Em meio a tantos enlatados que invadem as salas de cinema brasileiras, em sua maioria controladas por empresas estrangeiras como Multiplex e Cinemark Casa de Areia é uma opção inteligente e intrigante. Recomendada para quem procura reflexão, e não entretenimento, contemplação, e não velocidade. O tipo de filme que fica na cabeça depois que saímos do cinema, com as imagens e cenas marcadas na película descontínua da memória.
O longa-metragem agrega méritos que poucos filmes brasileiros conseguiram reunir. O elenco é primoroso. As principais personagens são representadas por Fernanda Montenegro e a filha, Fernanda Torres, ambas atrizes consagradas que mostram todo o talento em cenas áridas, duras, com pouco diálogo mas muita expressividade. Há também as participações de Stênio Garcia, Ruy Guerra e dos músicos Luiz Melodia e Seu Jorge, entre outros.
A direção é de Andrucha Waddington, 35 anos, marido de Fernanda Torres. O roteiro, já premiado no exterior, foi escrito por Elena Soárez (de Eu, Tu, Eles), com base em uma idéia do produtor Luiz Carlos Barreto que havia visto uma fotografia de uma casa engolida pela areia. O co-produtor é ninguém mais do que Walter Salles (de Abril Despedaçado, Central do Brasil e Diários de Motocicleta).
Porém, o que mais fascina no filme é a beleza da fotografia, que se aproveita de uma paisagem luminosa e reveladora por natureza, a dos Lençóis Maranhenses. Esse cenário impressiona por ser incomum, inóspito, quase extraterreno. O filme, tudo indica, não buscou atender aos interesses do turismo da região (mas com certeza irá estimulá-lo). Ao contrário, a paisagem assusta porque, apesar de bela, é fria, árida, sacrifica os personagens sempre agredidos pela imensidão, solidão, cansaço e queimaduras na pele.
Enredo
Casa de Areia conta a saga de três gerações de mulheres que se deparam com o desafio de sobreviver numa natureza inóspita e num mundo com perspectivas diferentes do das grandes cidades. O filme se passa entre 1910 e 1969, período de revoluções e mudanças extremas em todo o mundo, mas que passam quase despercebidas às três.
A personagem principal é Áurea, levada para os Lençóis por seu marido (Ruy Guerra). A protagonista é interpretada inicialmente por Fernanda Torres e, no final, por Fernanda Montenegro. Logo Áurea precisa aprender a lutar pela sobrevivência, junto com sua mãe, Dona Maria (Fernanda Montenegro) e a filha, que será interpretada por três atrizes (Camilla Facundes, aos 9 anos, depois por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro), numa transposição de papéis desafiadora para quem assiste e para quem representa.
A barreira espacial imposta pelas dunas brancas e infinitas gera também uma barreira no tempo. Para o crítico de cinema Daniel Oliveira (www.pilulapop.com.br), Waddington cria uma obra que subverte espaço e tempo a areia (o espaço) nunca pára enquanto o tempo não parece passar, cortado o contato com a civilização. O filme permite dualidades nas interpretações: a areia (espaço) que está sempre se movendo não seria uma analogia ao tempo, inexorável? O tempo que, como as dunas, invade, destroça?
Ao mesmo tempo, o cenário que pouco muda (sempre a areia, o silêncio, a solidão) dá a idéia de que aquele mundo, nos Lençóis, parou no tempo. É como se existissem realidades paralelas: uma onde aconteceram duas grandes guerras mundiais, o proletariado fez sua revolução, o homem foi à Lua, elaborou a Teoria da Relatividade, inventou o avião, a pílula anticoncepcional, o feminismo e a contracultura. E outra onde tudo isso simplesmente não existe ou não possui influência. Nesses dois tempos diferentes e simultâneos encaixa-se a Teoria da Relatividade, com a qual Áurea, por acaso, sem entender sua importância, tem contato.
Em Casa de Areia, a prisão natural (as dunas) é uma metáfora para um destino inevitável, do qual não se pode escapar. A negação deste destino é o tema recorrente do filme e é sofrida, com menor ou maior intensidade, por todas as personagens. Elas passam por processos de adaptação e, por fim, há tanto a conformação quanto a libertação. Representando um mundo feminino e sensível, D. Maria, Áurea e a filha Maria procuram amor, liberdade, respeito e esperanças para continuar lutando. E cada uma encontra realização de maneira diferente, propondo assim reflexões sobre cultura, morte, destino e visões de mundo.
Simples, com poucos diálogos, um ritmo menos acelerado, e por isso significativo e belo aos olhos, Casa de Areia une substância e beleza, objetividade e poesia.
Ficha Técnica:
Casa de Areia
Brasil, 2005
Direção: Andrucha Waddington
Elenco: Fernanda Montenegro, Fernanda Torres, Seu Jorge, Luiz Melodia, Emiliano Queiroz, Enrico Diaz, Stênio Garcia, Ruy Guerra
Duração: 103 min