No dia 15 de janeiro, os chilenos elegeram a candidata do Partido Socialista, Michelle Bachelet, à presidência. Ela obteve 53% dos votos contra 46% dados ao direitista Sebastián Piñera, ex-colaborador da ditadura de Augusto Pinochet.

Não demorou muito para que vários intelectuais, jornalistas e políticos ligados a esquerda reformista latino-americana concluíssem que a vitória de Michelle é mais uma demonstração de um suposto período de “prosperidade e progresso” que se impõem sobre a América Latina, depois de sucessivas vitórias eleitorais da esquerda reformista. No Brasil essa avaliação se expressa em vários artigos e declarações feitos por dirigentes das principais organizações reformistas: PT e PCdoB.

Pioneirismo neoliberal
Michelle completa um ciclo de três mandatos da “concertácion” – aliança política que governa o Chile desde o fim da ditadura militar (Patrício Alwyn, Eduardo Frei e Ricardo Lagos). Os partidos reunidos pela aliança são os socialistas, democracia cristã, os radicais e o Partido pela Democracia.

Além de ter figurado como uma das ditaduras mais sangrentas do continente, o governo Pinochet também é conhecido por inaugurar a implementação dos planos neoliberais na América Latina. Já nos anos 70 o regime militar, auxiliados por um bando de tecnocratas que estudaram economia nos EUA chamados por Chicago Boys, põe em prática um plano econômico reduzindo ao mínimo a presença do estado chileno na economia. Com a supressão dos mínimos direitos democráticos e com toda a oposição presa, morta ou exilada, as privatizações dos serviços públicos, da Previdência, empresas estatais e a abertura econômica para os investidores estrangeiros seguiram numa velocidade estonteante.

O fim da ditadura não pôs fim a implementação do neoliberalismo. Por meio de um acordo entre as distintas frações burguesas, dos partidos políticos e sindicatos, Pinochet foi afastado da presidência, mantendo, contudo, ao longo dos anos 90, uma importante influência nas decisões governamentais (ganhou até um cargo de senador vitalício) e, sobretudo no exército.

A partir de 1990, com a realização das eleições assumem o poder os governos da “concertácion” que aprofundam o neoliberalismo e realizaram acordos de livre comércio com os EUA, Canadá e a União Européia. O Partido Socialista foi peça chave na continuidade desses planos, antecipando em anos a experiência latino-americana de governos social-democracia convertidos à cartilha neoliberal. Nas palavras de Rolf Lünders, ex-ministro de Pinochet, “a Concentácion administrou o modelo do que a direita”.

Menina dos olhos
Por muitos anos os propagandistas da globalização apresentaram o Chile como a menina dos olhos do neoliberalismo, fazendo dos resultados da sua economia a prova incontestável do sucesso deste modelo.

Ocultam, entretanto, as suas bases de sustentação: a indiscriminada exploração dos recursos naturais do país (especialmente do cobre) pelas multinacionais, que tem o acesso livre e gratuito a eles, e a existência de uma super exploração dos trabalhadores, que sofrem pela ausência de qualquer tipo de proteção trabalhista e tem seu direito à greve extremamente limitado, pois os governos da “concentrácion” mantêm as velhas leis dos tempos da ditadura para reprimir o movimento sindical.

O aumento brutal da pobreza e da concentração das riquezas nas mãos de uma ínfima minoria de privilegiados foi a conseqüência natural depois de anos de neoliberalismo. Segundo o cientista político Guillermo Holzman, da Universidade do Chile, os 5% mais ricos do país concentram cerca de 80% da renda nacional.

No ano de 2001, a população na situação de pobreza correspondia a 20,6% da população total do país. Já a população em pobreza extrema ou indigência correspondia a 5,7%.

O trabalho sem proteção trabalhista reina no país. O atual sistema previdenciário chileno (privatizado em 1983) exclui cerca de 50% da força de trabalho ativa – pessoas subcontratadas ou com contratos temporários.

A economia do Chile se tornou muito depende do comportamento dos mercados internacionais e da venda de commodities para garantir seu desempenho.Tal dependência, ao lado das desigualdades sociais, fazem do Chile uma bomba de tempo que podem explodir no mandato da nova presidente. Por ora, o Chile vive uma situação distinta da maioria dos países da América Latina, convulsionados por crise e insurreições revolucionárias. Tal situação de relativa calmaria social, porém, pode estar chegando ao seu limite.

Nada muda
Michelle não pensa em mudar a estratégia de Ricardo Lagos. Não passa pela sua cabeça deixar de implementar os ajustes neoliberais ou mudar as leis que reprimem as organizações trabalhistas e dificultam suas lutas desde a ditadura e que foram amplamente usadas pelos três governos da mesma coalizão. Sua referência segue a desregulamentação da economia, o livre comércio e o controle férreo das organizações operárias.

Sobre a Alca, Michele fez questão não deixar dúvidas sobre a sua posição: “Estamos dispostos a avançar a Alca, que implica uma maior integração comercial e aduaneira entre todos os países de maneira a gerar mais riqueza e emprego à região e avançar na solução de muitos problemas de nossos países”, disse. Para avançar na implementação do acordo, a presidente pretende fazê-lo sob o disfarce do Mercosul e disse uma verdade aos jornalistas internacionais. “As agendas do Mercosul e da Alca não são incompatíveis“.

O triunfo de uma mulher, que se diz socialista e sem religião, não implica em transformação na ação do poder. É importante lembrar os exemplos de Thatcher (Inglaterra), Violeta Chamorro (Nicarágua) ou de Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo. Ser mulher não significa em absoluto uma posição contestadora frente à situação opressiva que sofrem as mulheres, tampouco uma transformação nas políticas em defesa das mulheres.

A exemplo de outras Frentes Populares latino-americanas, Michelle combina um discurso de “combate às desigualdades”, prometendo implementar políticas sociais compensatórias, como o Bolsa Família de Lula.

Se no campo econômico não há nenhum horizonte de rupturas, vários reformistas ainda têm a esperança de que Michelle ponha fim às leis autoritárias do regime militar consagradas pela constituição de 1980. Doce ilusão. Além da socialista não ter feito nenhuma declaração apontando para isso, seu mandato será a continuidade da política de “transição negociada” implementada por Lagos, que nos últimos anos manteve intacta as leis repressivas da ditadura contra o movimento operário.

Nesse sentido foi vergonhosa a postura do Partido Comunista Chileno que declarou voto incondicional à candidatura de Michelle no segundo turno das eleições para impedir a “volta da direita” – argumento que será esgrimido por muitos reformistas nas eleições presidenciais brasileiras. Votar no PS seria o mesmo que optar por Lula num segundo turno contra alguma candidatura do PSDB aqui no Brasil. Como disse um ativista chileno “o que é pior, um lobo vestido de ovelha ou um lobo vestido de socialista?”.

Ao contrário dessa capitulação vergonhosa e da eterna mediocridade do “mal menor”, o Movimento Pelo Socialismo (MPS), ao lado de outras organizações da frente Junto Podemos chamou voto nulo que significou não legitimar nenhum dos candidatos. Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, são continuadores do plano neoliberal.

Como no Brasil, o neoliberalismo vai ser mantido vivo no Chile. A aplicação do neoliberalismo pelas mãos dos sociais democratas foi feita com anos de antecipação à experiência petista. O cumprimento das tarefas democráticas (como a liberdade do direito à greve), por sua vez, só poderá ser feito pela mobilização permanente dos movimentos sociais do país.