O processo de construção da Conlutas atrai atenções não só no Brasil. Estudiosos de outros países acompanham de perto essa alternativa que vai surgindo. Um deles é o marxista suíço Charles-André Udry, militante trotskista desde 1964 e atual ativista em defesa dos direitos dos imigrantes. Durante o I Congresso da Conlutas, o Opinião Socialista conversou com Udry. Ele falou sobre a atual situação das lutas na América Latina e a importância da Coordenação Nacional de Lutas no atual quadro de reorganização dos trabalhadores.

Opinião socialista – O século começou com uma grande explosão social em toda a América Latina, que derrubou vários presidentes. Como o senhor avalia a situação atual no continente?
Charles-André Udry
– O final dos anos 90 e o início de 2000 foi um período de grandes lutas sociais e políticas na América Latina. O resultado político foi que apareceram dois elementos novos. Um deles foi a capacidade do movimento social de derrubar governos, o que é extraordinário. Algo novo na história desde os anos 70. Como vimos na Bolívia, na Argentina. Depois, chegam governos que se dizem progressistas. Muitos tiveram grandes expectativas em relação a esses governos, como o de Evo Morales, que é um produto indireto da luta. Uma combinação de lutas dos operários, índios, ex-operários e gente que nunca foi respeitado pelo poder. Evo Morales é produto disso. O problema é que esse governo não tinha um programa e uma capacidade política de encabeçar uma luta suficiente para derrubar o poder real das transnacionais. Tinha uma visão especialmente linear de uma etapa transicional muito grande antes de uma mudança radical.

Esse mesmo tipo de governo temos com Correia na Equador. Havíamos tido com Lula, que gerou grande expectativa. O balanço é que esse tipo de governo, de fato, foi incapaz de responder às necessidades do povo e às expectativas. Esse tipo de governo tomou dois tipos de iniciativas. Deu às transnacionais capitalistas imperialistas concessões extraordinárias. De outro lado, implementou o programa do Banco Mundial, um sistema de assistência social como o Bolsa Família, como o programa social do Uruguai, de Tabaré Vasquez, também na Bolívia. Isso é um tipo de governo que neutraliza a unificação classista da população e que não quer enfrentamento. Esso é, creio, o fim desse período hoje em dia. Esse período da década progressista chega a seu final. Vemos na Venezuela que, entre a expectativa nesses governos e a necessidade do povo, a tensão é maior. No Equador, por exemplo, quando o presidente da Assembléia Nacional se demite dizendo “não quero continuar”, porque diz que Correia não aplica uma política para o povo, isso corresponde a uma pressão maior da Conaie que afirma “queremos controlar a terra, o petróleo”.

Reação imperialista
Agora, deve-se entender que o imperialismo nesse período implementou uma política diferente da tradicional. Implementou uma política que mobiliza setores sociais para criar o máximo de confusão. Por exemplo, na Bolívia, utiliza setores da burguesia com expressão popular para criar a chantagem da divisão. Para debilitar o governo. Assim, é uma combinação de incapacidade de mudança, com uma contra-ofensiva do imperialismo que não toma, imediatamente, os aspectos militares. Sim, na Colômbia atua no quadro do Plano Colômbia, um exemplo puro de repressão militar. Mas na Bolívia não. A única possibilidade de responder é que as forças radicais sejam capazes de mobilizações maiores, mais radicais, e não mais concessões. Se fizermos um balanço, de fato, Lula fez concessões desde o início. Com Meireles, com o ministro da agricultura. Isso era dizer ao imperialismo e à alta burguesia: ‘tranqüilo, nenhum problema, vocês vão acumular dinheiro com as exportações, com as dívidas interna e externa’.

É absolutamente claro que todo o período de Lula foi um período que os banqueiros e o capital financeiro tiveram um êxito como nunca. Melhor do que com Fernando Henrique Cardoso. Na Bolívia é diferente. É uma chantagem aonde há uma combinação da pressão do subimperialismo brasileiro, com a Petrobras e das transnacionais, para discutir como tirar mais dinheiro do petróleo, do ferro. Estes governos não mobilizam para dizer ‘temos soberania sobre nosso territória’. Só fazem concessões e concessões para não ter um enfrentamento. Isso cria uma contradição aonde existe, de um lado, o capital que acumula vantagem e de outro o setor popular que esperava mais resultado e que não o tem. E um setor que recebe programas sociais para sobreviver, sendo uma base social, clientelista, passiva, deste governo, que neutralizou a capacidade deste setor de tomar em suas mãos seu futuro, de ser sujeitos. É assistencialismo, neutralização da iniciativa dos povos.

Qual a importância que teve a cooptação das direções sindicais nesse processo?
Creio que estamos num novo período histórico. Nos países imperialistas e nos países, entre aspas, da periferia. As transnacionais, o imperialismo, a burguesia e as oligarquias dos países da “periferia” entenderam nos anos 80 e, especialmente, nos 90, quer era decisivo enfrentar, não de um modo direto, o movimento sindical. Que precisava de uma política de cooptação. Um exemplo bem concreto. A CUT tem início no ABC. Lá atuam grandes empresas transnacionais. Volkswagen da Alemanha, por exemplo, é uma empresa que tem uma experiência de negociação e cooptação permanente com a cúpula de dirigentes sindicais. Eles têm uma grande experiência de neutralização e cooptação. Na Alemanha existe um sistema, depois da II Guerra Mundial, para neutralizar o movimento operário, que se chama “co-decisão”. Assim, se inicia toda uma experiência de luta e, mas de outro lado, negociação com direções de empresas que tem tradição de cooptar e corromper.

Por exemplo, no final dos anos 80 e inicio dos 90, muitos dos quadros da CUT foram para cursos de formação na Fundação da Social Democracia Alemã. Para aprenderem a fazer sindicalismo “civilizado”, propositivo. Estas pessoas estão hoje no governo Lula. Assim, essas pessoas participaram de lutas e depois foram cooptadas como negociadores profissionais pelas grandes empresas, com um afastamento da base. Porque eles discutem um acordo com as empresas e depois dizem: como fazer um marketing para vender, apresentar esse acordo aos trabalhadores? Isso se chama acordo “in-in”, como se capital e trabalho pudessem fazer um acordo em que ambos tivessem um resultado positivo. Isso funciona num modo tripartite, que eu chamo de “neo-corporatismo”. Porque se vê, são acordos envolvendo o Estado, as multinacionais e as cúpulas sindicais. O fazem em todos os níveis. A nível nacional, o e no nível das grandes fábricas. Por esta razão o governo deve aprovar leis em que a representação sindical fica mais difícil, envolvendo apenas a cúpula.

É uma integração da cúpula sindical no poder político burguês e no poder econômico do capital. Uma combinação dos dois. Isso fez com que os sindicatos, num espaço muito pequeno de vinte anos, se transformassem de instrumentos de luta em instrumento de controle sobre os operários a favor do capital. E o surgimento de novos pelegos, mas com uma cara de negociadores, não com uma cara de representante direto de ditadura. É gente que fala de democracia, cidadania, movimento social, de tudo isso. Única coisa que não falam é a contradição fundamental que move essa sociedade que é o enfrentamento entre capital e trabalho. Não dizem nada sobre precarização, terceirização. Isso é uma tendência internacional, não é algo que ocorre só no Brasil. Vê-se em todos os países essa cooptação, que implica em como fazer um novo tipo de sindicalismo que organize também os precarizados. Também os estudantes, que serão os precarizados do futuro.

Bloco Social
É preciso fazer um bloco dos assalariados das grandes fábricas, como da General Motors, junto a setores que são precarizados, junto a estudantes, que são uma força de trabalho em formação. E dos mais pobres. A Conlutas como organizadora desse bloco social é algo que devemos estudar, seguir. Há anos que isso me interessa. É um momento de reconstrução do movimento operário num quadro em que a força do imperialismo e das transnacionais é colocar em concorrência todos os trabalhadores do mundo. Falei com pessoas da GM do Rio Grande do Sul. É uma transnacional que recebe subsídios enormes e que, hoje, vai muito mal. Claro, que eles vão dizer a todos os trabalhadores: ‘não podemos continuar com esse salário, com essa grade de trabalho, temos que diminuir 2 mil, 3 mil operários, pois temos a competição dos automóveis que fazem na Indonésia, na Malásio, Argentina’. A política do imperialismo é colocar em competição em tempo real a força de trabalho que participa na cadeia mundializada de produção. General Motors, Volkswagen, quase todos, é uma cadeia mundializada de produção.

O problema concreto é que, hoje em dia, é necessário um real internacionalismo. Em qual sentido? Sabemos que o movimento operário, nos países imperialistas, precisaram de cinqüenta anos para se organizar. Vamos precisar de cinqüenta anos para organizar a nível mundial. É uma batalha mundial entre capital e trabalho. Eu acho que precisaríamos fazer uma campanha internacional de todas as forças pelo direito de um sindicalismo de classe independente e democrático na China. Todas as burocracias sindicais são contra isso. Eles fazem campanha pelo Dalai Lama, por que não podem fazer pelos trabalhadores chineses que trabalham vinte horas e recebem salário de menos de 60 dólares? Essa gente fala todo dia de democracia, a burguesia, o governo, a mídia. Hoje, é decisivo fazer uma campanha pelo direito de trabalhar oito horas e ter um salário digno na China. É um exemplo. Assim se cria uma relação de solidariedade e não uma relação de protecionismo.

Nessa perspectiva, quais os principais desafios colocados para o Congresso da Conlutas?
Creio que a importância da Conlutas é que é uma experiência em que se toma a iniciativa de romper com a inércia da tradição. Eu respeito todos da Intersindical. Creio que a Intersindical não tem claro na cabeça a mudança da morfologia da força de trabalho. Que se deve fazer esse bloco social. Conlutas tem mais na cabeça que se deve combinar o setor das empresas, o setor precarizado, os estudantes e, por isso, é uma experiência de um novo movimento coletivo e democrático da força de trabalho, com suas diferenças.

Também há fato decisivo pra mim é que uma organização que reúne tanta gente negra. É uma sensibilidade com o tema. Porque o Brasil é um país racista, como todos os países. O racismo é uma questão muito importante, não somente do ponto de vista moral e ético. Quando existe uma luta entre capital e trabalho, a estratégia do capital e da burocracia sindical e de partidos tipo o PT, é falar um pouco contra o racismo em abstrato. A Conlutas é capaz de integrá-los, também a nível cultural, mostrar que são sujeitos a nível cultural e também em nível laboral. Não é uma organização que se preocupa apenas a discutir os elementos econômicos, mas também político e internacional.

É evidente, não podemos enfrentar o capital mundializado e continuar mantendo a tradicional separação entre sindical e político. Todos os operários que têm uma certa consciência colocam a seguinte questão: qual é política de Lula? Qual a política de Kirchner? A de Evo Morales? Qual o resultado concreto para os trabalhadores desses países? Deve-se discutir isso. Não podemos ter uma posição elitista aonde somente intelectuais de esquerda discutem política internacional. É tudo isso que a Conlutas inicia fazer. Todos os grupos políticos, sindicalistas, devem aprender isso. Podem criticar, ter desacordos. É uma experiência que não é minúscula. Não é massiva, mas uma experiência de um tamanho, uma grandeza, suficiente que permite fazer uma reflexão. Não são quinze, cem pessoas. São milhares de pessoas. Quando são milhares de pessoas, se somos materialistas, representa algo dessa nova morfologia do trabalho. E reflete a consciência mais avançada desse processo. Como atuar nesse novo período histórico com um bloco social e político internacionalizado.

Em meio ao processo de construção da Conlutas e preparação do Congresso, as correntes MES e MTL anunciaram a ruptura com esse projeto. Como o senhor vê isso?
Li a declaração deles. Creio que é um pouco de irresponsabilidade, para utilizar um eufemismo. De romper um processo unificador a duas semanas antes do congresso. Bem, creio que a resposta da direção da Conlutas à intervenção de Janira, que pede a unificação da Conlutas, Intersincial e MTL, foi muito responsável. De dizer: sim, devemos nos unificar, mas para isso devemos discutir, aceitar o funcionamento democrático, aceitar ser minoria ou maioria. Não podem explicar essa atitude simplesmente pelo fato do PSTU ser maioria. O PSTU é um partido que teve uma iniciativa decisiva para a Conlutas. É evidente que se uma força política toma uma iniciativa para iniciar um processo como a Conlutas é natural que tenha uma influência majoritária.

Mas a responsabilidade do PSTU, e isso é muito importante, é respeitar as outras correntes. A responsabilidade de todos é permitir que essa experiência se desenvolva. Que é dez vezes mais importante, para mim, que a experiência eleitoral. A questão central, hoje em dia, para o Brasil, com todas as dificuldades, não são as próximas eleições municipais. Não são as próximas eleições presidenciais. É a criação de uma organização como a Conlutas que modifica a relação de forças na base. Nas empresas, nos locais de trabalho, com gente ativa.