Cartola
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No centenário de seu nascimento, o samba e o amor do mestre continuam latejando na música popular brasileiraEra para ser Agenor de Oliveira. Foi o descuido de um escrivão que fez o nome ser registrado como Angenor de Oliveira. Por preguiça de mexer novamente na papelada, o dono do nome preferiu deixar assim mesmo. Mas o acréscimo indesejado do “n” não fez diferença na vida do homem que acabou ficando conhecido mesmo foi pelo apelido.

Nascido em 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, Rio de Janeiro, Cartola deixou um legado de belíssimas canções que fizeram dele um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Tendo o samba como ritmo, Cartola compôs e cantou o amor como poucos. Nas palavras do sambista Nelson Sargento: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”. Se isso for verdade, então é preciso sonhar outra vez.

Cartola: pobreza, samba e amor
Filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira, Cartola se envolveu cedo com o carnaval. Aos 8 anos, ele já desfilava em blocos de rua. Aos onze, por causa de problemas financeiros, foi morar no morro da Mangueira. A pobreza obrigou Cartola a trabalhar muito cedo. Foi pedreiro, pintor de paredes, lavador de carros, vigia de prédio e até serviu cafezinho em repartição pública. Inclusive, foi justamente na época em que trabalhou como operário da construção civil que recebeu o famoso apelido. Para evitar que o cimento sujasse seu cabelo, o sambista usava um chapéu coco durante o serviço. Por isso, passou a ser chamado de Cartola.

Dona Aída faleceu prematuramente. Como o pai era muito intransigente e conhecia essa história de samba e malandragem, o jovem Angenor acabou sendo expulso de casa aos 17 anos. Sozinho no mundo, Cartola ficou doente e deixou de trabalhar. Se não tivesse recebido ajuda de amigos, teria morrido. Assim como outros sambistas, Cartola teve de vender seus sambas no começo da carreira. Em 1927, vendeu o primeiro, chamado Que infeliz sorte. O fato de ter estudado somente até o primário não impediu que o mestre pudesse escrever verdadeiros poemas.

Ainda no final da década de 1920, Cartola, juntamente com mais sete amigos, fundaria a primeira escola de samba do subúrbio carioca: a Estação Primeira de Mangueira. As cores da escola – o verde e o rosa – foram uma homenagem ao Fluminense, seu time do coração. No desfile de estréia, com o samba-enredo Chega de Demanda, escrito por Cartola, a Mangueira recebeu o seu primeiro prêmio de carnaval. A partir daí, o mestre não parou mais.

Como diretor de harmonia da escola e um dos principais compositores, Cartola decidiu dedicar sua vida ao samba. Durante os anos de 1930, seus sambas foram gravados por muitos cantores. É verdade que o sambista nem sempre teve uma boa relação com a diretoria da escola. Entre os anos de 1944 e 1977, ele nem desfilou, afirmando que os diretores tinham transformado a escola num reduto eleitoreiro.

Afastado da Mangueira, Cartola viveu anos ruins na década de 1940. Morando na Baixada Fluminense, ficou viúvo e contraiu meningite. Praticamente esquecido, Cartola foi encontrado pelo jornalista Sérgio Porto trabalhando como lavador de carros num posto de Ipanema. Porto resgatou o sambista e o relançou como cantor e compositor.

Em 1952, curado de sua doença e de volta ao morro da Mangueira, Cartola começou a namorar Eusébia do Nascimento, a dona Zica, irmã de seu compadre Carlos Cachaça. Depois de doze anos juntos, os dois se casariam em 1964. A própria dona Zica, num depoimento ao programa MPB Especial, da TV Cultura, em 1973, falaria sobre seu romance: “Cartola e eu nos conhecíamos desde crianças, vivíamos ali no morro. Ele saía num bloco e eu em outro. Depois ele fundou a Mangueira e eu comecei a sair nela. Cartola casou-se com uma moça e eu também casei com outro rapaz. Saí do morro e ficamos muito tempo longe um do outro. Mais tarde eu fiquei viúva, ele também. Um dia nos reencontramos na casa da minha irmã. Ele jogou aquele papinho dele, eu também estava à toa, e daí estamos juntos até hoje”.

Vivendo algumas dificuldades financeiras, o casal e mais dois sócios abriram um botequim chamado Zicartola, local que reunia grandes sambistas da época. Foi ao lado de dona Zica que Cartola compôs verdadeiras raridades poéticas, como As rosas não falam, Tive sim, O sol nascerá e Nós dois – esta escrita dois dias antes de seu casamento.

Durante seus 72 anos de vida, Cartola escreveu – sozinho e com parceiros – algo em torno de quinhentas canções. Figuras como Elton Medeiros, Carlos Cachaça, Noel Rosa e Dalmo Castello formaram as principais parcerias do sambista. A importância de Cartola é tão grande que suas músicas já foram regravadas inúmeras vezes por um sem-número de intérpretes. Um bom exemplo é O sol nascerá, que possui mais de seiscentas regravações. Outras memoráveis canções de Cartola são Alvorada no Morro, Garças Pardas, Soldado do Amor e Não Posso Viver Sem Ela.

Cartola não fez riqueza com a música, não ganhou muito dinheiro com as maravilhas que criou. A pobreza e o preconceito racial sempre o acompanharam, tentando ofuscar seu brilho e criatividade. A obra de Angenor de Oliveira nunca recebeu o apreço que realmente merece, mesmo tendo sido agraciada por muitas homenagens póstumas, oferecidas por Alcione, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Cazuza, Beth Carvalho e Marisa Monte.

Não há dúvidas de que estes tributos são verdadeiramente merecidos, mas se Cartola ainda fosse vivo provavelmente repetiria, de forma brincalhona, o que dissera três anos antes de morrer: Quem gosta de homenagem póstuma é estátua. Eu quero continuar vivo e brigando pela nossa música. O sonho de gravar um disco só foi realizado mesmo em 1974, quando Cartola já tinha 65 anos.

Saudades do trovador
Não. Cartola não foi um sonho. Foi real. O fundador da Estação Primeira deixou um vazio na música nacional que jamais será preenchido. A genialidade do mestre uniu a doçura de suas melodias com o encanto e a perfeição das letras. O poeta Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, escolheu O mundo é um moinho como seu samba favorito. Acabou conquistado por belíssimos versos, como: Ainda é cedo amor / Mal começaste a conhecer a vida / Já anuncias a hora da partida / Sem saber mesmo o rumo que irás tomar”.

Homem de hábitos simples, Cartola transferiu para sua arte a simplicidade em palavras carregadas de sensibilidade. Soube como ninguém cantar as dores do amor, a solidão, a tristeza, a saudade e as paixões eternas. As canções Peito Vazio, Acontece, Preciso me encontrar e Amor Proibido traduzem não só a pureza dos sentimentos como também marcas da vida do próprio compositor.

A beleza e a poesia de suas composições fizeram a linguagem e a vida dos morros descerem para ocupar um merecido lugar na música popular brasileira. Cartola foi um verdadeiro trovador, um artista daqueles que aparecem de tempos em tempos. Provavelmente nunca houve alguém, na história do samba, que expressasse com tamanha inocência e grandiosidade a famosa dor de cotovelo.

Angenor de Oliveira ou Agenor de Oliveira, enfim, o Cartola, morreu de câncer no dia 30 de novembro de 1980. O mestre da Mangueira teve, na vida e na morte, um privilégio típico de poetas. Nasceu num domingo de primavera e faleceu também num domingo de primavera.