Como acontece todos os anos após o Carnaval, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, nesta quarta-feira, 6, a Campanha da Fraternidade 2008. O tema da campanha é “Fraternidade e defesa da vida”. O lema é a frase bíblica “Escolhe, pois, a vida”. Por trás dessa fraseologia está escondida a campanha contra a legalização do aborto.

A campanha tem, ainda, outros objetivos como a contrariedade à eutanásia, à reprodução assistida e às pesquisas com células-tronco. A Igreja Católica resolveu fazer, em pleno século XXI, uma campanha obscurantista contra o avanço da ciência e os direitos das mulheres. E, na prática, contra a vida.

O alvo principal
O ponto central da CF 2008, porém, é a questão do aborto. Na verdade, o objetivo da CNBB é bem explícito. A apresentação da campanha, composta por 54 slides, dedica um capítulo inteiro, chamado “A vida não-nascida”, ao tema, além de mensagens indiretas e citações em outros tópicos.

Não é para menos: em 2007, a luta pela legalização do aborto começou a ganhar fôlego. Apesar de não ter tirado do papel a lei que legaliza a interrupção voluntária da gravidez, o governo foi obrigado a debater o tema.

A visita do papa Bento XVI ao Brasil em maio passado também não foi o sucesso que a Igreja esperava. Em suas declarações reacionárias, defendeu a abstinência sexual e a excomunhão de políticos que fossem a favor de leis pró-aborto. Numa missa realizada na basílica de Aparecida (SP), o ultraconservador Bento XVI não reuniu nem um terço do número de pessoas esperado. Dos 500 mil católicos previstos, apenas 150 mil assistiram à missa dominical rezada por ele. Talvez os fiéis estejam cansando de tanto conservadorismo e opressão.

Apelação
A Igreja não poupa recursos para atacar o direito ao aborto. Numa inserção de TV de 30 segundos, a CNBB mostra famílias felizes. Numa delas, dois jovens com Síndrome de Down sugerem que, mesmo com deficiências, as pessoas podem ser felizes e, por isso, o aborto não pode ser realizado em nenhuma circunstância.

Essa cena, especificamente, visa combater a lei já existente de aborto legal em casos de anencefalia – constatação de ausência do cérebro no feto – que nada tem a ver com Síndrome de Down! Um globo faz papel de barriga para acomodar um feto perfeito. A voz do locutor diz: “a eternidade da vida em gestação”.

Na apresentação da campanha, a argumentação é fraca e cheia de moralismo. Em resposta à defesa do direito ao aborto, a Igreja diz que “para a mãe, o aborto traz problemas e para a criança, a morte nunca é o melhor.

Governo versus Igreja?
No ano passado, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, chegou a assumir algumas posições em defesa de projetos de lei que legalizam o aborto. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em junho, Temporão disse não admitir que “digam que o aborto não é um problema de saúde pública”. “Se considerarmos que o aborto é um crime, todos os dias, 780 mulheres teriam que ser presas, sem contar seus médicos e, eventualmente, seus companheiros”, completou.

Com o lançamento da CF 2008, o governo deixou explícito que não vai entrar em choque com a Igreja. Um representante enviado por Lula ao evento disse que o aborto não era assunto do governo. O teólogo petista Gilberto Carvalho disse à Folha que “quanto mais informação, mais educação, melhor. É por isso que o governo apóia abertamente essa campanha”.

Para Janaína Rodrigues, professora e representante da Conlutas, é impossível legalizar o aborto se não houver investimento público em saúde, políticas de orientação sexual e distribuição gratuita de contraceptivos. “Ele [Temporão] é a favor da legalização do aborto apenas na aparência, porque é parte do governo”, disse. Ela explicou que “se não investir, se não houver políticas públicas específicas para as mulheres, é impossível legalizar”.

Comprar a briga
Para as mulheres trabalhadoras e pobres, essa campanha é um ultraje. Falar em defender a vida é hipocrisia quando milhões não têm acesso a uma orientação sexual adequada, a métodos contraceptivos e a uma saúde pública gratuita de qualidade.

A saída, nesse caso, é a organização das mulheres e da classe trabalhadora. O movimento em defesa da legalização conta, inclusive, com as Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), que não se submetem ao atraso e ao ataque da Igreja.

Em reposta à CF 2008, as CDD lançaram um manifesto. No texto, elas afirmam que “defender a vida é criar condições para que se realize o direito a uma vida sem violência, sem desigualdade de nenhuma ordem, sem opressão, sem exploração, sem medo, sem preconceitos”.

As católicas questionam: “Pode-se afirmar a defesa da vida e desrespeitar o princípio fundamental à realização de uma vida digna e feliz, que é o direito de decisão autônoma sobre o próprio corpo? Condenar as mulheres a levar adiante até mesmo uma gravidez resultante de estupro, a não interromper uma gravidez que coloca a vida delas em risco, ou cujo feto não terá nenhuma condição de sobreviver?”.

Para Janaína Rodrigues, professora e membro da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), “a Campanha da Fraternidade é um exemplo de atrelamento entre o Estado e a Igreja na defesa dos projetos da burguesia e do governo, dos projetos políticos neoliberais”. Ela ressaltou que o aprofundamento da privatização da saúde pública e o seu conseqüente sucateamento, são os principais responsáveis pela situação de miséria em que se encontram mulheres e crianças.

“A culpa é sempre das mulheres, a Igreja e o Estado se utilizam arcabouços morais para penalizar as mulheres”, disse Janaína.

Agora, mais do que nunca, torna-se necessária a união das mulheres e da classe trabalhadora para contraporem-se a essa campanha ofensiva e atrasada. Defender a legalização do aborto é defender a vida e o direito das mulheres de arbitrarem sobre o próprio corpo.