Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Apesar da costumeira sensação de renovação e esperança que contagia a maioria das pessoas no final do ano, há exatamente duas décadas, para milhões de brasileiros, a “virada” do ano foi marcada por um profundo sentimento de perda e uma incontrolável melancolia.

Naquele réveillon, não foram poucas as festas que, em algum momento, ficaram meio estranhas em função de silêncios comovidos, comentários apaixonados, lágrimas contidas ou, ainda, choro compulsivo e escancarado que pipocavam a cada vez que, de uma caixa de som, brotava a inconfundível voz de Cássia Eller. Fiel à sua trajetória de “inadequação” às tradições e ao mundo, morreu bem no meio do período de “festas”, no dia 29 de dezembro de 2001.

Com apenas 39 anos e no auge de um enorme sucesso merecidamente alcançado através de interpretações memoráveis de canções originais ou inconfundíveis versões de coisas da MPB, do rock e do que havia de melhor na música dos malfadados anos 1990, Cássia sucumbiu a uma sucessão de paradas cardiorrespiratórias, deixando para trás muitas saudades, mas também uma obra que, 10 anos depois, ainda se apresenta cheia de vigor e energia.

Uma obra cujas beleza e força brotam não só do domínio que Cássia tinha sobre sua possante voz e da alegria e intensidade com qual empunhava seu violão, mas também da consciência que a cantora tinha de si própria e de seu local na sociedade, como fica evidente na declaração dada em uma entrevista, em maio de 2001: “Sou mulher, sou pobre, sapatão, mãe solteira, preencho todas as lacunas. Tem de saber lidar com o preconceito”.

Obra e vida que fazem com que Cássia, ainda hoje, seja uma figura única na história de nossa música (e também de nossa sociedade). Algo que poderia ser facilmente comprovado se, no próximo dia 31, na passagem para 2012, pudéssemos registrar cenas que se repetirão em milhões de casas, dos mais diversos setores sociais.

Certamente, serão muitos os que celebrarão a chegada do novo ano embalados por alguma canção entoada pela voz rouca da mais travessa e assumidamente lésbica dentre nossas melhores cantoras.

Gente que ainda era criança quando Cássia estava viva ou que já era adulto quando ela despontou no cenário artístico, no início dos anos 1990, mas que, igualmente, terá ao fundo a voz de Cássia com trilha para o “balanço de 2021” quem sabe através de algo como “Non, je ne regrette rien” (“eu não me arrependo de nada”), ou desejando só um “pouco de malandragem” para encarar 2022.

Versatilidade e ecletismo na veia

O enorme sucesso que Cássia atingiu em pouco mais do que 10 anos de carreira tem muito a ver com a impressionante capacidade que a cantora tinha para dialogar com os setores mais amplos da sociedade. Algo conquistado tanto pela sua capacidade de criar novas e inesquecíveis versões para canções consagradas por outros grandes intérpretes quanto pela variedade de seu repertório, que transitava pelo rock, punk rock, hip hop, grunge, blues, MPB, samba ou uma mistura de tudo isso.

Tudo isto feito com enorme compromisso e qualidade artística. Afinal, são poucas as cantoras que poderiam ter dado vida a “Get back” ou “Satisfaction” fazendo justiça às obras dos Beatles e dos Rolling Stones.

Como também não são muitos os cantores que conseguem, com categoria e propriedade, visitar tanto o morro (como na sensacional versão de “Na cadência do samba”, de Ataulfo Alves), quanto se aventurar pelo sertão (“Vá morar com o Diabo”, do impagável Riachão) e, ainda, nos brindar com releituras memoráveis de gente tão diversa (e, geralmente, genial) como Chico, Caetano, Jimmi Hendrix, Jannis Joplin, Nando Reis, Nação Zumbi, Raul Seixas ou Zé Ramalho. Isso pra não falar em Cazuza e Renato Russo.

Como Cássia dizia, este ecletismo fazia parte de sua própria história. Nascida no Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 1962, Cássia cresceu tensionada por extremos e, simultaneamente, exposta à diversidade cultural. Enquanto a música era uma atividade prestigiada na família da mãe, o pai era militar, o que também fez com que, entre os seis e os 18 anos, Cássia perambulasse por Belo Horizonte, Santarém (no Pará), Rio de Janeiro e Brasília.

Desde os 14 anos, para onde fosse, Cássia levava seu violão debaixo do braços, quase sempre dedilhando alguma coisa dos Beatles, algo que, durante a carreira, fez com maestria nas suas vibrantes versões de “Come together”, “Eleanor Rigby”, “Get Back” ou “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”.

Contudo, foi em Brasília que Cássia começou sua trajetória, desde sempre marcada pelo ecletismo: cantava em corais, fez vários testes para musicais, trabalhou em duas óperas como corista e num espetáculo de Oswaldo Montenegro, além de ter cantado em um grupo de forró e, por dois anos, ter sido a vocalista do “Massa Real”, o primeiro trio-elétrico do Planalto.

Esse caráter eclético também era reflexo da personalidade camaleônica da cantora, que se refletia tanto nas constantes e ousadas mudanças no visual, quanto na distância que separava sua persona pública da Cássia Eller do cotidiano. Tímida, retraída e não raramente depressiva, segundo todos os que conviveram com ela no dia-a-dia, Cássia virava desbocada e parecia possuída no palco, capaz de todo tipo de ousadia (como, por exemplo, levantar a camiseta para mostrar os seios, enquanto cantava os versos “Brasil, mostra sua cara”, em pleno Vale do Anhangabaú, em São Paulo).

Garota travessa

Avessa à disciplina sem sentido, Cássia deixou os estudos antes mesmo de terminar o segundo grau e enquanto trabalhava como garçonete, cozinheira ou fazia outros bicos, investiu no que foi possível para fazer da música seu modo de vida. Não simplesmente atrás de uma carreira, como ela própria dizia: “Não vejo o que faço como uma carreira. Faço música por que gosto muito, me dá muito prazer”.

Muito provavelmente foi a combinação entre este prazer em fazer música e os anos de treino que chamou a atenção do empresário da gravadora Polygram que, em 1989, recebeu uma fita demo com Cássia cantando “Por enquanto”, do amigo brasiliense Renato Russo. Contrato assinado, o disco (“Cássia Eller”) foi lançado no ano seguinte, transformando-se imediatamente em sucesso e já dando fortes indícios do estaria por vir na vida e na carreira da cantora.

Sua orgulhosa e desafiadora homossexualidade explodia na escrachada versão que deu para “Rubens”, do Premeditando o Bregue. Sua filiação ao melhor daquilo que chamam de “marginalidade” ecoou em “Já deu pra sentir”, de Itamar Assumpção. Suas raízes na geração que brotou nos anos da democratização do país apareciam em “Qualquer dia”, do Legião Urbana. E seu apreço pela universalidade da música ficava evidente no arranjo reggaeiro que ela deu para “Eleanor Rigby”, dos Beatles.

De lá até sua morte prematura, foram seis outros discos, além de uma série de coletâneas, participações especiais e DVD’s (com destaque para a impecável apresentação no Rock in Rio de 2001). Todos eles evidências da arte de uma cantora cuja singularidade era exatamente a apaixonada defesa e expressão da diversidade e cuja melhor qualidade era a honestidade e entrega com que se jogava nos palcos e, também, na vida.

Artista no melhor dos sentidos, Cássia, independentemente de ter alcançado enorme sucesso comercial, sempre manteve uma postura distante da ostentação, bizarrices e concessões (quando não total entrega) que lamentavelmente marca a trajetória de muitos músicos e artistas.

Cássia sempre foi contrária à sobreposição do espaço conquistado no mercado àquilo que realmente sabia e gostava de fazer: tocar e cantar. E, coerente com isto, também nunca se lixou muito para as leis do mercado, declarando, por exemplo: “Acho ótimo a pirataria, acho ‘o bicho’. O cara não tem dinheiro, nem nada. Vai ficar sem ouvir música?”

Essa postura não-conformista fez com que, inclusive, fosse adotada como um dos ícones de uma espécie de movimento que surgiu através da internet, nos anos 1990, o “riot grrrllls” (“garotas rebeladas”, em tradução livre). E também foi esta íntima relação entre vida e obra que faz com que Cássia seja sempre lembrada como uma figura que, para além da militância, cumpriu um papel importantíssimo para toda comunidade LGBT brasileira. Inclusive depois de sua morte.

A viadíssima trindade

Enquanto viva, Cássia nunca fez rodeios em relação ao seu lesbianismo. Sua relação com Maria Eugênia (sua companheira por 14 anos) era mais do que pública e a cantora, inúmeras vezes, se utilizou do palco e a mídia para protestar contra a homofobia ou reafirmar seu orgulho em declarações como a seguinte: “Acham que homossexualismo é defeito de fábrica. Mas isso não me atinge, não fico preocupada com o que vão achar.”

Além disso, Cássia foi o vértice “feminino” da “viadíssima trindade” da música popular brasileira dos anos 1980/90. Ao lado de outros “exagerados”, Cazuza e Renato Russo (com quem tinha afinidades não só em função da orientação sexual, mas também pela visão de mundo), Cássia ajudou a dar voz e visibilidade para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, país afora.

E, não por acaso, foram de parcerias com os outros dois vértices que surgiram alguns de seus sucessos mais marcantes. Assim como “Por enquanto”, “1° de julho” e “Música urbana II”, de Renato Russo, ganharam fantásticas versões na voz de Cássia; “Malandragem” e “Todo amor que houver nesta vida” (de Cazuza e Frejat) estão desde sempre associadas à voz da cantora.


Depois de sua morte, toda a batalha para que Maria Eugênia fosse reconhecida como legítima mãe de Chicão (filho biológico de Cássia com o baixista Tavinho Fialho, que morreu em um acidente, dias antes do nascimento do garoto) fez com que o papel de Cássia na luta dos LGBT brasileiros fosse ainda mais importante.

A guarda plena só foi obtida em 2002, depois do tema ter invadido (com a mesma emoção e intensidade que as músicas da cantora) todas as Paradas do Orgulho LGBT do país. Entrando definitivamente para a história do movimento, esta foi a primeira vez, no Brasil, que a justiça concedeu a uma mulher a guarda do filho de sua companheira.

Exagerada

Infelizmente, Cássia também compartilhou a tendência aos exageros com Renato e Cazuza. Se é verdade que o uso e abuso de álcool e umas tantas outras substâncias parecem ter contribuído de forma decisiva para detonar seu coração, também é um fato que seu ritmo de vida também deve ter ajudado bastante. Seu último ano de vida é prova disto. A cantora estava num ritmo alucinante e, no embalo do Rock in Rio e de um show acústico, fez nada menos do que 95 shows.

O último compromisso seria exatamente na virada, na praia de Copacabana. No dia 29, contudo, ela passou mal, foi internada e informações desencontradas se repetiram até que, no início da noite, suas músicas começaram a invadir rádios e emissoras de TV país afora, relatando o anúncio de sua morte.

Vinte anos depois, lembrar sua morte é mais do que recordar que “pra sempre, sempre acaba”. É bom lembrar, também, que “nada vai conseguir mudar o que ficou”. E o que ficou de Cássia, além dos muitos registros de sua voz, é a memória (a ser preservada durante muitas e muitas estações) de uma artista que soube combinar, como poucos, rebeldia, ousadia e talento. Alguém que só queria “ser a Cássia Eller”, uma cantora genial embalada num misto de fera, bicho, anjo e mulher.

Texto adaptado dos 10 anos da morte de Cássia Eller, em 2011

Discografia

Evidenciando a paixão de Cássia pelo palco, três dos seus oito discos foram gravados ao vivo. Além do já mencionado “Cássia Eller” (1990), outros destaques são:

  • O Marginal (1992): O disco trouxe trouxe ECT (Marisa Monte, Carlinhos Brown e Nando Reis) ao lado de ícones da tal marginalidade, como Jimi Hendrix (“If Six Was Nine” e “Hear My Train A Coming”), Itamar Assumpção e Luiz Melodia.
  • Cássia Eller (1994): O disco mistura clássicos do rock brasileiro (Raul Seixas, Renato Russo, Herbert Vianna, Cazuza e Frejat) e versões para Ataulfo Alves e Djavan.
  • Veneno Antimonotonia (1997): Totalmente dedicado a Cazuza. A versão de Malandragem em particular fez enorme sucesso nas rádios. Em 1998, foi lançado o álbum Veneno Vivo.
  • Com você…meu mundo ficaria completo (1999) : O disco é recheado de composições de Nando Reis e transformou O Segundo Sol em uma das marcas de Cássia.
  • Acústico MTV (2001) : Disco digno de Testamento, ao mesclar interpretações impressionantes de Non, je ne regrette rien e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, com algumas das músicas que se tornaram famosas na voz de Cássia, como 1° de julho, Por enquanto e Malandragem.
  • Dez de Dezembro (2002) : O disco póstumo de Cássia traz belíssimas gravações de Get back e Julia, dos Beattles, All Star (de Nando Reis) (Póstumo) e Eu sou neguinha, de Caetano Veloso.