Montagem, com foto de Waldo, em 1972.
Waldo Mermelstein

Waldo Mermeltein

No Chile, havia milhares de brasileiros, muitos exilados e outros desgostosos com o rigor da ditadura no país, como o meu caso. Havia também diversos outros latino-americanos, todos generosamente acolhidos pelo governo e pelo povo chileno. Mesmo tendo sido enquadrado em um processo decorrente do Decreto-Lei 477, o que me impulsionou a ir para o Chile, o que me levou ao Chile foi a possibilidade de estudar Economia Política de forma livre e de participar de um processo de lutas sociais que, naquele momento, eu somente intuía ser especial.

Eu tinha 19 anos quando cheguei ao Chile, no final de 1972. Nos dez meses que se seguiram, a maior parte do tempo passei militando na organização para-partidária do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), chamada Frente de Estudantes Revolucionários (FER).

Vi de perto os principais acontecimentos daquele ano. Não sei ao certo as razões, mas nunca parei de verdade para escrever, seja para entender o momento, ou como este relato pessoal. Assim, acabei levando quase 40 anos para que parte das memórias e recordações fossem para o papel. Soube que o mesmo se passou com outros companheiros, que vivenciaram momentos únicos da história. “Levei quase 30 anos para escrever”, me disse outro dia um companheiro que participou da Revolução dos Cravos”, me tranquilizando.

Além do o golpe de 11 de setembro, o que mais me impactou foi o golpe fracassado de 29 de junho. Não vou esquecer a decepção de ouvir Salvador Allende discursar para as massas radicalizadas que exigiam medidas contra os golpistas de dentro e de fora das Forças Armadas. Ele apresentou os generais supostamente responsáveis pela derrota do golpe e encerrou o discurso dizendo, “Vayan a sus casas, besen a sus mujeres porque Chile sigue siendo una democracia” (Vão para suas casas, beijem suas mulheres, porque o Chile segue sendo uma democracia).

No 11 de setembro, fui caminhando para a faculdade, como no dia 29, para organizarmos a resistência. Passei pela frente do palácio de La Moneda, já rodeado pelos soldados. Não entendia bem quem eram. Pensei que eram “nossos”, porque tinham um lenço vermelho no pescoço.

Na faculdade havia pouca gente, umas 50 pessoas. Os carabineros (policiais), que tinham um destacamento na frente da escola, nos deram meia hora para desocuparmos. Tentamos ir para um cordão industrial, participar da resistência, mas não conseguimos. As patrulhas militares no centro da cidade nos impediram. Muitos anos depois, uma amiga daquela época, militante do Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), contou-me que os que conseguiram foram assassinados.

Os três dias seguintes foram de toque de recolher. Do prédio onde eu estava, ouvia o tiroteio e as ambulâncias trazendo feridos ao hospital, que ficava em frente. Eu dormia no chão, pois mesmo no 18º andar das Torres de San Borja, era perigoso levar um tiro.

Alguém disparava contra os soldados que respondiam. Comigo estava um companheiro chileno, cuja família havia sido presa ou assassinada antes do golpe no sul do país e também um sueco recém chegado ao país, que parecia não entender nada sobre o que acontecia.

Terminado o toque de recolher, pudemos sair às ruas. Tudo havia mudado tanto. Parecia outro país. Demorei um tempo para entender a dimensão da derrota.

Havia rumores de que o general Carlos Prats estaria vindo para Santiago, comandando tropas leais ao governo civil. Lendo as memórias do general, antes de ser assassinado pela ditadura, em Buenos Aires, vemos que ele ligou para Pinochet, perguntando sobre esses rumores e foi à TV dizer que não era verdade. No entanto, eu, que ouvia a rádio Havana todas as noites, acreditava nos boatos e esperava notícias das tropas, enquanto amaldiçoava o azar de estar em uma zona ocupada pelo inimigo, no que seria uma guerra civil.

Mesmo não tendo escutado as declarações de Prats, o tempo bastou para desmentir os boatos. Depois restou aguardar até que a fronteira fosse aberta, para tentar sair legalmente do país em direção ao Brasil.

Brasileiros
A embaixada brasileira não era uma opção aos brasileiros, pois era à época um bastião na conspiração contra o governo Allende. Dizem que o embaixador brasileiro chegou a comemorar o golpe na noite do dia 11.

Estádio NacionalMuitos brasileiros foram presos, torturados e interrogados por militares chilenos e brasileiros no Estádio Nacional. Como Túlio Quintiliano, trotskista sequestrado em casa e assassinado no Estádio Nacional. Muitos outros brasileiros morreram nos combates ou nas mãos de outras ditaduras, que atuaram juntas com a brasileira.

Conheci pessoalmente dois deles, gaúchos. O Nilton Rosa da Silva estudava e também militava na FER no Pedagógico. Tenho dele a imagem de um rapaz reservado, somente o via nas manifestações. Foi morto no dia 15 de junho, pelo grupo fascista Pátria y Libertad, quando chegava, com um grupo da FER do Pedagógico, para defender a sede do Partido Socialista, localizada no centro de Santiago, perto do Palácio La Moneda.

Foi enterrado com honras públicas pela esquerda do país e depois, os membros da FER fizemos uma pequena homenagem a ele na faculdade.

Conheci melhor o Jorge Alberto Basso, de codinome Felipe. Era um dos dirigentes do MIR no Instituto Pedagógico da Universidade do Chile, um bastião da esquerda na época. Havia militado no Brasil no POC (Partido Operário Comunista), trotskista. Era sério e compenetrado, apesar de só ter 25 anos. Sempre com livros, estudioso e dedicado.

Conseguiu deixar o país, e desapareceu em Buenos Aires, provavelmente, nas mãos da ditadura argentina. Conversamos algumas vezes, uma depois do golpe, contei a ele que iria para Buenos Aires e que iria aderir ao PST, sob a direção de Nahuel Moreno. Ele, sem ser rude, discordou, para ele era “uma organização reformista”. Eu, com os poucos argumentos que tinha, discordei. Nos despedimos. Nunca mais o vi. Era um grande, honrado e digno militante.

  • Veja o depoimento sobre Jorge Basso, feito por W.Ungaretti, no Blog Ponto de VistaPoliticamente, eu me considerava trotskista, tendo lido a magistral biografia de Trotsky feita por Isaac Deutscher, comprada pela minha mãe. Mas foi do Jan Axelsson, companheiro e amigo sueco, com quem dividia o quarto da pensão e de quem só recentemente soube o paradeiro, que recebi os primeiros documentos da corrente trotskista a que me uni desde então. A partir deste contato, integrei o grupo Ponto de Partida, que retornaria ao Brasil como Liga Operária, em 1974, dando o início a história da corrente morenista no Brasil, mantida hoje no PSTU.Rumo à fronteira
    Depois do golpe, ainda tive algumas reuniões com os companheiros do MIR. Um dos pontos de encontro foi na frente do Ministério de Defesa. Talvez porque ninguém imaginasse que alguém fosse marcar um encontro ali. Foi o tempo de me despedir dos companheiros mais chegados do MIR. Não sei o que foi feito deles… foi impossível manter contato depois.

    Por acaso, encontrei o Jorge Pinheiro e a Valderez Duarte (fundadores comigo da Liga Operária) na agência Central do Correios e combinamos de nos encontrar no PST argentino.

    Uma última imagem: saímos de ônibus para a Argentina, era um pequeno ônibus, não conhecia as pessoas. Fomos parados por patrulhas militares no caminho. Silêncio total, ninguém falava nada. Quando passamos a fronteira, foi aquela explosão de alegria, recém havia me dado conta de que todos estávamos escapando da ditadura…

    Na praça
    Muitos anos depois, voltei ao Chile em uma viagem de turismo, uma semana depois da morte tardia do assassino Pinochet. No sul, fui comer uma empanada em um posto na praça de Frutillar. Comentei com o vendedor que havia estado no país no tempo de Allende e que, casualmente, tinha regressado quando o ditador havia morrido. Ele abriu um sorriso amplo, mas depois, preocupado pela freguesia reacionária que tinha, pediu para não seguirmos a conversa. Foi o suficiente para perceber o sentimento do povo pobre.

    Mas também percebi como era forte a memória histórica quando fui ao deserto de Atacama e o guia e dono da agência de turismo resultou ser um filho de militantes da Unidade Popular, não se atrevia muito a falar com os turistas brasileiros, pois eram todos um pouco “momios” (expressão chilena para designar os reacionários). Pedi que me levasse à mina de Chuquicamata, mas não conseguimos agendar a visita e me levou a um memorial, no meio do deserto, em homenagem às dezenas de assassinados por Pinochet, na famosa “caravana da morte”, em que retiraram prisioneiros das cadeias da região e os fuzilaram…Não esqueço aquele memorial e recordo os nomes bolivianos que tinham, o que mostra os laços estreitos que as várias classes trabalhadoras têm.

    Lembrei-me de pessoas do povo que conheci, em especial da vendedora de jornais na frente da faculdade, que era da Unidade Popular (UP). Depois do golpe, ela me contou que haviam ocorrido coisas horríveis nos bairros. Mas sua confiança se mantinha: “Meu filho, não se preocupe, daqui a alguns anos a esquerda vai estar de volta com tudo de novo”.

    Nestes episódios, em especial o do sorriso aberto na praça, percebi que a memória histórica não tinha sido rompida. E agora, com as grandes mobilizações que ocorrem no país, certamente será reincorporada e resgatada.

    A derrota foi muito dura, mas ela havia me ensinado as lições mais importantes da minha vida política. Nunca mais esqueci o que pode a força do povo quando está decidido e como falta uma alternativa revolucionária nos momentos mais decisivos. Mas, não se improvisa uma direção revolucionária, ela precisa ter seu núcleo sólido para quando se abre uma situação como a chilena.

    LEIA TAMBÉM

  • O outro 11 de Setembro: a tragédia chilena, de Waldo Mermelstein
  • Filmografia básica: O cinema e o “11 de setembro” chileno, DE Wilson H. da Silva