Desde suas origens, na Antiguidade, os festejos carnavalescos mantêm uma relação conflituosa com os poderosos de plantão. Tentativas de domesticação e controle da festa por parte das elites nunca faltaram. Em tempos neoliberais, contudo, esta história tem assumido formas pra lá de absurdas. Em 2010, não faltaram exemplos disto, como também, felizmente, são crescentes os exemplos da resistência para manter a festa ligada às suas raízes populares e rebeldes

Para aqueles que não lembram, o Carnaval, que muitos têm como uma festa tipicamente brasileira, nasceu na Grécia Antiga, séculos antes do cristianismo sequer existir. Na época, as festas eram relacionadas aos deuses vinculados à colheita e à renovação da vida. Por isso, poderiam ser chamadas de Saturnais (Saturno), Dionisíacas ou Bacanais, referências a Dionísio ou Baco, o deus da festa, do prazer e do vinho, para gregos e romanos.

Quando os cristãos chegaram ao poder na Europa, por volta dos anos 300 d.C, existiram várias tentativas para colocar um ponto final na festa evidentemente identificada com deuses pagãos e práticas sociais marcadas pelos excessos e desrespeito às regras. Foi assim que, por volta do ano 1000, surgiu o termo carnelevamen, que, em latim, que dizer “adeus à carne” ou “prazer da carne”.

A ideia era simples: na impossibilidade de acabar totalmente com a festa popular, a Igreja a incorporou ao seu calendário, transformando o anárquico festejo pagão na “terça-feira gorda”, último dia em que os fiéis poderiam comer carne e fazer sexo antes da Páscoa.

De lá para cá, o Carnaval foi se reinventando século após século, de país em país. Virou Mardi Grãs, em Nova Orleans, capital da música negra e do jazz, nos EUA; manteve a tradição das máscaras e fantasias em Veneza, na Itália; e, ao ganhar o tempero africano, o samba e o batuque, transformou-se, no Brasil, na festa que todos conhecemos.

Contudo, se é verdade que o carnaval resiste, também é um fato que, hoje, ao contrário de estarem preocupados em limitar os prazeres da carne, como na Idade Média, a elite está muito mais a fim de usar o Carnaval para defender seus interesses, propagar sua ideologia e transformar em espetáculo seus valores e visão de mundo. Um verdadeiro “carnavalores”.

Controle e resistência em terras tupiniquins
No Brasil, as tradições portuguesas, principalmente do entrudo (marcado pela prática de sair pelas ruas jogando água e todo tipo de sujeira em quem quer que passe), adentraram os cortiços, foram apimentadas pelas “tias baianas” que viviam no Rio, no começo do século 20, e rapidamente ganharam as ruas.

Como umas tantas outras desgraças autoritárias de nossa história, as tentativas de controle sobre os festejos se acirraram durante a ditadura de Getúlio Vargas (1937 – 45). Foi no Rio de Janeiro, então capital federal, que, durante os anos da Segunda Guerra, Vargas impôs a idéia de samba-enredos temáticos e obrigatórios.

De lá até o samba-patrocínio, marca-registrada dos anos 2000, foi um pulo e os enredos das escolas se curvaram cada vez mais aos interesses dos poderosos, sejam os encastelados nas prefeituras e palácios de governo, sejam os donos do capital que se escondem por trás deles.

Nota 10 em exaltação do capital
Nada mais natural que, no decorrer dos séculos, as elites dominantes tenham investido pesado na tentativa de se apropriar da maior festa popular do planeta para fazer a única coisa para qual existem: levantar os lucros e propagar sua asquerosa visão de mundo. Foi assim na Idade Média, com a Igreja; foi assim com Vargas e durante a ditadura militar; e continuará sendo assim até que nos livremos da sociedade de classes.

Vale lembrar que são muitos os exemplos do passado, e ainda no presente, que indicam que o Carnaval é uma daquelas tradições milenares e realmente populares que, dificilmente, será totalmente controlada, independentemente de quem esteja no poder. Estão aí os afoxés, os blocos de rua, as marchinhas, as nações de maracatu e o carnaval de rua país afora para provar isto.

No entanto, seria de extremo idealismo e razoável ingenuidade não perceber que, numa sociedade mergulhada em valores neoliberais como o consumo, a celebração do individualismo e da ascensão social e a exaltação de tudo o que é privado, em detrimento do coletivo e público, a situação tenha chegado, de fato, a um ponto extremo. Em alguns dos principais pólos carnavalescos do país, Rio, São Paulo e Salvador, em particular, as marcas dos interesses e da ideologia do Capital se fazem onipresentes.

Isso fica particularmente evidente nos enredos das principais escolas de samba, como também nas manifestações mais grotescas do que se convencionou chamar de axé music.

Samba enredo ou arremedo de samba?
Responda (ou cante) rápido: qual foi o melhor samba-enredo deste ano? É provável que até mesmo os mais carnavalescos tropecem na hora de cantarolar a música. Afinal, há décadas não surge um samba-enredo que tenha conquistado o público e entrado para a história da música brasileira.

Uma primeira explicação é o simples fato de que, hoje em dia, os enredos, raramente, dizem alguma coisa com a qual a população possa, de fato, se identificar. Impostos pelos patrocinadores, escolhidos com base em critérios que pouco têm a ver com criatividade e feitos sob encomenda pelos sambistas de escritório (compositores que recebem até R$ 40 mil para produzir sambas em série para as escolas), os sambas-enredo atuais são descartáveis, servindo apenas como trilha sonora para os exuberantes espetáculos criados pelos carnavalescos.

Por estas e outras (e correndo o risco de cometer uma injustiça histórica), há muito não se ouve nada como “Aquarela do Brasil” e “Bumbum Paticumbum Prugurundum” (Império Serrano, 1964 e 82); “Bahia de todos os deuses” (Salgueiro, 1969); “O mundo melhor de Pixinguinha” (Portela, 1974); “É hoje” (União da Ilha, 1982) ou “Kizomba, a festa da raça” (Vila Isabel, 1988).

Pelo contrário, o que tem entrado por um ouvido e saído pelo outro, sem deixar saudades, é um amontoado de rimas fracas em letras esdrúxulas. A crise é tão grande que, há anos, temos visto, principalmente na Sapucaí, a tentativa de reviver os grandes sambas do passado.

Na raiz da crise, está a vontade dos cartolas e carnavalescos das escolas que, a exemplo de Emerson Nunes, diretor de Comunicação da Leandro de Itaquera, em São Paulo, não escondem seus motivos: “Os compositores não podem viajar muito (…). Como o investimento é alto, aconselhamos que as letras sejam escritas por um colegiado de sambistas” (O Estado de S. Paulo, 14/2/2010), o que pode incluir desde um parente do cartola até o assessor de imprensa de uma empresa.

O resultado não poderia ser outro: a mediocridade corre solta na Sapucaí e no Sambódromo de São Paulo. Exemplos não faltam. A Salgueiro, uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio, levou às ruas um tema cheio de boas intenções sociais, com o enredo “Histórias sem fim”, sobre a história do livro. Contudo, há um detalhe que não pode ser esquecido: o amor à leitura só saiu às ruas por encomenda da Ediouro, uma das mais poderosas editoras do país.

A Acadêmicos do Tucuruvi recebeu cerca de R$ 250 mil do Estado do Maranhão e da prefeitura de São Luis para homenagear a terra controlada pelo clã Sarney, além de ter contado com a assessoria pessoal de Roseana Sarney para levantar patrocínio com as empresas maranhenses.

A Grande Rio passou pela Sapucaí com um arremedo de samba, supostamente em homenagem aos 25 anos do sambódromo da Sapucaí, que tinha como título “Das arquibancadas ao camarote n° 1, um Grande Rio de emoção na apoteose do seu coração”, uma referência descarada à fabricante da Brahma, patrocinadora do camarote que recebeu Madonna. Para brilhar na avenida e no camarote, a Ambev investiu R$ 3,5 milhões dos R$ 9,5 milhões declaradamente gastos pela escola.

Outro patrocínio que transpôs as barreiras do absurdo foi o da Portela. O enredo já tinha um nome completamente absurdo – “Derrubando fronteiras, conquistando liberdade… Rio de paz em estado de graça” –, mas pior ainda era a letra, que deve ter feito velhos e dignos portelenses, como Candeia, se revirarem nos túmulos, imposta pelo patrocinador do desfile, a Positivo, maior fabricante de computadores do país: “Num clique (…) acessa o amor digital / Faz da criança cidadão. Positivo pra nação”.

Aliás, por trás da guerra pelo patrocínio que tem sacudido as Escolas, ainda é possível perceber outra marca registrada do capitalismo: a hipocrisia em tudo que se refere a temas como liberdade de expressão, livre concorrência e temas afins. O melhor exemplo disto foi dado pela a relação promíscua que se estabeleceu entre a Rede Globo e a escola paulista que acabou levando o campeonato deste ano, a Rosas de Ouro.

A Rosas foi patrocinada pela Cacau Show, fabricante de chocolates, que não faz parte do bilionário pacote publicitário da Globo. Como consequência, a emissora impôs e conseguiu, duas semanas antes do Carnaval, uma censura ao samba-enredo originalmente escrito para a empresa. Assim, o principal refrão da letra, que era “o cacau é show”, virou “o cacau chegou”. O fato de a festa da vitória na quadra da escola ter terminado com uma violenta invasão policial, só acrescenta mais um elemento lamentável nesta lambança.

Além da iniciativa privada, as escolas ainda contam com a dependência dos cofres públicos e dos interesses daqueles que se apropriaram deles. Assim, este ano, tivemos duas vergonhosas homenagens a Brasília, uma em São Paulo, com a Tom Maior, e outra no Rio, com a Beija-Flor. Ambas tiveram em comum tirar da história da cidade todos seus aspectos negativos, desde o infeliz destino dos candangos que a construíram até o mar de lama e dinheiro embutido nos locais mais bizarros em que a capital está mergulhada.

A escola paulista escolheu o enredo pensando em conseguir apoio do Governo Federal, que não saiu e deve ter contribuído para que a Tom Maior ficasse em antepenúltimo lugar no Carnaval 2010. Já a carioca teve de conviver com o vexame de ter seu principal patrocinador, o governador de Brasília, José Roberto Arruda, preso na véspera da festa. O que não impediu, contudo, que R$ 3 milhões roubados dos cofres públicos tenham ajudado a escola a atravessar a Sapucaí.

Outra cidade que desfilou pelo Sambódromo de São Paulo, também às custas de cervejarias e dinheiro público, foi Ribeirão Preto, terra natal do chefe-mensaleiro petista Antonio Palloci (um dado sequer mencionado no desfile).

Fora do eixo Rio-São Paulo e dos sambódromos, a história, infelizmente não é muito diferente. Na Bahia, em plena comemoração dos 60 anos da saída do primeiro Trio Elétrico de Dodô e Osmar – na época, uma ideia irreverente e cheia de energia popular – os atuais monstrengos motorizados, que custam, em média, R$ 3 milhões, atravessaram a Ondina e o Circuito da Barra ao som de abominações musicais como “Rebolation” e “Lobo Mau”, exemplos lamentáveis do quanto de vulgar e descartável pode caber na chamada axé music.

Repressão e carnaval: nada a ver
Uma das piores distorções que as elites têm imposto ao Carnaval é o clima opressivo e repressivo que cerca os festejos. Distanciando-se de qualquer coisa que possa lembrar as festas em homenagem a Baco, um libertário por definição, o que temos visto, além de episódios de repressão em todos os cantos, é exaltação de valores e aparatos repressivos.

Um dos exemplos mais contraditórios e polêmicos foi dado pela São Clemente, que reconquistou sua vaga no Grupo Especial do Rio com um enredo em homenagem à nefasta Operação Choque de Ordem, que o prefeito peemedebista e aliado de Lula, Eduardo Paes, está tentando impor com punhos de aço sobre a população.

Por mais que alguns digam que o choque de ordem foi abordado de forma crítica, o fato é que, durante o desfile, acompanhado pelo secretário especial de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, convidado do camarote da diretoria, o que se viu foi uma ala representando prefeito, subprefeitos e secretários como xerifes legais e outra com meninos de rua de verdade que, segundo a própria escola, estavam ali para demonstrar como “meninos e meninas de rua são acolhidos e recebem amparo amoroso desse ordenamento”. A vitória da escola no Grupo de Acesso foi saudada pelo jornal O Globo com a manchete “Quando o choque de ordem dá samba”.

Na Bahia, como se não bastasse a baixa qualidade de músicas recheadas de baixarias, preconceitos e outras tantas marcas da ideologia dominante, os foliões que estiveram em Salvador ainda foram obrigados a ver cenas como a exaltação da força militar (das tropas de elite aos ocupantes do Haiti) feita por cantores como Xandy e Claúdia Leite, que se fantasiaram de milicos.

Carnaval pra inglês ver
Ano após ano, os holofotes e atenções da imprensa se voltam cada vez mais para os camarotes dos sambódromos e para o cortejo de celebridades descartáveis e famosos, dos mais diferentes naipes que invadem as escolas e os arredores da festa.

Este ano, a estrela da festa foi a cantora Madonna que, evidentemente, não veio ao Brasil somente para se divertir. Muito pelo contrário. A produtora de cervejas Ambev pagou nada mais nada menos que US$ 1 milhão para que a pop-star desse o ar da graça, por exatas duas horas, no camarote da Sapucaí e posasse pra fotos ao lado de gente como Dilma Rousseff e José Serra, cuja intimidade com o samba chega a ser vergonhosa.

No Rio, São Paulo ou Salvador, juntaram-se à material girl outras figuras como a insuportável Paris Hilton, uma infinidade de globais, celebridades instantâneas de todos os tipos e origens e, evidentemente, a nata da classe política e econômica do país.

Outros carnavais ainda virão…
Apontar o quanto o Carnaval está contaminado pelos interesses e ideologia dominante não pode significar um repúdio à festa, aos milhões que nela se divertem nem às comunidades que se envolvem apaixonadamente na preparação da festa. Contudo, fechar os olhos para esta realidade não é a melhor forma de combater a situação. Pelo contrário.

Por isso mesmo, é importante valorizar toda e qualquer forma de resistência e manutenção do espírito rebelde do Carnaval. Seja aquele que, também de forma crescente, leva milhões aos blocos de rua – sem cordões ou abadás – seja aquele que impulsiona escolas paulistas e cariocas na tentativa de resgate de suas tradições.

Afinal, são nestas manifestações que resistem os ecos dos cantos em louvor a Baco ou, ainda, sobrevivem a alegria e a celebração pela vida, a irreverência dos mascarados, a ousadia dos verdadeiros foliões, elementos fundamentais para que, no tempo certo, resgatemos o verdadeiro sentido do Carnaval.