Católicas pelo Direito de Decidir defendem a legalização do aborto, a livre orientação sexual e direitos elementares das mulheres, se contrapondo ao PapaO Opinião Socialista entrevistou Yury Orozco (teóloga colombiana) e Dulce Vasconcelos (socióloga), integrantes da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Na entrevista, elas falam sobre a necessidade do direito ao aborto e sobre a visita de Bento 16.

Abaixo, publicamos a versão integral da entrevista.

Opinião Socialista – O que são as Católicas pelo Direito de Decidir?
Yury
– É uma organização feminista, fundada em 93. Nosso principal objetivo é lutar pelos direitos das mulheres, especialmente os relacionados aos direitos sexuais, reprodutivos e toda essa problemática articulada com a religião. Uma coisa que sempre esclarecemos é que o principal objetivo nosso é a defesa pelos direitos das mulheres, ou seja, nós existimos por causa das mulheres. Nosso objetivo não é lutar pelos direitos das pessoas dentro da Igreja Católica, mas como a religião afeta os direitos das mulheres e, por isso, nós estamos aqui. Claro que nos juntamos e nos solidarizamos com organizações que estão lutando especificamente por uma reforma dentro da Igreja, por exemplo, nos inspiramos na Teologia da Libertação, na Teologia Feminista e nos movimentos internacionais que buscam lutar por uma nova Igreja mais democrática, com uma nova visão da sexualidade que reconsidere o celibato dos padres, que tenha em conta a ordenação das mulheres. Nós nos solidarizamos com grupos e movimentos que estão lutando por uma reforma interna da Igreja, mas nosso objetivo principal é a defesa dos direitos das mulheres.

Onde estão organizadas além do Brasil?
Dulce
– Aqui na América do Sul, temos grupos funcionando em cinco países: Colômbia, Argentina, México, Chile, Bolívia, além de alguns países na América Central que estão começando, mas que ainda não têm uma estrutura funcionando, mas com pessoas que se dispõem a se organizar. E tem o grupo dos Estados Unidos.

Como vocês surgiram?
Yury
– A idéia de Católicas pelo Direito de Decidir surgiu nos Estados Unidos e depois, dentro da América Latina, no Uruguai. Existe uma rede, porém são independentes. Não existe uma sede central. São iniciativas independentes que trabalham de acordo com a realidade de cada país.

Dulce – No Brasil, o Católicas foi fundado no 8 de Março, com mulheres que vêm de uma militância nas pastorais sociais, na linha da Igreja progressista da década de 70 que já tem uma ligação forte na luta por justiça social, mas entende que em relação aos direitos das mulheres ainda havia um vazio e, neste vazio, estava a discussão da religião em relação aos direitos das mulheres.

Dentro de seus trabalhos vocês discutem a questão do aborto e sua legalização, que agora ocorreu na cidade do México, pela primeira vez na América Latina. Vocês acham que isso vai afetar de maneira positiva em outros países?
Dulce
– Isso é muito importante porque reforça a luta de outros países latino-americanos em garantir direitos reprodutivos às mulheres. Temos experiências na América Latina que estão apontando para uma garantia dos direitos reprodutivos. Na Colômbia, também teve a aprovação de uma legislação bastante ampla em relação às possibilidades de aborto. O Uruguai teve próximo de legalizar. Na Argentina, que é um país bastante católico também, o movimento de mulheres foi para rua bastante mobilizado. No Chile também, que é um país bastante conservador. Vemos um avanço na conquista de direitos reprodutivos. Inclusive, no México, houve uma manifestação contrária à ingerência da Igreja católica que tentou forçar os parlamentares a votar contra esse direito. Isso é muito importante para o fortalecimento dos movimentos sociais e dessa idéia de liberdade da população na conquista de direitos. Isso tende a motivar a ação em outros países para conquistas parecidas.

Como vocês desenvolvem esse trabalho, e como vocês lidam com essa quentão tão os conflitiva na Igreja Católica?
Dulce
– Trabalhamos com a idéia de autonomia das mulheres, que é a questão do direito de decidir, ou seja, o reconhecimento da sociedade sobre a decisão que a mulher deve ter sobre o seu próprio corpo e garantia do Estado de viabilizar esse direito através de políticas publicas. Nesse sentido, trabalhamos com a questão do aborto com a produção de materiais, argumentos para que sirva para um trabalho de sensibilização da população, porque precisamos ampliar a base de apoio na sociedade para a descriminação do aborto. Como é um tema pouco discutido, quando ele é tratado nos meios de comunicação, é sempre do ponto de vista dessas discussões do contra ou a favor ou, então, se coloca uma posição radicalmente contra que aterroriza a população e não ajuda no debate. O nosso trabalho é sempre de provocar esse debate em lideranças dos movimentos sociais (…), considerando a questão da Saúde pública, o direito das mulheres, da redução de mortes maternas e de ter uma política de prevenção com planejamento familiar (…).

Yury – Nós consideramos aliados o pessoal ligado a TL, mas em questões de lutas sociais. Não houve uma avanço com relação à questão, no discurso com relação às mulheres. A maioria, que consideramos teólogos da libertação e, inclusive, teólogas feministas, não têm um posicionamento afinado com nosso sobre a questão dos direitos reprodutivos e sexuais. Então, nós encontramos pouco apoio por parte de alguns teólogos e teologas da TL, exceto, por exemplo, Ivone Guevara, uma teóloga feminista brasileira que é aliada nossa que assume publicamente a defesa dos direitos das mulheres. Nossa critica à TL é que ela chegou até um ponto, mas não avançou no que se relaciona aos direitos das mulheres. Ficaram na denúncia das questões sociais (…). Por parte da hierarquia da Igreja católica, não encontramos nenhum tipo de apoio. Ao contrário. Eles têm um desconforto com a existência de Católicas pelo Direito de Decidir, porque, quando não existíamos, as argumentações dos bispos dos padres (…) eram para desqualificar as feministas que debatiam com eles. Eles diziam “vocês não são da Igreja, vocês não conhecem”. O desconforto se dá porque nós estamos falando de dentro. Nós sabemos, nós conhecemos o que fala o magistério, conhecemos as interpretações da bíblia (…).

Vocês fizeram uma pesquisa em 2005 com as mulheres católicas. Quais foram os resultados?
Dulce
– Elas expressaram apoio ao aborto em caso de risco de vida da mulher, em caso de anencefalia, por volta de 80%. Em caso de estupro 67%. Os católicos apóiam a legislação como está, que permite o aborto em alguns casos, e mais de 60% afirmam que o sistema de saúde deve atender a mulher quando provoca o aborto de forma clandestina e que precisa do atendimento médico, tem que atender de forma digna, sem pressão sobre a mulher. Em relação ao planejamento familiar, a métodos contraceptivos, a maioria dos católicos apóiam o planejamento familiar, apóiam a distribuição da contracepção de emergência, não só no caso da violência sexual, mas também no caso da relação desprotegida. 97% dos católicos apóiam a distribuição da camisinha e a instrução da saúde pública para que as pessoas usem.

Esta pesquisa é muito importante porque ela mostra a distância da prática das pessoas católicas em relação às normas que a Igreja quer colocar de forma tão rígida e como se tivesse uma palavra única, um comportamento único dentro da Igreja. Então, esta pesquisa é muito importante porque mostra que há uma diversidade de pensamento, uma diversidade de forma de vivenciar a fé católica que escapa a estas regras rígidas da hierarquia em relação a seus fiéis. É marcante como a hierarquia católica não assume isso. Ela continua falando como se tivesse uma fala única, desconsiderando que as pessoas que fazem parte da sua própria Igreja discordam completamente e encontram na sociedade outros parâmetros para vivenciar a sexualidade e a reprodução que são mais próprios, mais adequados aos parâmetros de saúde pública, mais adequados à realidade que a população no mundo vive diante de uma epidemia de Aids, diante da possibilidade de vivência de outras formas de sexualidade que não seja o padrão heterossexual dentro do casamento para procriação. Vivenciam isso e continuam católicos, já que, numa população que tem uma porcentagem grande de católicos, quando você faz uma pesquisa dessas, a proporcionalidade acompanha. Quer dizer, entre um milhão de mulheres que fazem aborto, se você aplicar a proporcionalidade de católicos, 70% das mulheres que fazem aborto, são católicas. E a hierarquia da Igreja não considera isso quando vai elaborar um documento em relação a isso. É muito complicado, é um desserviço, uma dificuldade de debate dentro da Igreja, que não ajuda os católicos a reelaborar a questão ética dentro da vivência da sexualidade, da reprodução.

Vocês sofreram alguma pressão da hierarquia católica?
Yury
– Nós somos totalmente independentes da Igreja. Somos católicas, não podem nos tirar este direito. Nós somos batizadas e, como batizadas, praticantes, com uma história dentro do catolicismo, e temos o direito de discordar publicamente de algumas questões e, aliás, nós sempre reforçamos, faz parte da história do catolicismo. O catolicismo quer se apresentar homogêneo na história, mas ele nunca foi homogêneo. Sempre você tem correntes e diversidades de pensamentos no seu interior. Mesmo, por exemplo, dentro da Teologia da Libertação, você tinha correntes divergentes. Dentro das correntes conservadoras da Igreja católica, você encontra também correntes divergentes. Nós somos parte desta história de divergências. A diferença, por exemplo, entre os teólogos que foram punidos, é porque os teólogos faziam parte da estrutura, da hierarquia da Igreja Católica, e nós, como católicas, fazemos parte desta idéia de Igreja, povo de Deus. Somos católicas laicas dentro da Igreja e, por isso, eles não têm nenhum direito sobre nós. Claro que existem alguns instrumentos, como a questão da excomunhão. Eles podem criticar, falar que não somos católicas, mas não podem fazer nenhuma punição concreta.

Depois do referendo em Portugal, o Papa Bento 16 convocou os católicos a se mobilizar contra o aborto. O que vocês opinam sobre o Papa e sua visita ao Brasil?
Yury – Existe uma continuidade do Papa atual, com toda uma proposta e um projeto político religioso do Papa João Paulo II. Bento 16 era o prefeito para a congregação para a doutrina da Fé, articulado intimamente com a política do Papa anterior. Por um lado existe uma continuidade e, por outro, se aprofundam algumas coisas que não deu tempo para João Paulo II fazer. Existe toda uma opinião de que o surgimento da TL tem a ver com a falta de estruturação da Igreja Católica. Então, a proposta deles é reestruturar a Igreja internamente, o que chamamos de processo de “romanização”. Todas as decisões estariam assim centralizadas em Roma. Aliás, uma das características desse Papa é que ele toma muitas decisões independentes, sem consultar ninguém, nem assessores, não levando em conta as proposta das igrejas locais, regionais, como é o caso da América Latina. Ele nomeia bispos, propõe, manda retirar bispos, tudo lá de Roma. Não leva em conta quais são as propostas da Igreja no Brasil ou em São Paulo. Não é uma proposta de Igreja democrática, onde são as regionais que propõe para Roma.

Outra proposta, enquanto doutrina, é precisamente a volta de toda tradição da ética moral tradicional. É a volta de valores tradicionais, como o casamento, como é o exercício da sexualidade dentro do casamento, com fins procriativos, o celibato dos padres, a negação da ordenação das mulheres. É todo um fechamento da doutrina moral. (…) Há também toda uma proposta que os laicos tenham apenas um papel coadjuvante, quer dizer, o laico é um membro de segunda categoria dentro da Igreja. A visita à América Latina é muito significativa, principalmente, pelo papel estratégico do Brasil dentro da religião católica. A partir daqui, o Papa vem fazer toda uma proposta que vai assentar as bases do que ele vai querer do catolicismo em todo o mundo. Ainda que sua preocupação não seja a América Latina, ele vai tentar reestruturar todas as diretrizes. (…) Aqui há sinais de secularização. Estamos falando desse distanciamento dos fiéis diante das normas sobre sexualidade, moral sexual, etc. As pessoas estão se distanciando das normas religiosas na sua vida privada. (…) o investimento dele é conservador nos seminários, onde ele vai tentar fazer uma limpeza. (…)

Existe um investimento em formar seminaristas conservadores em Roma, fornecendo bolsas. Existe um forte financiamento de grupos conservadores, como, por exemplo, os carismáticos e o Opus Dei, um grupo que quase ninguém sabia o que era e, agora, está ganhando uma força pública. Nas universidades católicas, nos grupos de jovens… existe toda uma forma organizada para disseminar estas propostas. As pastorais sociais são relegadas a segundo plano, mas eles mantêm um foco nas Pastorais da criança, pois, por meio delas, entra toda essa discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos, da questão da maternidade, de que a mulher só realiza como tal se for mãe. Também tem a pastoral da família, que é o centro, neste momento, da Igreja Católica. A pastoral da família é a maior e tem suas derivadas como a da saúde, do dízimo, dos noivos, ou seja, uma quantidade de pastorais, que se encontraram, na verdade, na pastoral familiar, com duas bandeiras: a defesa da família como núcleo central da sociedade e do catolicismo através da qual entra toda a doutrina católica, e a outra é a “defesa da vida”, da posição contra o aborto, das pesquisas com células-tronco e dos direitos do movimento GLBTT, porque são relações que não tem como fim a procriação.

Dulce – Acho interessante ressaltar que a Igreja Católica está perdendo fiéis em vários lugares do mundo. Aqui no Brasil também vemos a saída de católicos em busca de outras religiões e o crescimento das pessoas que se dizem sem religião. Essa é uma das grandes preocupações do Vaticano, fortalecer essa estrutura interna para reter esse processo de saída de fieis. O único continente onde a Igreja Católica cresce é o Africano e, mesmo assim, enfrenta dificuldades, pois há uma disputa com os evangélicos e outras religiões que estão se instalando no continente. (…)

Esse reforço do discurso conservador talvez seja uma tentativa de fortalecer a estrutura interna da Igreja. (…) É uma reação dos movimentos sociais, em termos de conquistas de direitos individuais essa postura do Papa. Em 2004, o Papa fez um documento explicitamente contra o feminismo, dizendo que o princípio do feminismo de estimular a autonomia das mulheres era a causa da desestrutura das famílias. É muito forte, foi a primeira vez que se faz um documento explícito falando contra o movimento de mulheres, contra o feminismo. Essa vinda do Papa também tem esse caráter de tentar fazer alguma coisa pra barrar a saída dos fiéis. (…) Na década de 60, no concílio do Vaticano 2°, a Igreja teve uma abertura e a possibilidade de discutir várias questões. O Papa anterior, João Paulo II, veio para minimizar esses avanços e a atual reforça mais ainda esse lado conservador.

Vocês estão programando alguma atividade na visita de Bento 16?
Dulce
– Vamos fazer um documento que será divulgado num momento preciso e também estamos organizando nacionalmente um evento que será um recado para o Papa. Vamos fazer ações no dia 10 de maio, às 12h (no Norte às 10h) em 14 estados. Aqui na Sé, vamos organizar uma atividade que será um recado para o Papa. Queremos que vocês nos ajudem a divulgar essas ações nos estados do país.