Pablo Biondi, de São Paulo (SP)

Pablo Biondi

No centenário da obra O Estado e a Revolução, de Vladimir Lenin, é dever dos revolucionários, mais do que nunca, voltar a este texto clássico da literatura marxista para reiterar as lições que ele traz sobre o caráter do Estado, sobre a proposta da ditadura do proletariado e sobre as diferenças estratégicas essenciais entre o projeto revolucionário e os projetos reformistas.
Lenin iniciou a redação do livro pouco depois das jornadas de julho de 1917. Naquele momento, um setor da vanguarda da classe operária russa havia se levantado contra o Governo Provisório de Kerensky, que, diante dessa ameaça, reprimiu duramente o movimento e acentuou os aspectos repressivos da recém-inaugurada República Democrática da Rússia. Como era de se esperar, a repressão kerenskistas e estendeu também ao Partido Bolchevique, a força política que mais crescia naquele contexto e, de fato, o único partido disposto a lutar contra a guerra imperialista e contra a miséria das massas até o fim. Vale lembrar que, a partir da chegada de Lenin ao território russo, em abril daquele ano, os bolcheviques reorientaram sua política no sentido de se prepararem para a derrubada do Governo Provisório e para a tomada do poder pela classe operária por meio dos sovietes (conselhos populares). A perseguição promovida pelo governo Kerensky obrigou Lenin a atuar na clandestinidade. Estamos falando de uma obra que foi escrita pelo revolucionário russo num período em que ele estava escondido das forças policiais numa pequenina cabana situada na cidade de Razliv. Prevendo o risco de ser capturado ou mesmo morto, ele passou instruções a Kamenev para que esse garantisse a publicação de seu manuscrito de qualquer maneira caso algo lhe acontecesse. O que havia de tão importante nesse material?
Lenin preparava um ataque devastador contra as tendências oportunistas do movimento operário, representadas internacionalmente pela II Internacional – liderada pelo Partido Social-Democrata Alemão, de Karl Kautsky – e nacionalmente, no caso da Rússia, pelos mencheviques. Tais tendências criaram teorias que adulteraram o marxismo, sobretudo no que diz respeito ao entendimento sobre o Estado. Elas propunham basicamente que o Estado seria um órgão capaz de tornar conciliáveis os interesses opostos da burguesia e do proletariado. No caso de Kautsky, havia uma sofisticação: esse autor não negava a existência da luta de classes nem as funções de dominação do aparato estatal. Porém ele contestava a ideia de que o desenvolvimento dessa luta levaria a uma revolução socialista e à destruição desse aparato. Em sua visão, o movimento operário poderia conquistar posições dentro da sociedade burguesa, sobretudo pela via parlamentar, e assim realizar uma transição espontânea ao socialismo. Tratava-se de uma grande falsificação do marxismo, e as consequências dessa deformação seriam catastróficas.
Isso já havia sido demonstrado na Alemanha. A social-democracia desse país tinha adquirido um grande peso eleitoral e sindical apesar da autoritária legislação alemã do final do século 19 e início do século 20. Engels já havia alertado o partido para os riscos de uma adaptação parlamentar, mas não foi ouvido. As pressões oportunistas deformaram a social-democracia e projetaram Kautsky como um dos grandes representantes do chamado revisionismo, ou seja, do movimento que se propunha a revisitar a teoria marxista e modificar seu conteúdo. O revisionismo pretendia transformar o marxismo numa doutrina de justificação da vida parlamentar e de uma estratégia de reformas por dentro das instituições do Estado.
Além da social-democracia, Lenin também tinha de enfrentar os mencheviques, que haviam aderido ao Governo Provisório. Depois da derrubada do tzarismo, eles se encantaram com a república democrática na Rússia. Para eles, o jogo parlamentar deveria ser o centro da atuação política. Isso era ainda mais criminoso pelo fato de que havia se inaugurado uma situação revolucionária em fevereiro de 1917. Inclusive os sovietes, que eram organismos operários de duplo poder, tinham retomado sua atuação. Inicialmente majoritários nesses conselhos, os mencheviques atuaram para subordiná-los ao Governo Provisório e ao parlamento, de modo a consolidar a democracia burguesa russa. Coube a Lenin e aos bolcheviques demonstrar, na teoria e na prática, que a militância revolucionária tinha de seguir um caminho radicalmente oposto.

A contribuição de Lenin
Retomando rigorosamente as elaborações de Marx e Engels sobre o Estado, Lenin coloca que o Estado está inevitavelmente baseado no confronto entre as classes sociais e, por conta disso, possui um caráter essencialmente repressivo. O centro da ação estatal é a tomada de medidas coercitivas contra os trabalhadores, é o uso da força organizada e centralizada para impedir que o capital seja desafiado. Não à toa, o Estado sempre se apoia numa força armada policial e militar para a garantia da ordem burguesa. Isso ocorre tanto num regime autoritário como o tzarismo (ou as ditaduras militares) quanto nas repúblicas democráticas. A mais democrática república burguesa está sempre pronta para usar a força contra o proletariado quando se trata de defender os interesses capitalistas.
Lenin também apontou que o Estado burguês não é um aparato que pode ser tomado pacificamente e adaptado às necessidades do proletariado. Invocando a experiência da Comuna de Paris e as reflexões de Marx sobre ela, o líder bolchevique reafirmou duas proposições fundamentais do marxismo. Em primeiro lugar, que o Estado burguês existe e se organiza para realizar a dominação capitalista e, por isso, ele não pode servir à construção do socialismo. Em segundo lugar, que esse Estado deve ser demolido e substituído por um tipo provisório de organização estatal, mas muito diferente. O poder proletário deve ser organizado a partir das próprias instituições de poder do proletariado, que se formam ao longo do processo revolucionário. Isso significa, concretamente, que os parlamentos, os governos, os ministérios e os tribunais devem ser varridos pela revolução e não simplesmente ocupados ou disputados.
A atitude revolucionária diante do Estado burguês consiste não na busca de maioria parlamentar ou de influência política nas esferas governamental e judicial, mas sim na conspiração contra esse aparato e no chamado às massas para que o superem por meio de suas próprias organizações de classe. Forma-se, assim, um Estado operário que estabelece uma ditadura revolucionária do proletariado, um regime da imensa maioria em favor da imensa maioria.
A obra trata, ainda, da duração do Estado. Lenin explica que o poder estatal não é eterno. A revolução socialista, de fato, cria um Estado operário de transição para derrotar a resistência da burguesia e para manter e ampliar as conquistas revolucionárias. Porém, uma vez que se completa esse processo, a organização estatal perde a razão de existir, vai se desfazendo, diluindo-se na administração das coisas pela ampla participação das massas. O comunismo seria o fim não apenas do Estado burguês, mas também do próprio Estado operário. Antes disso, contudo, a força organizada do proletariado será indispensável para o triunfo da revolução, inclusive no âmbito internacional.

Atualidade
Cem anos depois de escrito, O Estado e a Revolução segue atualíssimo. O reformismo continua semeando ilusões no Estado das mais diferentes maneiras. No Brasil, não faltam exemplos. O PT se enfiou na mesma lama que os partidos burgueses com tanto entusiasmo que se tornou praticamente igual ao PMDB e ao PSDB (daí governar com eles sempre que possível e sempre com os métodos deles).
O PSOL é um partido eleitoreiro e defende a radicalização da democracia ao invés da sua superação revolucionária. Algumas de suas correntes confiam quase cegamente no Judiciário e na Polícia Federal. Outras acreditam que o voto universal legitima os governos burgueses, sobretudo quando se trata de governos de frente popular.
Contra esses equívocos e traições, podemos contar com os ensinamentos legados por Lenin sobre o Estado. Não podemos esquecer, nem por um segundo, que o Estado burguês existe para esmagar a nossa classe e para enganá-la com suas armadilhas. Não podemos acumular forças ou nos empoderarmos dentro desse aparato. A estratégia da revolução socialista nos joga contra esse Estado, e toda a atuação dos revolucionários, mesmo quando passa pelo terreno eleitoral, subordina-se a esse objetivo. Lenin nos mostra que precisamos apontar a falsidade das teorias mencheviques e kautskistas do nosso tempo. Isso se dá num combate que, mais do que teórico, é político.