uma espécie de carta a seus ídolos, lembravam: “Porque vocês não sabem / Do lixo ocidental / Não precisam mais temer / Não precisam da solidão / Todo dia é dia de viver…”. Uma referência à ainda dramática situação que diferenciava as democracias européias das ditaduras latino-americanas.

Esse espírito contestador e rebelde é uma das marcas do primeiro álbum “Clube da Esquina”, gravado em 1972. Na capa, dois garotos pobres, na beira de uma estrada, um negro e um branco, dão o tom para o que há nas 21 faixas do disco: uma mescla do que há de melhor em nossa sociedade, uma exaltação à nossa diversidade racial, cultural e musical.

E é exatamente isto que dá ao disco um caráter especial. Sua musicalidade é tão “mineira” quanto latino-americana; sua força emana tanto de sua “brasilidade” quanto de sua universalidade.

Recheado com preciosidades como O trem azul, Nada será como antes, Cravo e Canela, Um girassol da cor do seu cabelo, Paisagem na janela e Cais, o disco também marcou época pelo aquilo que ele carregava de sentimento latino-americano num momento em povos de vários países se digladiavam contra as nefastas ditaduras que ainda infestavam o continente. Expressões disto são as maravilhosas interpretações do bolero Dos cruces (de Carmelo Larrea Carricarte) e San Vicente (de Milton e Brant).

Esse sentido político que, hoje, talvez não possa ser sentido pelas gerações que não viveram naquele período, é ressaltado por um depoimento de Ronaldo Bastos, no site oficial da trupe: “A idéia básica nessa época principalmente através do Clube da Esquina  era mudar o mundo. Pelo menos nessa época, e eu acredito que seja a idéia básica da juventude, era mudar o mundo. Quer dizer, você começa a sentir que precisava mudar o mundo pela justiça social. Mas você ainda tem um mundo que é cordial e você começa a apostar em algumas idéias, alguns caminhos e, de repente, vem um negócio como a ditadura e fecha. (…) Nem toda música com metáforas  ‘exageradamente metafórica’ pra fugir da censura era boa. Mas a gente enxergava dessa maneira. (…) Acho que se você tem um obstáculo como esse, você parte pra cima. A não ser que você desista de viver, não tem outro jeito. Então, quando você tem a ditadura, você tem que também acordar de manhã e dizer: ‘Vamos à luta!’.”

Uma luta que, de forma alguma, era fácil. O fechamento imposto pela ditadura, para além de todos os criminosos estragos que havia cometido nas organizações de esquerda e nos movimentos sociais, também já havia afetado diretamente o cenário musical. O então excelente cantor e compositor (e, hoje, lamentável político) Gilberto Gil e seu amigo Caetano Veloso haviam sido presos e estavam no exílio em Londres. Chico Buarque havia saído do país antes que o mesmo ocorresse com ele. Os tempos eram, literalmente, sombrios. Poucos eram aqueles que conseguiam resistir e, de alguma forma, lutar.

No caso dos jovens mineiros, essa luta também teve outra característica de fundamental importância. O “Clube”, mesmo que involuntariamente, marcou o surgimento de um dos últimos movimentos musicais de peso na cultura nacional.

Gestado pouco depois da explosão Tropicalista (que, seguindo os ensinamentos dos modernistas brasileiros, praticou uma espécie de canibalismo cultural, deglutindo e reformulando influências diversas da música nacional e internacional), o ‘Clube da Esquina” pode ser considerado um dos últimos momentos em que a produção musical de um grupo teve caráter literalmente “coletivo” e, ainda mais importante, expressava uma determinada visão de mundo.

Transitando por ritmos tão distintos como o choro, as folias de reis, o rock dos anos 60 e 70, a bossa nova e o jazz, as músicas dos mineiros eram criadas e executadas num processo de intenso diálogo e troca dos diferentes talentos que ele agrupava.

Quase que invariavelmente, os músicos se revezavam em todos os instrumentos e funções do grupo. A utilização de “corais” e múltiplos vocalistas incorporava as distintas tradições e sonoridades. E cada um agregava seus gostos e preferências: Lô Borges e Beto Guedes traziam o rock na veia; Toninho Horta contribuía com o “swing” do jazz e da bossa nova; o também jazzístico Wagner Tiso acrescentava a sua formação clássica, típica dos pianistas e Milton envolvia tudo com sua melódica voz e suave mineirice.

“E sonhos não envelhecem…”

Seis anos depois do primeiro álbum, em 1978, foi lançado o Clube da Esquina 2, com 23 músicas, tornando-se, imediatamente, um dos mais importantes da MPB, ao reunir velhos e muitos dos novos amigos do “clube”, formando uma verdadeira constelação da música nacional, composta por gente que recém havia iniciado a carreira, como o grupo “14 bis”, até nomes consagrados, como Elis Regina (em O que Foi Feito Devera) e Chico Buarque.

Dele fazem parte clássicos como Nascente (Flávio Venturini e Murilo Antunes), Maria, Maria (Milton e Fernando Brant), Tanto (Beto Guedes e Ronaldo Bastos), Pão e Água (Lô Borges, Márcio Borges e Roger Motta), Olho d´Água (Paulo Jobim e Ronaldo Bastos), Mistérios (Joyce e Maurício Maestro), Meu Menino (Danilo Caymmi e Ana Terra) e Canção amiga, composta a partir de versos do mineiríssimo Carlos Drummond de Andrade.

No disco ainda foi reservado espaço para a música instrumental, para os poéticos arranjos de Francis Hime e César Camargo Mariano e, mais uma vez, para a latinidade e luta dos povos pela liberdade, principalmente através da música Cancíon por la Unidad Latinoamericana, do cubano Pablo Milanéz, cantada por Milton e Chico.

Embalado pela explosão cultural que marcou o “começo do fim” da ditadura militar, o disco não foi apenas uma “seqüência” da obra anterior. Mais do que uma volta ao passado, ele apontava para o futuro sonhado pela geração que lutou contra a ditadura: trazia esperança de um mundo melhor, no qual nada fosse como antes, onde os sonhos “adormecidos” pela longa ditadura pudessem ser resgatados e rejuvenescidos, algo evidente no verso (citado no intertítulo) de “Clube da Esquina 2: Pique Novo” que também serve de título para o livro lançado, em 1996, por Márcio Borges, resgatando a história da trupe.

Expressões daquilo que Ronaldo Bastos chamou de “a imaginação no poder”, os discos do “Clube da Esquina” e o movimento que eles representaram são essências não só pelo momento que eles representavam.

Acima de tudo, e principalmente hoje em dia, quando o neoliberalismo (que, diga-se de passagem, já contaminou muitos dos que viveram naquela época) incentiva o individualismo, prega a “morte dos sonhos e ideologias” e valoriza a mercantilização da cultura, em detrimento da criatividade e da liberdade da imaginação, ouvir as músicas do “Clube”, em grande medida, nos serve para recordar que, apesar de todos os pesares, pelas esquinas do mundo, ainda há e sempre haverá, muita gente que não abre mão da resistência. Muita gente que guarda “na boca da noite um gosto de sol”.