Em 1958, o mundo respirava ares bastante singulares. Os treze anos que haviam passado desde a II Guerra Mundial tinham sido suficientes para espalhar um clima de reconstrução e renovação – o que se expressava na onda de otimismo que varria o planeta. Contudo, as amargas lembranças do confronto, bem como o profundo questionamento do sistema que levou o mundo à guerra e deu origem a uma onda “democratizante” ou revolucionária, ainda sacudiam o mundo.

E eram exatamente as contradições que brotavam desta situação que contaminavam corações e mentes com ares carregados ao mesmo tempo de esperanças, desejo de mudança e dúvidas sobre os rumos que as coisas tinham tomado no decorrer da agitadíssima primeira metade do século 20.

Em terras tupiniquins, a história não era diferente. O “presidente bossa-nova” Juscelino Kubitschek guiava o país para os ilusórios “anos dourados”, à custa do endividamento externo e do favorecimento das indústrias automobilísticas mundiais.

No campo cultural, contudo, as contradições nacionais não escapavam à sensibilidade dos artistas. 1958 foi o ano de lançamento de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, do surgimento das experiências poético-concretistas dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar. Também foi o ano em que Gianfrancesco Guarnieri levou aos palcos “Eles não usam black tie” e o Cinema Novo dava seus primeiros passos.

Foi nesse ambiente que a Bossa Nova nasceu e é somente neste contexto que é possível entender porque o movimento criado por João Gilberto, Vinicius de Moraes, Antonio Carlos Jobim e Luiz Bonfá, entre outros, se tornaria um dos mais importantes e influentes gêneros musicais, não só do Brasil, mas de todo o mundo.

‘Que coisa mais linda’
O termo “bossa” vinha de longe, do início da história do samba, em 1930, quando Noel Rosa compôs “Coisas nossas”, exaltando “o samba, a prontidão e outras bossas”. Nos anos seguintes, ele foi associado às falas improvisadas lançadas em meio às “paradinhas” típicas do samba de breque.

Mas foi somente no pós-guerra, quando uma nova geração de músicos mergulhou em ritmos associados à nova potência imperialista mundial, os Estados Unidos – em particular o jazz –, que a Bossa ganhou uma inicial maiúscula e tornou-se “nova”.
Essa relação com o jazz e também com o rock norte-americano, no entanto, está longe de ser um sintoma de “aculturação” ou assimilação das manifestações culturais da nova potência hegemônica. Pelo contrário.

Primeiro, porque os “bossa-novistas” foram buscar sua inspiração exatamente naquelas margens que tanto incomodavam a cultura e o sistema ianque: os bares apinhados de negros, que viviam em guetos miseráveis cercados de racismo por todos os lados, e a musicalidade rebelde da juventude branca, que havia aprendido a dançar como negros, para o espanto de seus pais, que sonhavam em vê-los desfrutando os sonhos consumistas do “american-way-of-life” (modo americano de vida).

Segundo, porque os fundadores da Bossa Nova tinham deglutido e assimilado muito mais do que as influências jazzísticas. A Bossa Nova, exatamente por ter sido fecundada nos bares e apartamentos da classe média carioca, também nasceu nas sombras dos morros e seus ritmos e da mescla de tudo isso com a sofisticada bagagem cultural destes jovens.

Neste sentido, mais do que simplesmente espelhar uma visão “classe-média” do mundo, pode-se dizer que os bossa-novistas queriam jogar luz sobre aqueles aspectos mais “esperançosos” da vida. Ao invés da “dor-de-cotovelo” dos anos 1930 e 40, estes jovens se voltaram para as delícias do amor e uma visão de mundo mais livre e solta, que também se refletia em mudanças comportamentais, como as “escandalosas” roupas de banho que começavam a surgir nas praias cariocas.
Uma liberdade que impregnou não somente os temas, mas também a própria estrutura das músicas. Foi navegando por influências que iam de Ary Barroso a Ravel, passando por Dolores Duran, Pixinguinha, Noel Rosa, Villa-Lobos e Debussy, que estes músicos compuseram os primeiros sucessos do movimento.

Ganhando o mundo
Regada por todas essas in-fluências, a Bossa Nova começou a tomar forma em bares e apartamentos (como o de Nara Leão) na zona sul do Rio por volta de 1957, quando começaram os encontros de músicos como Billy Blanco, Carlos Lyra, Sylvia Telles, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, João Gilberto e Ronaldo Bôscoli, entre outros.
Os encontros informais tornaram-se públicos, primeiro nas faculdades freqüentadas pela “moçada”, depois nos bares do antológico Beco das Garrafas, em Copacabana. Para o grande público, esse novo jeito de fazer música ganhou forma na voz de Elizete Cardoso, em sua interpretação de “Chega de saudade”, no LP “Canção de um amor demais”, de Vinicius e Tom, lançado em 1958.

A partir daí, o movimento ganhou o mundo com incrível velocidade. Marco fundamental desta história foi o lançamento e premiação no Festival de Cannes, em 1959, do filme “Orfeu Negro”, dirigido pelo francês Marcel Camus a partir da peça teatral escrita por Vinicius. A trilha sonora era composta por músicas como “A felicidade”, “Manhã de Carnaval”, “Tristeza” e “Se todos fossem iguais a você”.
Outro impulso fundamental foi o histórico show realizado no teatro Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, que abriu as portas para gravações antológicas pelos mestres do jazz Stan Getz e Charlie Byrd, seguidas por parcerias, principalmente de Tom Jobim, com monstros sagrados como Ella Fitzgerald e Frank Sinatra.

A Bossa ainda pulsa
Naquele momento, o movimento também começava a se “ramificar”. Influenciados pelo discurso nacional-populista do Centro Popular de Cultura da UNE, músicos como Carlinhos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Marcos Valle, Dori Caymmi e Nara Leão distanciaram-se um pouco da vertente jazzística e se aproximaram mais do morro e dos ritmos nordestinos, travando um criativo diálogo com bambas como Zé Ketti, Cartola, Nelson Cavaquinho e o nordestino João do Vale. Um dos marcos dessa vertente foi o disco “Afro-sambas”, lançado por Vinicius de Moraes e Baden Powell em 1966.

Um pouco antes, em 1965, “Arrastão” (de Vinícius de Moraes e Edu Lobo), defendida por Elis Regina no I Festival de Música Popular Brasileira, daria início ao que conhecemos como MPB.

Mais do que “dissidências” ou rupturas, os muitos caminhos que a Bossa Nova tomou desde então são resultados de sua própria essência: a capacidade de incorporar novas sonoridades e ritmos.

No Brasil, décadas de padronização e rebaixamento das manifestações culturais fizeram com que a Bossa Nova passasse a ser vista como “música da elite”. Um verdadeiro despropósito, ou uma “Insensatez”, um dos títulos que é prova viva, lindamente ritmada e poeticamente vibrante, de que a cinqüentona continua cheia de bossa.

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