Os trabalhadores migrantes da construção civil que estão erguendo a “Nova Pequim”, na china, são vítimas habituais de exploração mediante a negação de salários adequados e trabalho em condições perigosas, sem seguro contra acidentes nem acesso a atendimenO informe de 61 páginas chamado One Year of My Blood (Um ano do meu sangue) documenta o não-cumprimento por parte do governo chinês de suas repetidas promessas de respeitar os direitos dos trabalhadores migrantes da construção, assim como de pôr fim às privações provocadas pelo caráter discriminatório do sistema de registro de lares (hukou). Calcula-se que um milhão de trabalhadores, procedentes de outra parte da China, constituem cerca de 90% da mão-de-obra da construção em Pequim. Esses trabalhadores são a força por trás da finalização da infra-estrutura e das instalações esportivas relacionadas aos Jogos Olímpicos, que terão início em 8 de agosto.

“O governo chinês é só palavra e nenhuma ação na hora de oferecer proteção e serviços sociais significativos aos trabalhadores migrantes da construção”, assinalou Sophie Richardson, diretora de Incidência Política na Ásia para a Human Rights Watch. “Apesar dos anos de retórica oficial, os empregadores seguem arrochando os salários que os trabalhadores da construção ganham duramente. E, quando se trata dos serviços sociais básicos, o governo segue discriminando os migrantes”, agregou.

O informe da ONG documenta como os empregadores forçam habitualmente os migrantes a trabalhar, retêm seus salários por até um ano e logo lhes oferecem um pagamento único consideravelmente inferior ao acordado e ao salário mínimo de Pequim. Alguns empregadores se negam totalmente a pagar.

Um trabalhador disse à Human Rights Watch: “desde que cheguei ao lugar de trabalho tenho trabalhado todos os dias, não tenho nada de dinheiro e nunca saí para descansar”.

Outro trabalhador migrante explicou que não lhe haviam pago nada, apesar de um acordo verbal em que se estabeleceu que receberia seus sete meses de salário ao finalizar o projeto. O trabalhador disse à ONG: “(o representante da empresa) disse ‘ainda não chegou o dinheiro’, ‘o chefe não está’, ‘o chefe está ocupado’, e nos dava desculpas desse tipo pelo atraso”.

O sistema chinês hukou de registro de lares, planejado para prevenir e controlar a entrada massiva de residentes rurais nas cidades da China, impede que os trabalhadores migrantes da construção de Pequim gozem de benefícios sociais como atendimento médico, serviços de que só dispõem os residentes urbanos legalmente registrados.

De um trabalhador migrante se exigiu que apresentasse cópias de um hukou de Pequim para poder apresentar uma reclamação de custos médicos derivados de um acidente industrial. Ele nunca havia tido um hukou de Pequim. O trabalhador disse à Human Rights Watch: “uma vez mais me impedem de golpe o acesso à proteção legal”. Outros trabalhadores entrevistados pela ONG explicaram que não podiam apresentar queixas contra seus empregadores por não-cumprimento das condições salariais porque careciam de autorizações de residência em Pequim.

A Human Rights Watch disse que os empregadores continuam ignorando impunemente a legislação trabalhista e apelou aos dirigentes chineses para proteger os trabalhadores migrantes discriminados pelo sistema hukou. Em vez de abolir o sistema de registro de lares, o governo começou a conceder autorizações temporárias de residência urbana aos trabalhadores migrantes, perpetuando assim um sistema discriminatório.

“Se o governo chinês quer realmente proteger os direitos dos trabalhadores migrantes, deve começar por abolir o sistema hukou”, assinalou Richardson. “Apenas com isso se facilitaria que os trabalhadores pudessem apresentar denúncias e que as autoridades indiciem os empregadores que violem as leis trabalhistas”, agregou.

A China é parte do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e, portanto, se comprometeu em garantir condições trabalhistas justas e favoráveis a seus trabalhadores, que incluem salários apropriados, um ambiente trabalhista seguro e saudável e limitações razoáveis ao horário de trabalho. Apesar dessas obrigações e de outras normas similares da legislação chinesa, os investigadores da Human Rights documentaram numerosos abusos, entre os quais:

  • negação do pagamento mensal regular do salário. Os empregadores não cumprem habitualmente o artigo 50 do Código Trabalhista, que dispõe que os salários devem ser pagos mensalmente, ao oferecer pagamentos únicos anuais, o que afeta gravemente a segurança dos trabalhadores migrantes e suas famílias durante todo o ano;
  • não-pagamento ou pagamento insuficiente de salários. Os empregadores pagam, freqüentemente, os trabalhadores abaixo do salário mínimo, e alguns não pagam nada. Um grupo de trabalhadores disse à ONG que seu empregador se negou a pagar pelo trabalho realizado entre abril e novembro de 2006. Em março de 2007, ainda não havia pagado aos trabalhadores;
  • os empregadores também negam habitualmente aos trabalhadores migrantes da construção os contratos e seguros médicos e contra acidentes dispostos na lei, e expõem os trabalhadores a doenças e lesões mediante condições de trabalho perigosas.

    Para cúmulo das desgraças, um sistema de recursos oficial disfuncional impede que os trabalhadores reclamem seus direitos legalmente protegidos – quem protesta enfrenta ameaças de violência, que algumas vezes são mortais. Em julho de 2007, capangas contratados para reprimir greves assassinaram um trabalhador migrante da construção numa obra na província de Guangdong, onde os trabalhadores em greve levavam meses para receber seus pagamentos.

    “É inaceitável que os trabalhadores corram o risco de morte ou lesão simplesmente por reclamar seu direito ao pagamento pontual e a um salário justo completo”, assinalou Richardson. “Mais promessas vazias do governo apenas garantirão mais riscos, mais lesões e mais mortes”, agregou.

    Os Jogos Olímpicos contribuíram certamente para impulsionar o auge da construção civil na cidade. O COI (Comitê Olímpico Internacional), que selecionou Pequim como sede dos Jogos, deve buscar uma certificação independentemente de que todos os trabalhadores empregados nas obras olímpicas são remunerados legal e adequadamente, trabalham em condições seguras e estão protegidos frente a outros abusos trabalhistas. A necessidade dessa certificação é especialmente urgente desde que o governo chinês admitiu, em janeiro, que seis trabalhadores tinham morrido nas instalações olímpicas nos últimos três anos.

    Em janeiro de 2006, o governo municipal de Pequim anunciou que tinha sancionado por retenção de salários 12 empresas não identificadas que foram contratadas para a construção de projetos relacionados com os Jogos Olímpicos. Ainda que a Human Rights Watch não tenha obtido nenhuma informação específica sobre instalações olímpicas, a constância dos abusos registrados em outros projetos de construção em Pequim deveria despertar preocupação pela exploração em todas as obras, incluídas as destinadas aos Jogos.

    “Se o movimento olímpico se orgulha realmente de sua dedicação aos ‘princípios éticos universais e fundamentais’, o COI deve assegurar-se de que os trabalhadores que participam na construção das instalações olímpicas de Pequim desfrutem ao menos de um tratamento justo e de acordo com a legislação chinesa e as normais fundamentais internacionais de direitos humanos, cujo respeito a China assumiu e prometeu a seus cidadãos”, assinalou Richardson.

    Testemunhos selecionados de trabalhadores migrantes chineses entrevistados para o informe
    “Estou já mais de dez anos como trabalhador migrante e nenhum de meus empregadores nos forneceu seguro” – trabalhador da construção entrevistado em Pequim pela ONG em janeiro-março de 2007.

    “[O horário de trabalho] era diferente a cada dia. Não havia horário fixo nem unificado, e não importava que fosse dia ou noite, todo o tempo era hora para trabalhar, às vezes tínhamos de nos levantar à meia-noite enquanto estávamos dormindo” – um segundo trabalhador migrante da construção entrevistado em Pequim pela ONG em janeiro-março de 2007.

    “Acabávamos com menos de 20 yuanes (US$ 2,67) ao dia, e ainda deduziam de nós outros oito yuanes (US$ 1,07) ao dia por custos de vida; como se supõe que vamos sobreviver os trabalhadores?” – terceiro trabalhador.