Valério Arcary
Luciana Candido

Publicamos, abaixo, entrevista concedida por Valério Arcary à revista Caros AmigosA América Latina entre a ruptura e uma nova utopia capitalista

“Não há uma diferença substancial, de natureza, entre os governos Chávez e Lula: ambos se mantêm nos limites do regime burguês. Em situações distintas, ambos pretendem uma “utopia contemporânea” destinada ao fracasso: a impossível regulação social do capitalismo”, afirma Valério Arcary, para quem a América Latina vive uma vaga revolucionária que, para ser vitoriosa, exige a ruptura com o imperalismo. Membro da direção nacional do PSTU, doutor em história social pela USP e autor dos livros As Esquinas Perigosas da História (Xamã, São Paulo, 2004) e O Encontro da Revolução com a História (Xamã e Sundermann, São Paulo, 2006), Arcary concedeu a seguinte entrevista a Caros Amigos:

O que está acontecendo na América Latina? Estamos vivendo um novo período revolucionário?
A América Latina chegou a um novo momento de impasse histórico. Há uma crise de proporções catastróficas, graças à recolonização, que se acentuou nos anos 90. Nos últimos quinze anos sofremos processos de desnacionalização e desindustrializaçã o, de aumento das desigualdades sociais. Esse processo, mais acentuado num país, menos em outros, fez com que todas as chagas históricas do nosso continente adquirissem proporções colossais. Hoje, a maioria de sua população vive na miséria biológica, mal consome todos os dias as 2.000 calorias indispensáveis para a pessoa manter o mínimo de saúde física e mental. Apesar de as taxas oficiais de escolaridade se elevarem, mais de metade da população não atribui sentido à linguagem escrita. A concentração da propriedade, urbana ou rural, agrária ou industrial, móvel ou imóvel, adquire proporções muito mais elevadas do que no passado. Todos esses elementos se acumularam de tal maneira que se esgotou uma experiência histórica. A partir da virada do milênio abriu-se uma situação revolucionária no conjunto do continente, com situações nacionais diferentes.

Não soa irônico que justamente um militar de carreira, ao chegar ao poder, na Venezuela, tenha assumido a defesa de um projeto socialista para a América Latina, o “socialismo do século 21”?
É o padrão da América Latina, não é um fenômeno novo. Chávez está associado a uma corrente militar nacionalista, cujo horizonte histórico se encontra nos limites do capitalismo, mas que se radicaliza contra a exploração imperialista, contra as frações burguesas oligarquizadas. Prestes surgiu no Brasil, nos anos 20, liderando o tenentismo, como um movimento que expressava a radicalização das novas classes médias urbanas contra a burguesia agrária da República Velha. No México, o general Lázaro Cárdenas suspendeu o pagamento da dívida externa, depois da crise de 1929, e só voltou a pagar ao final da Segunda Guerra. Nos anos 70, houve a experiência do general Velasco Alvarado, o chamado socialismo militar, no Peru, e a do general Juan Torres, na Bolívia. Então, não há uma surpresa histórica. Mas, podemos falar da crise da esquerda venezuelana: se o nacionalismo militar radicalizado adquire um peso tão grande, isso diz muito do que aconteceu com a esquerda, e não só na Venezuela. Nos últimos quinze anos, houve um furacão, um tsunami político, que tornou a esquerda latino-americana irreconhecível. Para quem, da nossa geração, viu o que foi o sandinismo na Nicarágua no final dos 70, a Frente Farabundo Marti em El Salvador, para quem se lembra o que era toda a esquerda inspirada no exemplo da Revolução Cubana – como os montoneros e os tupamaros – e até os grandes partidos comunistas que tinham peso de massa, como no Uruguai, hoje o quadro é desolador. Ex-montoneros colaboram com Kirchner, na Argentina, Daniel Ortega colabora com as frações mais poderosas da burguesia nicaragüense, e por aí afora.

O que significa, para você, o “socialismo do século 21”?
É um projeto que mantém as relações de propriedade capitalista e uma economia de mercado com um papel regulador forte do Estado, cujo objetivo é garantir não só o funcionamento dos serviços públicos, mas um certo controle de preços sobre as mercadorias mais essenciais. É, fundamentalmente, uma utopia do mundo contemporâneo, um projeto de regulação social do capitalismo. Todas as tentativas históricas que foram feitas nesse caminho, até hoje, fracassaram. O capitalismo não é regulável, a ruptura é inevitável. O capital aceita negociações e faz concessões apenas se houver perigo de revolução. Historicamente, podemos ver três experiências em que o capital esteve disposto a fazer concessões: no final do século 19, depois do terror que foi para a sociedade burguesa européia a Comuna de Paris; à luz da experiência trágica dos anos 30 do século 20; e após a tragédia produzida pela Segunda Guerra, que abriu o caminho para novas revoluções, porque existia outubro de 1917 como exemplo. O capitalismo europeu, no quadro do Plano Marshall, fez concessões às classes trabalhadoras e negociou reformas. Em certa medida, o pacto social do pós-guerra criou uma regulação limitada, estabeleceram- se limites para a exploração da força de trabalho, reconheceram- se direitos da classe trabalhadora. Esse grande acordo explica por que o período da Guerra Fria foi, em grande medida, de certa estabilidade no centro do sistema. Mas, nas sociedades periféricas, esse pacto nunca existiu. As concessões são sempre transitórias e efêmeras. Podemos dizer, por exemplo, que nos anos 50 foram feitas concessões ao trabalho no Brasil, com a garantia da estabilidade de emprego, com a consolidação das leis do trabalho (CLT), mas isso decorria, em grande medida, de um fato fundamental: quando acabou a guerra, no Brasil, à parte Vargas, o líder popular com maior prestígio era Luís Carlos Prestes, eleito ao Senado com 10 milhões de votos, líder de um partido comunista com influência de massas. Depois disso, a Constituição de 1988 consagra, formalmente, a extensão de direitos que correspondem à intensidade da luta de classes nos anos 80. Uma das concessões mais extraordinárias foi a extensão do direito de aposentadoria para os trabalhadores rurais, provavelmente a política pública de distribuição de renda mais significativa da história do Brasil dos últimos cinqüenta anos.

Na Bolívia aconteceu uma coisa que parece ser nova, o protagonismo dos povos originários, que também se manifestam com força no México e no Equador. O que significa isso?
Significa o despertar de grandes massas indígenas camponesas que viviam como subcidadãos dentro de suas próprias nações. O campesinato latino-americano foi a vanguarda, lembremos, da primeira grande revolução do século 20, no México. Hoje, o seu novo protagonismo decorre das seqüelas do ajuste neoliberal. Os planos de estabilização da moeda, sobretudo, destruíram as condições mais elementares de vida das comunidades camponesas. E, por outro lado, a crise econômica crônica criou na América Latina um fenômeno novo que é o movimento da migração em massa para os países centrais: 25 milhões de latino-americanos foram para o Japão, Europa Ocidental e, majoritariamente, para os Estados Unidos. Uma parte da juventude vai embora, foge de seu país, isso deixa seqüelas imensas: pauperismo, desemprego crônico, miséria biológica. As comunidades camponesas atravessaram o século 20 na pobreza, mas não podemos falar em fome. Já nos anos 90, vemos fenômenos de desnutrição, queda da acessibilidade à escola, regressão em muitos indicadores sociais chaves, queda nos padrões médios de vida, e fome. No Brasil, algo em torno de 100.000 bolivianos trabalham em condições de semi-escravidão, e ainda assim o movimento de imigração não se interrompe. Por quê? Por causa da mercantilização da terra, de todos os produtos fundamentais, porque não há condições mínimas para eles poderem responder às suas necessidades. Então, há um protagonismo com dinâmica revolucionária.

Por outro lado, aconteceu uma coisa muito interessante nos últimos dez anos: o movimento de massas derruba não mais ditadores, mas sim presidentes eleitos, como no Equador, na Bolívia, na Argentina. O que isso indica?
É um fato histórico novo. Nunca antes dessa experiência tínhamos revoluções democráticas contra o regime democrático liberal. As situações revolucionárias abriam-se, essencialmente, em situações terminais, contra regimes de exceção, ditatoriais. Agora, desabou o tabu marxista de que insurreições não triunfavam contra regimes legitimamente sufragados. Ao longo dos últimos vinte, 25 anos, tivemos na América Latina regimes democráticos que herdaram, das antigas ditaduras, economias semicoloniais, com uma inserção mais frágil no mercado mundial e Estados com peso debilitado no sistema internacional. A estagnação produziu o agravamento de todas as doenças sociais: delinqüência, marginalização em grande escala, o avanço do crime organizado, a lumpenização das sociedades, a migração em massa, a decadência da educação pública, das artes, da cultura. Mas as sociedades não podem mergulhar no abismo indefinidamente. Essa nova vaga de revoluções democráticas é uma reação. Graças à nova vaga, Tabaré, Lula, Ortega, Kirchner não podem mais fazer o que Menem, Fernando Henrique e Fujimori fizeram na Argentina, no Brasil ou no Peru. Mas o problema de fundo permanece: os imigrantes não voltaram, o desemprego, mesmo quando diminuiu, manteve-se num patamar muito mais elevado do que era o quadro anterior. Haverá uma segunda onda, provavelmente ainda mais radicalizada, de mobilizações da América Latina. O problema de fundo é que o proletariado brasileiro não voltou a cumprir o papel que teve em 1978 ou 1984. Em algum momento, entre 1993 e 1995, ocorreu no Brasil uma inversão global de forças em relação ao período que se abriu entre 1978 e 1989.

Estatísticas recentes da ONU dizem que o Brasil entrou para o clube dos países mais desenvolvidos. Isso não é contraditório com o quadro de decadência que você descreve?
A dinâmica da sociedade brasileira não é ascendente. Como explicar que entre 3 e 5 milhões de brasileiros (ninguém sabe exatamente quantos são) fugiram do Brasil nos últimos dez anos, para viver em condições subumanas, em subúrbios dos Estados Unidos, de Portugal, de Londres, do Japão? Esses milhões de pessoas estão entre os mais capazes da juventude, e não por acaso remetem 10 bilhões de reais para o Brasil. As massas tentam reagir contra a decadência. Primeiro, procuram combinações do voto com soluções negociadas: são os governos de centro-esquerda, uns com uma retórica mais radical, como em La Paz e em Caracas, outros com uma retórica muita mais moderada, como em Brasília, Buenos Aires e Montevidéu, mas com um projeto que, essencialmente, é o mesmo, de regulação do capitalismo periférico. Não vejo tanta diferença de projeto entre Kirchner, Lula e Evo Morales com suas políticas compensatórias. A rigor, para ser justo, o alcance dessas políticas na Argentina foi mais gigantesco. No Brasil foram beneficiadas 11 milhões de famílias, o que corresponde a algo como 15 por cento da população economicamente ativa (PEA). Na Argentina foram 25 por cento da PEA. O projeto que está sendo implantado na Venezuela não é muito diferente. No fundamental estamos discutindo o seguinte: o projeto de regular o capitalismo e atender à satisfação das massas com políticas sociais compensatórias tem fôlego ou é uma utopia?

Supondo-se que haja mesmo uma onda revolucionária no Brasil, aqui não existem, hoje, organizações de esquerda capazes de liderar movimentos de massas na via da ruptura com o capitalismo. Nesse caso, o que vamos presenciar? Vagas revolucionárias e subseqüentes derrotas?
Há uma acefalia, uma fragilidade da representação popular, pela assimetria – para usar um termo que os sociólogos gostam –, da representação entre as classes. A burguesia dos nossos países sabe que, para dominar, precisa controlar a representação das outras classes, então ela se representa a si própria e coopta, atrai as organizações que surgem das lutas populares. Mas nem sempre com completo sucesso, porque uma parte das lideranças não pode ser comprada nem corrompida. O material humano que surge e se desenvolve no combate dos trabalhadores latino-americanos, dos povos originários, dos camponeses, da juventude é extraordinário. Surgem nas lutas às dezenas, aos milhares. Há uma enorme energia, são países com um peso da juventude enorme. Então, desse ponto de vista, há elementos para ser otimista. Mas há uma outra dimensão do problema que é trágica, porque os líderes jovens que surgem no calor do combate não têm experiência. Esse é o grande desafio dos marxistas latino-americanos, o de estar presentes na primeira linha, ao lado dos novos lutadores, para que o fio de continuidade da história não se perca.

O PT e a CUT continuam sendo organizações de massa. Numa eventual retomada das grandes lutas, que papel eles vão jogar?
A CUT hoje é ainda uma grande central, mas dificilmente agrega mais do que trezentos sindicatos que se dispõem a pagar regularmente suas cotas sindicais. Há uma crise financeira tremenda. Se formos comparar quantos sindicatos cotizam da Conlutas e quantos cotizam da CUT, vamos ter uma proporção melhor de qual o peso efetivo de cada uma das centrais. A CUT já se esvaziou em grande medida, ela é hoje um braço do Ministério do Trabalho, então a sua força efetiva como aparelho é muito pequena. A capacidade da CUT de fazer uma mobilização nacional é menor que a da Conlutas.

Mas a CUT não está interessada em promover mobilizações…
Mas ela tem que fazer, digamos, uma mobilização de faz-de-conta, porque acordada com o governo. No fundo, uma mobilização para apoiar aquilo que já tinha sido negociado com o governo. Já no caso do PT, curiosamente, o seu peso eleitoral está muito mais concentrado nos setores mais atrasados do que no momento em que o PT cumpriu um papel progressivo, nos anos 80. Acho que hoje o PT tem um compromisso de fundo com a estabilidade do regime. Há algo de fundo que mudou, algo muito simples, mas muito profundo. O PT nos anos 80, até a instalação do Colégio Eleitoral, era oposição ao governo e ao regime. O PT era a oposição ao governo Figueiredo e era oposição ao regime, que era a ditadura. A partir da eleição do Colégio Eleitoral, lentamente o PT foi se deslocando, para ser oposição a Sarney, mas defensor do regime. Pela primeira vez, o PT cumpriu um papel objetivo na defesa do regime, quando ele apoiou a posse de Itamar Franco. Durante os oito anos de Fernando Henrique, o PT foi a oposição ao governo, mas foi um partido do regime. Isso significa que o PT deve lealdade às instituições, reconhece legitimidade no Supremo Tribunal Federal, a legitimidade do Estado-Maior das Forças Armadas, dos tratados internacionais que o Brasil herdou, muitos da época da ditadura. O PT está integrado ao regime. Um partido da ordem não apóia mobilizações sociais para desestabilizar a ordem.

Mas essas políticas encontram apoio entre as massas…
Em nenhuma sociedade as classes medem forças frontalmente antes de terem esgotado todas as possibilidades de resolver o conflito através de negociações. Não vejo por que o Brasil e a América do Sul seriam diferentes. Ao longo do século 20, você verá que a busca da saída revolucionária só se impôs depois que a expectativa da mudança através de reforma tinha sido ensaiada uma, duas, três, quatro vezes, demonstrado para milhões de pessoas que não é possível mudar a sociedade sem luta.

José Arbex Jr. é jornalista e editor especial de Caros Amigos