Yara Fernandes Souza, da redação

O documentário dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, Cartola – música para os olhos, resgata a história e a obra de um dos mais importantes compositores brasileiros, Angenor de Oliveira, o Cartola. A homenagem merecida não é feita apenas com as imagens do sambista e depoimentos de seus amigos. O documentário mostra que conhecer Cartola é também passear pelo Rio de Janeiro e pela própria história do samba e da cultura da época em que ele viveu.

O filme sobe o morro da Mangueira, sobrevoa o cristo redentor, passeia pelas praias e bares cariocas, vai de bonde aos arcos da Lapa. É adentrando o universo carioca que o espectador se familiariza com o sambista.

E além das entrevistas, das imagens de arquivo dos amigos e do próprio Cartola, também ilustram essa história imagens de outros filmes nacionais que se assemelham às cenas da vida do sambista (como Brás Cubas, de Julio Brassane, e Aviso aos navegantes, chanchada de 1950, com Oscarito e Grande Otelo), de desfiles carnavalescos, de programas de TV e materiais jornalísticos, entre outras. A história do samba, na qual o nome de Cartola se inscreve com louvor, é resgatada.
Mas as cenas mais cheias de poesia e emoção ficam por conta do sambista e de sua obra. São as imagens de arquivo em que ele canta e toca seus sambas eternos.

De Angenor a Cartola
Não foi na escola (que ele não freqüentou) que Cartola aprendeu o samba. Nascido em 1908, Angenor foi morar no morro da Mangueira aos 11 anos. Aprendeu a tocar cavaquinho com seu pai e desenvolveu o gosto pela música.

Apesar de ter iniciado cedo sua vida musical, durante a maior parte de sua vida Cartola não obteve muito reconhecimento. Gravou seu primeiro disco apenas aos 66 anos. Trabalhou a vida toda, foi pedreiro, pintor de paredes, peixeiro, sorveteiro, cavalariço, vendedor de queijos, cambone de macumba (espécie de guia que recebe os santos nos rituais da umbanda e candomblé), lavador de carros, vigia de prédio e contínuo de repartição pública, entre outras ocupações. Como pedreiro, ganhou dos colegas o apelido Cartola, pois usava sempre um chapéu para proteger o cabelo do cimento.

Na década de 20, surgiu a primeira escola de samba, a partir da junção de vários blocos de carnaval, Deixa Falar. Em 28 de Abril de 1928, Cartola e mais seis amigos reuniram os blocos carnavalescos do morro da Mangueira e fundaram a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. No primeiro desfile, com o samba enredo “Chega de Demanda“ de Cartola, a Mangueira ganhou seu primeiro prêmio de carnaval. Cartola foi também o responsável pela escolha do nome e das cores adotadas pela Escola (verde e rosa).

Nesta mesma época, o compositor começava a vender seus sambas a outros artistas. O primeiro foi “Que infeliz sorte”, gravado por Francisco Alves. Cartola também fez neste período amizade com músicos como Noel Rosa e Villa Lobos.

Depois, Cartola passou por um período de ostracismo, se afastando da música e da Mangueira, chegando a ser dado como morto. Nesta época falece sua esposa Deolinda (para quem ele compôs “Corra e olhe o céu”) e ele também contrai meningite. No filme, este período é narrado rapidamente pela voz de Elizeth Cardoso, sem imagens, apenas com a tela preta.

A festa da vinda
Por volta dos anos 50, Sérgio Porto, jornalista e escritor, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, encontra Cartola lavando carros num posto. É Sérgio quem ajuda o compositor a resgatar sua carreira. Com este renascimento, surge também um novo velho amor: Dona Zica. Ela era irmã da mulher de Carlos Cachaça, grande amigo e parceiro musical e Cartola.

A partir daí tem início a parte mais conhecida da carreira e da obra de Cartola. Parte importante desta história se passa no bar fundado por ele e Dona Zica, o Zicartola, a primeira casa de samba do Rio de Janeiro. O Zicartola ficava na Rua da Carioca e tinha em seus palcos, além do próprio Cartola, nomes como Zé Kéti, Nélson Cavaquinho, Élton Medeiros, Ismael Silva, Clementina de Jesus, Ciro Monteiro, Elizeth Cardoso, Hermínio Bello de Carvalho, João do Vale e Paulinho da Viola.

Também se tornou um ponto de encontro de grandes sambistas e outros músicos da época, como Nara Leão, Carlos Lyra, Antônio Carlos Jobim, Sílvia Telles e outros.
Mesmo assim, a gravação dos discos ainda demorou. Os quatro discos que ele gravou foram entre 1974 e 1979, pouco antes de sua morte, em 1980. Dentre as mais de quinhentas músicas que ele compôs sozinho ou em parceria, estão “As Rosas Não Falam”, “Alvorada”, “Nós dois”, “O Mundo é um Moinho” e “O Sol Nascerá”.

Foi um sonho que a gente teve
Muitos desses fatos que marcaram a vida de Cartola são tocados apenas superficialmente no filme, alguns chegando a ser ignorados, como a origem do apelido ou as divergências com a escola de samba Mangueira. Mas a grande homenagem que é feita não sente tanta falta dos detalhes.

O filme mostra o grande artista que foi Cartola e seu papel na história da música brasileira. Cartola é considerado por músicos como Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola como o maior sambista de todos os tempos. Nélson Sargento dizia que “Cartola não existiu. Foi um sonho que a gente teve”.

Cartola manteve a simplicidade do morro, sem acumular riquezas, sem fama, pela alegria de fazer o samba. Num período em que reina a fama e o espetáculo efêmeros, em que a arte sofre a mercantilização do capital, resgatar a história e a obra de Cartola nas grandes telas é um presente e uma lição às novas gerações.

Letras:

Alvorada

Alvorada lá no morro, que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
(a alvorada)
Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando
Meus caminhos tão sem vida
Mas o que me resta é tão pouco
Ou quase nada, do que ir assim, vagando
Nesta estrada perdida.

Corra e olhe o céu

Linda te sinto mais bela
Te fico na espera
Me sinto tão só, ai!
O tempo que passa
Em dor maior, bem maior
Linda no que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olha o céu
Que o sol vem trazer bom dia
Ah, corra e olha o céu
Que o sol vem trazer bom dia