Leia a carta divulgada por Zé Maria ao governador do Rio Grande do Sul, sobre as recentes perseguições a militantes políticos no estado

Assistimos alguns dias atrás, no Rio Grande do Sul, a uma operação policial que lembrou o triste período em que nosso país vivia sob um regime ditatorial. Casas de militantes políticos e sociais, conhecidos e reconhecidos, foram invadidas por policiais para cumprir um mandado de “busca e apreensão” expedido pela justiça. Foram levados documentos e textos políticos, livros e computadores. Entre os jovens atingidos, um é militante do PSTU e os demais são militantes de outros partidos de esquerda ou de movimentos sociais. Nos últimos dias, pelo menos três ativistas professores, da base do CPERS, também foram indiciados pela polícia do seu estado.

Nesta ofensiva de criminalização das lutas da juventude e dos trabalhadores, o senhor não está sozinho, governador Tarso.  No Rio de Janeiro, assistimos seguidos espetáculos de truculência e violência policial contra trabalhadores e jovens daquele estado, patrocinado pelo prefeito Eduardo Paes e o governador Sergio Cabral com sua PM (a última foi a agressão contra os profissionais da educação que estão em greve). Semanas atrás, a pedido do governo do Rio de Janeiro, foi feita “busca e apreensão” na casa de militantes ligados aos Black Bloc.

O que o senhor e seu colega do Rio estão fazendo representa, infelizmente, uma política seguida por todos os governos: a de retomar o controle político da situação, coibir as manifestações e tentar fazer retroceder o processo de mobilização popular desencadeado em junho. Obviamente isso coloca a todos os trabalhadores e suas organizações a tarefa de enfrentar, em todo o país, as tentativas de criminalizar as lutas, organizações e militantes políticos e sociais.

Mas, aqui, quero tratar particularmente do caso em curso no Rio Grande do Sul, estado governado pelo senhor e seu partido, o PT. O senhor é um dos principais quadros deste partido e um dos grandes defensores da ideia do chamado “Estado Democrático de Direito”, sobre o qual gosta tanto de falar e escrever. Foi essa mesma referência que o senhor buscou para reagir às primeiras denúncias contra a operação policial às lideranças do Bloco de Lutas de Porto Alegre.

Depois das tergiversações que já são praxe dos governantes nestas situações, o senhor defendeu a operação policial usando dois argumentos: o primeiro é que o “Estado Democrático de Direito” é regido por leis, e que desobedecê-las leva a consequências. A desobediência referida pelo senhor seriam os “atos de vandalismo” causando “depredação de patrimônio” nas manifestações. O segundo, é que tratava-se de ordem judicial, e que o governo não poderia fazer nada além de obedecer. Seria este o ordenamento necessário do tal “Estado Democrático de Direito”.

Vamos ao seu primeiro argumento, o de que a desobediência às leis, caracterizada pelas ações de “vandalismo e depredação”, gera consequências. Vamos fingir que o senhor fala sério quando o sustenta. Digo isso porque não há, nos inquéritos policiais, nada parecido com provas, ou argumentos minimamente consistentes, que relacione os jovens atingidos pela operação policial com estas ditas ações.

Mas vamos supor que houvesse uma acusação bem fundamentada contra estes jovens pelas ditas ações. Pergunto: por que a seletividade na aplicação da lei? Veja, governador, o senhor sabe tão bem quanto eu que a motivação primeira das manifestações em Porto Alegre foi o aumento abusivo do preço das passagens de ônibus. E o senhor sabe também que foi comprovado, pelo Tribunal de Contas do Estado, que as planilhas usadas para justificar o aumento estavam fraudadas para beneficiar as empresas de ônibus. O preço deveria ser menor do que é cobrado ainda hoje, mesmo depois de reduzida a tarifa para R$ 2,80. Isso, obviamente, causou e causa a depredação do patrimônio do povo que foi e segue sendo surrupiado pelas empresas de ônibus que cobram mais do que deveriam pela passagem.

Pelo que me consta, governador, não houve “busca e apreensão” na casa das autoridades responsáveis pela fraude nas planilhas. Nem na casa dos donos das empresas de ônibus que estão depredando o patrimônio dos usuários do transporte coletivo. O senhor pode me responder o por quê? Quebrar vidraças dos bancos afronta as leis do seu Estado Democrático de Direito, mas roubar dinheiro dos usuários do transporte coletivo, ou seja patrimônio das pessoas comuns, não afronta lei nenhuma? Por que o tratamento diferenciado, governador?

Mas deixemos de lado um pouco o episódio das manifestações de rua. Não tenho como deixar de fazer ao senhor uma pergunta que, creio, todas as professoras e professores do Rio Grande do Sul devem estar ansiosos para fazer: E a lei do piso nacional do magistério? Ela não faz parte do seu “Estado Democrático de Direito”? Por que o senhor tem desrespeitado esta lei desde que ela foi sancionada. Desrespeitou, inclusive, determinações do STF que mandou pagar o piso. E não consta que a polícia tenha realizado alguma operação de “busca e apreensão” na sua residência por descumprir a lei. Estou errado?

Que explicação damos a isso, governador Tarso Genro? Os professores e professoras do estado do Rio Grande do Sul são roubados em seu direito legal por ninguém menos que o governo chefiado pelo senhor. As leis do seu “Estado de Democrático de Direito” só protege o patrimônio das empresas e dos bancos? Das pessoas comuns, das professoras e professores e dos jovens não? Ou então é o senhor, a justiça e a sua polícia que estão sendo seletivos e só fazem cumprir as leis que protegem os empresários e os ricos, deixando os trabalhadores e os pobres ao “deus dará”? Ou são as duas coisas juntas, governador?

O segundo argumento, de que determinação da justiça tem de ser cumprida e o governo não pode fazer nada, me desculpe, mas também não me convence. Vou lhe contar duas histórias, governador. Uma ocorreu por volta dos anos 2000/2001, quando a justiça de Minas Gerais determinou a desocupação da Fazenda Tangará, na região de Uberlândia, que havia sido ocupada por trabalhadores sem-terra. O governador de Minas, na época Itamar Franco, simplesmente ignorou a determinação judicial e deu ordens expressas à PM para que não procedesse a desocupação. Essa situação perdurou por quase um ano, até o INCRA conseguiu desapropriar a fazenda, assegurando a posse da terra aos agricultores.

Em março 1989, governador, os operários da Mannesmann, em Belo Horizonte, ocuparam as dependências da fábrica em um conflito trabalhista. Imediatamente, veio a ordem da justiça para que a PM forçasse os operários a deixar a fábrica. Os trabalhadores resolveram resistir. Sabe o que aconteceu? O governador à época, Nilton Cardoso, do PMDB (veja bem governador: Nilton Cardoso!), chamou o comandante da Tropa de Choque e desautorizou o uso da tropa contra os operários, que acabaram ganhando a disputa com a empresa naquele momento.

Em nenhum destes dois casos, governador, me consta que tenha acabado o tal “Estado Democrático de Direito” em nosso país, ou mesmo em Minas Gerais. O que houve foi que estes governadores apenas fizeram uma escolha política perfeitamente normal. Mas foi uma escolha diferente da que o senhor fez aí, no Rio Grande do Sul. Me desculpe pela comparação com estes dois personagens, mas o senhor está fazendo por merecer.

E há ainda um terceiro aspecto que quero chamar a atenção do senhor, que tanto fala que preservar o “Estado Democrático de Direito” é cumprir as leis. Governador, as leis que estão aí são basicamente as mesmas que estavam em vigor na época da ditadura. Não houve mudanças importantes no arcabouço legal do país e o senhor conhece muito mais disso do que eu. Por esta razão, também continua intacto o mesmo aparato repressivo daquela época. Só que, hoje, parte deste aparato repressivo se encontra sob seu comando governador. O senhor sabe que, em uma das palestras feitas para os soldados da Brigada Militar, o companheiro Matheus, militante do PSTU e outras lideranças do Bloco de Lutas, foram apresentados (com direito a foto) como membros de organização criminosa? Em São Paulo, a polícia do governador Geraldo Alkmin fazia a mesma coisa com as lideranças do Pinheirinho, em São José dos Campos. Eram apresentados como bandidos e traficantes, ou seja, mentiras para emular a tropa contra o movimento. Acabou como todos nós sabemos.

E não há neutralidade nas leis ou nos aparatos repressivos. Não estão aí para proteger a todos igualmente, não. Vivemos em uma sociedade capitalista. As leis em nossa sociedade, bem como os aparatos repressivos que a aplicam, existem para proteger os privilégios dos grandes proprietários, contra o povo. O senhor mesmo já escreveu isso várias vezes, puxe um pouco pela memória. Era assim antes da ditadura, foi assim durante a ditadura e continua sendo assim depois do fim do regime militar. A forma de aplicar estas leis é que muda a depender do contexto político.

Para além do palavreado bonito que o senhor gosta tanto de usar, governador, as ações do seu governo (não é só no aspecto da criminalização dos movimentos, mas também no tratamento das reivindicações dos trabalhadores. Os trabalhadores na educação pública que o digam) explicitam claramente uma escolha. A escolha de governar o estado aplicando as leis que garantem os privilégios dos grandes grupos econômicos, a começar pela garantia da propriedade privada. Ou seja, contra os interesses do povo que o elegeu, governador Tarso Genro. E por isso reprime quem luta contra isso.

Repetir procedimentos comuns na época da ditadura, como fez neste momento a sua polícia contra as lideranças do Bloco de Lutas não é, portanto, mera coincidência. Os militares que deram o golpe em 64 também estavam a serviço de proteger os privilégios dos grandes grupos econômicos contra o povo.

O senhor se considera um democrata, e eu sei que o senhor lutou contra a ditadura. Estivemos juntos naquela luta e tenho obrigação de registrar isso aqui. Mas olha só até onde a escolha política feita pelo PT levou o senhor e seu partido, governador. Elas nos colocam, hoje, em trincheiras opostas. Antes lutávamos juntos contra a exploração e a opressão dos trabalhadores e jovens. Hoje, o senhor ajuda a manter os privilégios das grandes empresas que são a fonte da exploração e opressão contra o povo. Antes nós lutávamos juntos contra as “buscas e apreensões” nas casas dos militantes de esquerda, contra a repressão aos movimentos. Hoje, a sua polícia faz “busca e apreensão” nas nossas casas e reprime aqueles que continuamos na luta.

Não é com alegria, governador, que eu constato o tamanho da distância que se colocou entre nós. Mas sou forçado a considerar que isso é resultado daquilo em que se transformou o PT, um partido que ajudei a fundar. Partido da ordem é partido da ordem, e defender a ordem implica em atacar quem luta contra ela. É o que o senhor está fazendo neste momento. Frente ao que ocorreu aí no seu estado, eu não podia deixar de dizer isso ao senhor. Desculpe pela franqueza, mas é isso.

Em tempo, como fiz questão de relacionar, sem tergiversações, as ações do seu governo às escolhas feitas pelo PT, o seu partido, quero dizer também que sei que dentro do PT há ainda muitos militantes abnegados, classistas e socialistas. Vários deles lutam no movimento ombro a ombro conosco e tenho por eles muito respeito.

São companheiros de luta que, por outro lado, precisam também fazer escolhas. Os acontecimentos recentes no Rio Grande do Sul (se quisermos tomar apenas este exemplo) são graves, e remetem necessariamente a conclusões  e a escolhas. É uma reflexão a que convido estes valorosos companheiros. A nossa vida é feita de escolhas e, às vezes, não fazê-las significa por si só, uma escolha.

São Paulo, 5 de outubro de 2013

Zé Maria é metalúrgico e presidente nacional do PSTU

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