Chavela e seu poncho vermelho

Silenciou para sempre nesse dia 5 de agosto a inconfundível voz de uma cantora cuja vida foi marcada pela rebeldia e um irresistível senso de liberdade. Chavela Vargas, costa-riquenha de origem e mexicana por opção, morreu em Morelos, no México, aos 93 anos. Acabara de voltar da Espanha, onde participou de uma homenagem a Garcia Lorca, e morreu em casa de causas naturais.

Reverenciada em seu país e reconhecida principalmente nessas duas últimas décadas, Chavela deixa a vida para entrar na história do cancioneiro popular latino-americano. Deixa como legado, além de suas canções, uma vida que tem na liberdade sua maior expressão.

Amante da liberdade, e de Frida Kahlo
Nascida María Isabel Anita Carmen de Jesús Vargas Lizan em 17 de abril de 1919 em uma pequena vila da Costa Rica, desde cedo expressou seu caráter rebelde e contestador. Era a única a usar calças na pequena San Joaquin Flores, o que não passaria despercebido e causaria escândalo. Reza a lenda que trazia sempre uma pistola embaixo de seu inseparável poncho vermelho, e que sequestrava donzelas indefesas em um cavalo branco. Fugindo de desentendimentos familiares e buscando seu lugar no mundo, a cantora se mudou para o México aos 17 anos.

Começou cantando nas ruas a ‘ranchera’, tradicional música popular do México, rompendo com a cultura machista do meio. Encontrou o compositor José Alfredo Jiménez para fazer as canções que marcariam as décadas seguintes de sua carreira, como “Volver, volver”, e para gravar o primeiro disco, o que só viria a fazer aos 32 anos.

Mais do que técnica, sua voz de forte tom emocional conferia sempre uma visceralidade às canções que levava plateias inteiras às lágrimas. Tamanha era a emoção em que interpretava as músicas que mais pareciam prantos em notas musicais. Canções recheadas de amores perdidos, paixões lancinantes e porres de tequila, sua bebida favorita. Chavela Vargas foi daquelas que transformaram sua própria história em obra e legado. Em um debate com estudantes, afirmou: “Lhes deixo como herança minha liberdade, que é o mais precioso do ser humano”.

Teve a oportunidade de conhecer alguns dos maiores artistas do século XX, tendo convivido com o muralista Diego Rivera e tido como amante Frida Kahlo. ”Éramos uma gente que vivia dia por dia, sem um centavo, talvez até sem o que comer, mas mortos de tanto rir”. Chegou a conhecer Trotsky na casa de Frida, numa passagem hilária em que relata em entrevista ao espanhol El Pais: ”E um dia chegava ali Trotsky e me parecia a coisa mais natural, não me espantava. Eu perguntava: Quem é esse velho cabeludo? E Frida me dizia: Trotsky, cala-se Chavela, não fale tão alto”.

Até o último momento
Vitimada pelo alcoolismo, Chavela amargou anos de ostracismo até o cineasta Pedro Almodóvar apresentar ao mundo a voz llorona de Vargas nos anos 1990 através de seus filmes. Fora dos países hispânicos, a cantora é conhecida pela presença nos filmes do espanhol e em filmes como Frida e Babel. O cantor espanhol Joaquin Sabina homenageou a cantora com sua canção “Por el boulevar de los sueños rotos”, cujos versos relatam: “Las amarguras no son amargas/ cuando las canta Chavela Vargas”.

Manteve seu espírito indômito até os últimos momentos de vida. Advertida por médicos sobre seu estado precário de saúde e a proibição de beber, ela disparou: “Não sou rica, não levarei nada quando morrer, assim vamos rir e não vamos esquentar a cabeça que este é a última etapa”.

Até os últimos dias, com os pulmões fracos, fadigada e doente, recusou hemodiálise ou qualquer meio de prolongar artificialmente a vida. Fez questão de morrer em casa, com dignidade. “Porque nunca ninguém lhe disse o que fazer”, relatou sua amiga e biógrafa, Maria Cortina, que disse que “La Chamana” foi-se serena, com um sorriso estampado no rosto.