Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Em 19 de junho, Chico Buarque de Hollanda chegou aos 60 anos, quase como unanimidade nacional. Afinal, são pouquíssimos os que discordam de sua genialidade artística. Como também são poucos os que não vêem em Chico, e sua obra, louváveis exemplos de coerência e fina sintonia com a realidade e desejos do povo brasileiro. Algo raro num mundo repleto de artistas que tudo fazem para se manter na mídia e, em geral, têm como parâmetros para suas carreiras os índices de audiência e não de criatividade.

Sinfonia de dores e prazeres

Falar de Chico é, em primeiro lugar, falar da música brasileira. Com parceiros como Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Milton Nascimento, Edu Lobo e Francis Hime, ele compôs centenas de canções que conseguem, de forma singular, mesclar sofisticação e complexidade poética com singeleza popular.

O poeta Manuel Bandeira, Chico Buarque. Tom Jobim e Vinicius de Moraes

Seus primeiros sucessos surgiram em 1965, com Pedro Pedreiro e Sonho de um Carnaval, que já traziam temas constantes de sua obra: os sofrimentos do povo, como também sua esperança de “fazer um Carnaval”, metáfora de uma vida melhor e livre.

Em 1965, atuou, com Elis Regina, no programa O Fino da Bossa, na TV Record, e escreveu as músicas da peça Morte e Vida Severina, baseada no poema de João Cabral de Melo Neto.

A consagração veio na voz de Nara Leão, em 1966, no II Festival da Música Popular Brasileira, com A Banda, que dividiu o primeiro lugar com Disparada, de Geraldo Vandré, e abriu caminho para uma sucessão de músicas premiadas em festivais.

Uma delas, Roda Viva foi tema de uma peça teatral dirigida por José Celso Martinez Correia. O espetáculo fazia uma reflexão sobre as engrenagens da indústria cultural que esmagam seus próprios ídolos, e provocou o primeiro embate de Chico com a direita: em São Paulo, o espetáculo foi interrompido pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que depredou o cenário e espancou os artistas, dando sinal verde para a censura da ditadura.

E aí o roda-moinho eclodiu. Em 1968, quando consolidou sua parceria com Tom Jobim, com Pois é e Retrato em Branco e Preto (Já conheço os passos dessa estrada / Sei que não vai dar em nada…), Chico participou da “Marcha dos Cem Mil”” foi detido dias após a decretação do AI-5. A detenção e a censura o levaram, então, a um auto-exílio na Itália, até 1970. A volta ao país foi marcada por um de seus maiores sucessos e verdadeiro hino anti-ditadorial: Apesar de Você (Hoje você é quem manda / Falou, tá falado…).

Suas músicas (muitas vezes driblando a censura através de sutis metáforas) serviram como hino para muitas lutas, principalmente durante a ditadura.

Ensaio de Roda Viva

Pensando em nossa gente

Gente Humilde, composta com Garoto e Vinícius de Moraes, lançada em 1969, é exemplar da sintonia de Chico com as dificuldades enfrentadas pelo povo. Seja o peão de Construção; os moleques que vendem chiclete no sinal fechado (Pivete), ou que já nasceram com cara de fome (Meu Guri); os sem-terra de Levantados do Chão ou os malandros, cantados em várias versões.

Essa preocupação também expressa em sua participação nos principais movimentos sociais no decorrer das últimas quatro décadas.

Desde Olé, Olá (1965) até Vai Passar (1984), Chico cantou o sofrimento da repressão e o desejo de liberdade em canções como Samba de Orly (Vai meu irmão / Pega esse avião…), as irônicas Deus lhe Pague, Vence na Vida quem Diz Sim e Acorda, Amor (assinada sob o pseudônimo Julinho da Adelaide) e as inesquecíveis Cálice, Meu Caro Amigo e Vai Levando.

Suas posições também o levaram a um rompimento, em 1975, com a Globo, emissora onde só voltou a se apresentar em 1986, quando fez um série de especiais com Caetano Veloso.

Em 1977, escreveu Feijoada Completa, um dos hinos da campanha pela anistia. Participante ativo nas lutas do final da década de 70, cantou Linha de Montagem, no show do 10 de maio de 1980, mesmo ano em que compôs Vida (minha vida, olha o que é que fiz…). Estava no palco do Riocentro quando houve o frustrado atentado promovido pela ditadura.

Sintonizado também com o cenário internacional, fez Tanto Mar, um das mais belas homenagens à Revolução dos Cravos, e popularizou no Brasil as músicas dos cubanos Pablo Milanés e Silvio Rodriguez.

O universo feminino e a paixão

Outro aspecto fundamental da obra de Chico apareceu em 1972, com Tatuagem. Poucos como ele conseguiram traduzir as dores e delícias do universo feminino. Músicas como Gota D’Água, Folhetim, Teresinha, O meu amor, Joana Francesa, Com Açúcar e com Afeto, Mulheres de Atenas e O que Será são verdadeiras poesias nesse sentido.

Como também é pelo universo da paixão que circulam canções como Futuros Amantes ou Trocando em Miúdos, Eu te Amo, Olhos nos Olhos, Pedaço de Mim e Atrás da Porta, profundos mergulhos no desatinado mundo das relações afetivas.

Distraído

Chico Buarque, enfim, é dono de uma biografia tão ímpar que muitos chegam a relevar “deslizes”, como seu atual apoio ao governo Lula ou o fato de ter assinado um manifesto em defesa de Zé Dirceu, em pleno escândalo Waldomiro. Mas, até mesmo porque a crítica é uma de suas marcas registradas, fazemos a nossa utilizando suas próprias palavras: nem mesmo Chico Buarque deveria ficar “distraído” sem perceber que nossa pátria está sendo “subtraída em tenebrosas transações”.

  • Para além da musica

    Além da música, Chico também marcou presença no cinema, teatro e literatura. Sua primeira participação no cinema foi em 1967, em Garota de Ipanema, de Leon Hirszman, com Noite dos mascarados (Quem é você / Diga logo…). Em 1972, escreveu as músicas e atuou – juntamente com Nara Leão e Maria Betânia – em Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, que tinha como tema Partido Alto. Em 1974, escreveu as músicas para Vai Trabalhar, Vagabundo, o irônico filme de Hugo Carvana. Também participou em Para Viver um Grande Amor (1983) e fez temas fascinantes para Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), Bye, Bye Brasil (1979) e Os Saltimbancos Trabalhões (baseada em sua peça), em 1981.

    Para o teatro, escreveu (com Rui Guerra) Calabar ou O Elogio da Traição, censurada pela ditadura, e duas verdadeiras obras-primas Gota D’Água (uma versão da tragédia Medéia, de Eurípedes) e a Ópera do Malandro (adaptação de a Ópera do Mendigo, escrita por John Gay, e da Ópera dos Três Vinténs, de Bertold Brecht).

    Uma de suas primeiras investidas na literatura foi Fazenda Modelo, uma tupiniquim de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, em que Chico paródia o “milagre brasileiro”. Estorvo (1991), Benjamim ((1995), apesar de terem tido uma recepção (de crítica e público) um tanto controversa, já foram adaptados para o cinema. Seu último livro, Budapeste (2003) traz a saga de um escritor que conta sua própria história enquanto escreve outra.