Foto Suzana Hidalgo
David Espinosa, de Santiago (Chile)

Direto de Santiago

Calama. Cidade cercada pelo deserto do Atacama, o mais seco do mundo. São 23h. O toque de recolher já começou. O frio e o vento são de arrepiar. Em um bairro popular, várias pequenas barricadas de pneus e madeira ardem em chamas. Todos os vizinhos estão em frente às suas casas com suas panelas. Velhos, jovens e crianças. Uma mãe grita: “ahí vienen los pacos” [aí vem a polícia]. Todos correm. Passa o guanaco [tanque lança-águas] apagando a chama das barricadas. O guanaco vai embora. Minutos depois, todos os vizinhos estão novamente na rua. As barricadas reacendem. “Asesino!” grita uma voz feminina ao fundo. De uma esquina, vêm caminhando 5 militares. Da outra esquina, chega o furgão verde-oliva. “Milico culiao”, grita outra voz [algo assim como: milico filho da puta]. As panelas batem sem parar dentro das casas. Em pouco tempo, corre-corre, disparos. À noite, depois do toque de recolher, é para os gatos negros. Ou melhor, verde-oliva.

Neste quarto relato, tentarei sintetizar os principais acontecimentos dos últimos quatro dias de rebelião, de quarta até sábado.

O último relato havia terminado com o pedido de perdão de Piñera e o anúncio, em cadeia nacional, do que seria sua “agenda social”, uma série de medidas para acalmar os ânimos e diminuir a desigualdade, segundo ele. As medidas propostas não foram bem recebidas. Todos se deram conta rapidamente que as mudanças apresentadas eram, na verdade, para manter tudo como está.

No dia 22 também foi anunciada, pela Mesa de Unidade Social, uma greve geral para os dias 23 e 24. A Mesa de Unidade Social é uma coordenadora que agrupa várias organizações sindicais e sociais. Algumas das mais importantes são: Federação de Trabalhadores do Cobre, CUT (Central Unitária dos Trabalhadores, dirigida pelo Partido Comunista), Colégio de Professores (organização nacional dos professores públicos), Sindicato dos trabalhadores do metrô de Santiago, CONFECH (Confederação de Estudantes do Chile), um dos mais combativos sindicatos dos portuários de Valparaíso, Confederação Nacional da Saúde Municipal (CONFUSAM) e outros. A pauta de reivindicações apresentada pela Mesa foi: 1) Retorno dos militares aos quarteis; 2) Que os parlamentares iniciem uma greve legislativa para que não se tramitem projetos de lei durante o Estado de Emergência [nem os parlamentares dos próprios partidos representados na Mesa acataram a essa decisão]; 3) Implementação de um pacote de medidas econômicas de urgência para o povo trabalhador; 4) Avançar a uma Assembleia Nacional Constituinte que coloque fim ao modelo neoliberal; 5) Que o presidente Piñera renuncie.

A greve geral é realizada nos dias 23 e 24. Muitos setores representados na Mesa de Unidade Social já se encontravam paralisados pela própria situação do país. Foi o caso da maioria dos funcionários públicos, professores, estudantes, bancários. Se somaram à greve geral muitos trabalhadores da saúde, os portuários (muitos dos quais também já se encontravam em greve) e principalmente os mineiros de algumas das principais minas (Chuquicamata, La Escondida, Los Bronces e outras). A greve não paralisa todo o país. As indústrias, termoelétricas, salmoneiras, empresas florestais e muitas outras não param. A entrada dos mineiros na cena, sem dúvida, dá um peso importante para a mobilização, mas a paralisação das principais minas durará somente um dia.

No dia 23, primeiro dia de greve geral, se dá em Santiago uma dinâmica interessante. Na parte da manhã, uma enorme marcha convocada pelas organizações sindicais e políticas se realiza na Alameda. Nessa marcha, aparecem as bandeiras de sindicatos, associações e também de partidos políticos, como o Partido Comunista, dos grupos da Frente Ampla (irmã do PSOL brasileiro) e outros. Após às 15h, na emblemática Plaza Itália, começam a chegar milhares de pessoas de forma independente, sem partidos ou representação sindical. As principais organizações presentes são as tradicionais torcidas de futebol do Colo-Colo e da Universidade do Chile (la U). Piñera conseguiu algo inimaginável, unificar as mais inimigas torcidas. Nos dias seguintes serão muitas as imagens que correrão o país de torcedores da U e da Garra Blanca (torcida do Colo-Colo) agitando juntos suas bandeiras. O inimigo comum é mais importante.

Em todas as cidades há manifestações. Os mineiros do cobre se manifestam no norte e também em Rancagua, cidade próxima a Santiago e onde está a principal mina subterrânea de cobre do mundo, El Teniente. Em El Teniente, algumas centenas de trabalhadores paralisam, incentivados por um dos sindicatos. A burocracia dos outros sindicatos não faz nada, deixando que a maioria dos trabalhadores suba à mina (localizada na Cordilheira) para trabalhar.

No Congresso, o ministro do interior, Chadwick, é convocado para falar sobre a repressão. Algumas parlamentares da Frente Ampla fazem um protesto com cartazes mostrando ao ministro os números de assassinados e presos nos últimos dias. Uma deputada da direita toma um dos cartazes e o rasga. Chadwick ri. Sua imagem rindo rapidamente será difundida pelas redes sociais. O ódio das pessoas aumenta. “Está rindo dos nossos mortos”, dizem muitos. Chadwick diz não ter responsabilidade política sobre o Estado de Emergência. A sessão continua de forma turbulenta.

O Instituto Nacional de Direitos Humanos publica informes com os nomes dos assassinados e muitas denúncias de tortura. Em uma das denúncias, policiais são acusados de pendurar quatro presos pelas algemas em uma estrutura metálica de uma antena da delegacia de Peñalolen (comuna de Santiago).

O governo anuncia a convocação dos reservistas do exército, reconhecendo a fragilidade e o cansaço dos militares. A trégua dos dias seguintes não fará necessária a convocação. Essa medida, sem dúvida, poderia gerar um problema para o governo, já que significaria colocar, dentro do exército, muitos jovens que estavam participando dos protestos nos últimos dias. Corre a notícia de um jovem militar nortino de 21 anos que se recusou a viajar com seu regimento para apoiar o exército em Santiago. O jovem, de nome David Veloso Codoceo, já um heroi popular, encontra-se preso há uma semana.

De noite, os conflitos voltam a ocorrer em muitas cidades. Barricadas, pedras, guanacos, militares.

No dia 24, algumas paralisações continuam. Manifestações em Santiago, barricadas, toque de recolher. Circula em todo o país uma convocatória para “a maior marcha da história” para o dia seguinte, às 17h.

A sexta-feira (25) amanhece tranquila, como de costume. Muitas estações da linha 1 do metrô de Santiago estão funcionando. Desde o meio-dia, milhares de pessoas começam a chegar à Plaza Italia. A multidão vai crescendo com o passar das horas. Na televisão, as cifras sobre o número de manifestantes vão aumentando. Alguns milhares, 250 mil, 750 mil, 820 mil, mais de um milhão. A cifra oficial final será de um milhão e 200 mil pessoas. A maior marcha da história do Chile. Em todas as cidades do país se reúnem milhares de pessoas. Os caminhoneiros e taxistas também se somam, bloqueando algumas rodovias e avenidas. Manifestam-se contra o preço da TAG, um pedágio urbano.

A manifestação em Santiago é gigantesca. A Plaza Itália e toda a Alameda são completamente ocupadas. A manifestação chega até os bairros de classe média alta, onde milhares de manifestantes começam a descer dos edifícios e somar-se à história. Em frente à Biblioteca Nacional um grande show é realizado. A histórica canção El Derecho de Vivir en Paz, de Victor Jara, conhecido cantor e compositor assassinado pela ditadura de Pinochet, é escutada a muitas quadras de distância. As fotos dessa enorme manifestação circulam por todo o planeta. Uma das fotos mais emblemáticas mostra a estátua do general Baquedano, considerado um dos principais responsáveis pela vitória chilena na guerra do Pacífico, contra Perú e Bolívia, totalmente ocupada por manifestantes. Em cima da estátua e com muitas bandeiras chilenas ao redor, um manifestante hasteia a bandeira mapuche. A história também é feita de simbolismos.

As torcidas organizadas ocupam o centro da Plaza. “Ya vaaaan a veer… las balas que nos tiraron van a volver” [já verão… as balas que nos atiraram se devolverão], cantam muitos manifestantes. A manifestação é pacífica, com pequenos choques entre as forças policiais e os manifestantes.

Às 20h, muitos começam a voltar às suas casas. O sentimento de vitória é contagiante. O toque de recolher começa às 23h.

Após a manifestação, Piñera se manifestará no Twitter. “A multitudinária, alegre e pacífica marcha hoje, onde os chilenos pedem um Chile mais justo e solidário, abre grandes caminhos de futuro e esperança. Todos nós escutamos a mensagem. Todos nós mudamos. Com unidade e ajuda de Deus caminharemos para esse Chile melhor para todos.”

O sábado foi de trégua em Santiago. Em Concepción, Valparaíso e outras cidades, as manifestações continuam. Piñera anunciou o fim do toque de recolher e diz que todos seus ministros colocarão seus cargos à disposição. Novas convocatórias a manifestações inundam as redes sociais.

O último balanço do Instituto Nacional de Direitos Humanos é de 584 feridos (245 por armas de fogo) e 2686 presos. Os jornais já contabilizam 19 mortos.

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