No sexto dia, Eduardo Almeida visita comunidades de camponeses exploradas pela empresa que produz o licor Contreau e descobre a mística da união entre os trabalhdoresSan Rafael, duas horas de carro de Le Cap. Estamos em uma das passagens para a planície central do Haiti, uma zona usada pelos escravos na revolução como zona de refúgio. Hoje, San Rafael é centro de toda uma área de terras ocupadas por camponeses já há mais de vinte anos, com inúmeras lutas e prisões. Reúnem cinqüenta mil pessoas, em cinco comunidades, sob a direção de Batay Ouvriyé (Batalha Operária). Nesse momento um de seus líderes, Elio Pierre, está preso há seis meses.

Sou recebido pela coordenação das cinco comunidades. A reunião é debaixo de uma grande árvore. Sombra garantida em um dia quente. Era para ter umas vinte pessoas, mas aos poucos vão se juntando os ativistas que estavam por ali. No final, estão sentados comigo quase cinqüenta camponeses.

O primeiro fala com voz mansa como a luta pela terra começou junto com a revolução. Toussaint Loverture foi o general da independência, mas era também o representante das novas classes dominantes negras. A referência histórica de muitos por aqui era Moisi, um dos generais da libertação, o dirigente dos cimarrons , os quilombolas daqui, escravos fugidos que formavam comunas no interior. Moisi terminou sendo morto pelo próprio Toussaint, mas a luta seguiu desde então, até os dias de hoje.
Outro conta a luta deles em Guacimal em 2002. A Cointreau, multinacional francesa, planta aqui as laranjas amargas com que faz um de seus licores mais famosos. Os trabalhadores são operários por seis meses (colhendo as laranjas e semeando novamente), e camponeses pelos outros seis meses. Nesse segundo período, trabalham nas mesmas terras para sua própria subsistência. A multinacional impôs que lhe dessem a metade de sua produção como camponeses.

Houve então uma luta duríssima, que durou vários meses, com muitos presos. Em um dos enfrentamentos morreram dois trabalhadores, Ipharés Guerrier e Fransilyen Eximé. A multinacional só recuou quando os mesmos camponeses, já transformados em operários se recusaram a colher a laranja da safra seguinte. A vitória de Guacimal ajudou a organizar as outras ocupações, e até hoje os mortos são reverenciados.
Eles contam como os latifundiários estão se organizando de novo para tentar tomar suas terras de volta, agora ajudados pela Minustah. Existe um tom de revolta ancestral, secular nessas vozes. Quando um fala, outro apóia, terminam quase num coro. Deram sua vida pelas terras que ocupam, e vão seguir dando. Senti de perto o pulso da história, o hálito da revolução nesses camponeses simples, sentados em volta de uma velha árvore.

Me escutam atentamente quando lhes falo como Lula está ampliando o agronegócio no Brasil, e não faz nada pela reforma agrária. Como engana os trabalhadores brasileiros com o papel “humanitário” da Minustah. Ficaram alegres quando lhes propus uma luta comum contra a Minustah e o apoio à luta pela libertação de Elio Pierre.

No final, uma cena bem semelhante às do MST no Brasil. Vários deles trouxeram uma grande pedra para o meio da roda. Um de seus líderes pediu que um dos presentes tentasse erguer a pedra. Vários tentaram sem conseguir, por seu peso enorme. Sugeriu então que dois tentassem. Conseguiram, com muito esforço. Depois, quatro pessoas- eu inclusive- levantaram a pedra com facilidade.

O coordenador falou então para mostrar como só podiam ser vitoriosos se estivessem juntos, e que mesmo a prisão de Elio Pierre poderia ter sido evitada se a reação fosse mais forte. Não falava à toa. Eles já tiraram da prisão na marra a vários de seus líderes. A lição serve para trabalhadores de distintos países, como o Brasil e Haiti.