Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Há 30 anos, num 7 de julho, Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, deixou-nos, quando tinha apenas 32 anos. Símbolo da geração que se rebelou e gritou por liberdade em meio à luta pela derrubada da ditadura; ícone inconteste das LGBTs e poeta do submundo, dos amores tresloucados e de uma juventude em busca de seu espaço numa sociedade careta e conservadora, Cazuza teve sua vida abreviada pela Aids. Tornou-se, assim, de forma involuntária, também um símbolo do raivoso preconceito que, na época, tachava a doença como a “peste gay”.

Passadas três décadas, suas poesias cantadas, suas fantásticas reinterpretações de clássicos da MPB e sua voz inconfundível são testemunhos vivos de um tipo de artista que, independentemente de sua origem de classe, alimenta sua criatividade do contato direto com o mundo real, dos anseios, desejos e angústias que povoam o submundo dos excluídos e das carências (afetivas, sociais, artísticas e culturais) daqueles e daquelas para quem a rebeldia é o único modo de vida possível. Por isso mesmo, continuam a embalar corações, corpos e mentes Brasil afora.

Um pequeno burguês sem-vergonha

O codinome foi cunhado pelo próprio cantor. E não por acaso. Nascido em berço esplêndido (filho do produtor musical João Araújo e de sua maior fã, Lucinha Araújo), Cazuza cresceu cercado pela música e mergulhado na boemia, coisas que se confundiam, inclusive, em suas influências, a maioria delas revisitadas em sua carreira, como Cartola, Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Maysa, Dalva de Oliveira, Janis Joplin, Led Zeppelin e Rolling Stones.

Garoto rebelde, realizou incursões autodidatas pelas obras dos chamados “poetas malditos”, como os franceses – e amantes – Arthur Rimbaud e Paul Verlaine (do século 19) e a geração beatnik dos anos 1950, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg.

Estreou nos palcos em 1980 como parte do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone e sob a tenda do Circo Voador, um espaço cultural no Rio, que serviu como abrigo e verdadeiro templo para uma geração conhecida como a do “desbunde”.

Rock na veia

Em 1982, aconteceu o encontro entre a formação original do Barão Vermelho – Roberto Frejat (guitarra), Dé Palmeira (baixo), Maurício Barros (teclado) e Guto Goffi (bateria) – e a voz berrada e o profundo senso poético de Cazuza, numa parceria que incendiou os palcos como expressão de um chamado “novo rock brasileiro”.

Gravando um sucesso após outro, como “Codinome Beija-Flor”, “Menor Abandonado”, “Pro dia nascer feliz”, “Todo amor que houver nesta vida”, “Bete Balanço” (trilha de um filme da época) e “Por que a gente é assim?”, o grupo atingiu seu ápice e, também, bem ao estilo Cazuza, marcou sua saída do grupo com uma apoteótica apresentação no primeiro Rock In Rio, em 1985.

Vida louca, vida intensa, vida breve

Cazuza iniciou uma carreira solo cujo repertório, além das composições próprias, resgatando clássicos, ganhou cada vez mais contornos autobiográficos, principalmente para alguém que havia descoberto ter contraído o vírus HIV.

Homem de muitas e intensas paixões, algumas vezes por mulheres, mas quase sempre por homens, inclusive Ney Matogrosso, Cazuza nunca escondeu sua orientação sexual. Pelo contrário. Ele a cantou em alto e bom som.

Por isso mesmo, seus últimos anos foram marcados por uma exposição preconceituosa, sensacionalista, lgbtfóbica e literalmente criminosa, em particular pela mídia, que teve sua expressão mais rasteira numa matéria de capa da revista Veja em abril de 1989, quando Cazuza trouxe à tona sua doença, exatamente para tentar desmitificá-la.

Contudo, o exagerado nunca abaixou a cabeça. Quando a Aids se manifestou em 1987 e o único medicamento disponível era o torturante AZT (com efeitos colaterais terríveis), demonstrou uma dignidade e força interior impressionantes. Soltou o verbo contra um mundo que fere, desampara, persegue e oprime todas e todos que, por necessidade ou opção, são rebeldemente desajustados em relação a este sistema.

A burguesia continua fedendo, mas o poeta ainda esta vivo!

Em 1988, “Ideologia”, “Brasil” e “Faz parte do meu show” soavam como desafios abertos ao preconceito e aos descaminhos de um país cuja redemocratização deixava muitíssimo a desejar. No mesmo ano, na genial “O tempo não para”, ele disparou sua metralhadora cheia de mágoas contra os que o achavam derrotado. Gente que, enquanto chamam os outros de “ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”.

Em seu último disco, a “Burguesia” denunciou as elites como obstáculo pra que haja poesia. Por isso, precisa ir para a cadeia, ser desapropriada, dinamitada.

E foi chamando todo mundo pra ir à rua e “fazer uma revolução” que o poeta se despediu da gente. E é por essa e muitas outras, que continua vivo entre nós.