Na edição passada trouxemos as três primeiras cartas enviadas por Eduardo Almeida do Haiti. Publicamos agora as últimas. Você pode conferir todas as cartas no Portal do PSTU.

“Saudamos vocês, aqui não há patrões”

“Ando por Porto Príncipe pela manhã bem cedo. As ruas estão sempre cheias. Com um desemprego de 80%, o povo haitiano se dedica a vender de tudo. O povo negro, de uma beleza que impressiona, se mistura com os sinais da miséria. O lixo se espalha em grandes montes por todos os lados.“É hora de viajar. Vamos para Cap-Haitien, ou Le Cap, como chamam os haitianos. A estrada é sinuosa, cheia de buracos. Sete horas depois, chegamos. Somos recebidos numa sede de Batay Ouvriére e depois levados para o local do ato.“A entrada põe lágrimas nos olhos de muitos de nós. Vestidos com as camisetas azuis de Batay Ouvriére, 400 pessoas cantam em créole de forma ritmada, no estilo africano que lembra o candomblé brasileiro ou o gospel dos negros americanos. Vamos entrando e a música ecoa no amplo salão: “saudamos vocês, aqui não há burgueses, aqui não há patrões”.“Sentamos em cima do palco e eles continuam a cantar: “soubemos que a burguesia armou uma cilada para matar alguns dos nossos.

Que venham eles, somos touros, somos fortes”. Ali estão representantes dos trabalhadores sem terra que em 2002 tiveram dois companheiros assassinados pela repressão do governo de Aristide. “Eles se apresentam: sindicatos de operários de uma indústria de refrigerantes, outra de cerveja, operários rurais, sem-terra, associações de bairro, estudantes. “A Batay Ouvriére tem uma força importante na região. Fazem atos no 1º de maio que passam em todos os bairros, chegando a reunir dez mil pessoas. É a vanguarda deste povo que nos recebe hoje.“Um deles diz ser necessário lutar contra os oportunistas que dizem falar em nome do povo. Cita Lula e Aristide e fala de como traíram as esperanças dos trabalhadores. “O ato termina com muitos dançando e, em coro, cantado em créole. Haja coração!“

“Sintam-se em casa”

“A última atividade junto aos haitianos não poderia ter um lugar mais significativo: Cité Soleil, a maior favela do Haiti. O lugar mais violento da capital Porto Príncipe, onde a Minustah já realizou duros ataques, sempre com a desculpa de repressão às gangues.“Na última invasão, nos conta um membro de Batay Ouvriére, chegaram com helicópteros e tanques. Ninguém sabe quantos morreram, mas ele calcula que foram cerca de 150 pessoas.““Esta região foi também a escolhida para ser receber mais uma zona franca. Cité Soleil, Minustah, zona franca. A opressão violenta tem um sentido econômico claro.““Entramos em Cité. Marrom, um companheiro da delegação, liderança da ocupação do Pinheirinho de São José dos Campos (SP), vai conhecer algumas casas. Volta impressionado: usam latrinas rudimentares e há túmulos nos quintais.““Paramos o ônibus em frente a uma escola onde vai ser feito o ato. A sala é ampla, mas está superlotada com umas 250 pessoas. E olhe que era exatamente a hora do jogo entre Brasil e Chile. ““Os rostos são simpáticos e gentis, nos recebem com uma camaradagem a que já nos acostumamos.

Um companheiro do Batay diz para nos sentirmos em casa. De fato, nos sentimos entre amigos, como entre trabalhadores brasileiros. Fico pensando em como a luta comum rompe barreiras: estamos em casa em Cité Soleil, como nenhum outro estrangeiro poderia estar.““São feitas as apresentações, como de praxe. No meio do ato, o Brasil faz seu segundo gol e é a maior festa. Finalmente conseguimos ver a reação do povo haitiano ao futebol brasileiro. Ainda bem que desta vez a seleção ajudou.““No final, todos alegres por terem visto uma Cité Soleil desconhecida: a rebelde. Interessante, não vejo mais sinais de cansaço nas pessoas…

A solidariedade do Batay Ouvriére

“O carro anda pelas ruas de Porto Príncipe em direção ao aeroporto. Dentro de pouco tempo, viajamos de volta ao Brasil. Olho mais uma vez as pessoas nas ruas, com uma ponta de saudade. Aqui, ao contrário do Rio de Janeiro, a burguesia mora nos morros.““Em uma semana, a delegação fez muito. Cerca de 1.200 pessoas estiveram em reuniões conosco. Proporcionalmente, seria como se reuníssemos 25 mil pessoas no Brasil. ““A imagem que levamos desmente a ideologia dos ocupantes. Sim, porque a ocupação tem uma estratégia econômica (as zonas francas e o biodiesel), uma face militar (a Minustah) e uma ideologia: é preciso que as tropas permaneçam aqui porque este povo não tem condições de se governar.““Isso não tem nada de novo. É só a atualização da ideologia colonial da escravidão – os negros não tinham condições de fazer outra coisa que não fosse se submeter aos brancos. O que a elite haitiana e as multinacionais temem não são as gangues. É a possibilidade de uma nova rebelião, agora sob a forma de uma revolução. A história desse povo já mostrou que isso é possível e pode se repetir.““A despedida no aeroporto é emotiva. Aqui não só conhecemos um povo, fizemos amigos. O pessoal de Batay vai fazer uma declaração de solidariedade ao povo do Complexo do Alemão, onde a polícia carioca matou, ao menos, 19 pessoas. Aliás, a polícia daí fala que estão usando o que as tropas brasileiras aprendem aqui. Afinal, o Haiti é aqui… e aí.“

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