Trabalhadores e não os estudantes foram as maiores vítimas da repressão

Trabalhadores compõem a maior parte dos mortos da repressão no periódoO perfil dos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar, resultante do trabalho da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, demonstra o conteúdo de classe do sistema de poder militar que se instalou no Brasil depois do golpe de Estado de 1964. Isso se delineia com clareza à medida que conhecemos os números e os nomes das pessoas que são encobertas pelos torpes algarismos.

Efetivamente, é preciso sujeitar esses números e dados a uma exemplar análise de classe.

Em primeiro lugar, ainda que uma imensa massa documental permaneça ignorada e omitida, a escassez de documento já não é o fator impeditivo a não habilitar uma real e frutífera investigação do caráter de classe do regime de força. Polêmicas e controvérsias à parte, já é possível confirmar a tese de que a Ditadura Militar estava a serviço do capital contra o trabalho, da burguesia contra a classe trabalhadora, ainda que devam aparecer aqueles que, em nome da “complexidade das coisas”, não se furtarão de acusar essa tese de reducionista.

Ora, vejamos. Das 437 pessoas que constam nas categorias de “Mortos e Desaparecidos Políticos”, 248 (56% do total) eram trabalhadores. Tomando e destrinchando esse número funesto, notaremos que a maioria era constituída de operários (55 ao todo). Além do operariado, há forte presença de camponeses (40), professores (23), bancários (17) e jornalistas (12). Irredutivelmente, esse é o quadro.

Nessas condições, essas informações estão em flagrante contradição com pontos de vista firmados de que foram os estudantes os principais alvos da ditadura, ainda que estes tomados individualmente devam ser considerados os maiores mártires do militarismo: 125 entre mortos e desaparecidos. Mas quando somamos os diversos estratos da classe trabalhadora que foram presas fatais do poder ditatorial, contamos 258 vítimas ao todo.

Aqui, não se trata de saber quem é mais ou menos importante. Na memória dilacerada dos oprimidos, todos são semelhantemente importantes. Nesse ponto, o que é válido é estabelecer uma linha histórica fundamental do caráter de classe dos governos militares que, brutal e imerecidamente, dominaram a cena política brasileira por cerca de duas décadas. O que importa é entender o significado desse mapa simbólico, embebido de sangue, onde os alfinetes introduzidos na letal representação cartográfica exprimem majoritariamente a classe dos assalariados levada ao cadafalso.

Imaginem uma cor para cada segmento: azul para os estudantes; verde para os militares; cinza para os religiosos; vermelho para os trabalhadores. O resultado é que o vermelho predominaria ante os olhos atônitos. Medido por esse padrão, não há como ignorar o fato de que as FFAA em nenhum momento deixou de ser o governo da classe economicamente dominante.

Tais fatos se inscrevem em um quadro mais amplo em que constavam intervenções nos sindicatos, prisões de lideranças sindicais, proibição de greves, ríspida contenção salarial, superexploração da força de trabalho para além das condições conhecidas e penetração bárbara do capital internacional no Brasil. No contexto dessa lastimável situação enredou-se a dívida externa que, hoje, alcança o patamar de 422 bilhões de dólares.

Assim, começa a se desenhar com alguma nitidez a verdadeira natureza do militarismo triunfante. Falamos de natureza porque foi se cristalizando num modelo: o modo ditatorial de governar a serviço do capital.

Ressalvas à parte, ao se observar atentamente o que existe detrás dos números é que a ofensiva física contra os trabalhadores, traduzida em mortos e desaparecidos (igualmente mortos), era a expressão mais aterradora de um projeto de rendição do Brasil a um projeto global do imperialismo. A relativa autonomia das FFAA terminava em sua adesão a esse projeto das multinacionais e dos governos imperialistas. A função dos militares brasileiros foi cumprida tenazmente, uma vez que transformaram o país em um cativeiro ideológico à força de ferro e fogo. A presença de 35 militares na lista dos mortos e desaparecidos demonstra que a corporação militar, como qualquer outra instituição, não constitui uma unidade indissolúvel, mas também é atravessada por contradições e antagonismos. A igreja, que apoiou publicamente o golpe de Estado de primeiro de abril de 1964, perdeu três dos seus membros na longa noite da ditadura.

Dessa perspectiva, não há lugares para a omissão e a condescendência. Ao trabalhador, ao estudante, ao religioso, ao militar, a todos e a cada um, sem embargo, cabe a tarefa de exigir não apenas a apuração dos crimes da ditadura, mas, do mesmo modo, a punição exemplar de todos os envolvidos na prática de terrorismo de Estado.