Thiago (Leonardo Medeiros) e Rosa (Débora Duboc)
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Quem viveu na carne aqueles anos de chumbo não sai do cinema da mesma maneira que entrou. Impossível ficar indiferente, frio, calculista diante do filme de Toni Venturi, Cabra Cega, em cartaz nos cinemas. Venturi, que também viveu os tempos da ditadura militar, não fez um filme. Dedicou um poema a todos aqueles que deram a vida pela liberdade e pela dignidade humana.

A polícia estoura um aparelho. Um casal de guerrilheiros sai atirando. Ele é ferido, ela é presa e vai para um centro de tortura. Ao contrário dos filmes tradicionais, que sempre mostram a tortura sendo praticada em casas que ninguém sabe onde fica, aqui ela é praticada dentro dos próprios quartéis. Venturi faz questão de mostrar que a tortura era praticada dentro do exército, com os soldados vendo tudo.

Mas o filme não é sobre tortura. As cenas mais pesadas são poucas. O filme se passa, quase que todo, dentro de um apartamento onde o guerrilheiro ferido se esconde, levado pelo dirigente de sua organização, interpretado pelo ótimo ator Jonas Bloch. Com isso, Venturi cria um clima de sufocamento, um clima de “sem saída”, com todas as janelas e cortinas fechadas, um susto a cada toque da campainha, um pulo a cada toque do telefone, um tremor sempre que alguém abre a porta. Assim se passam os dias de Thiago, o guerrilheiro escondido, e também se passam as duas horas em que ficamos no cinema, olhando para a tela. A cada momento os policiais ou os militares podem chegar e matar Thiago.

O sufoco é tanto que cria um contraponto com as cenas rodadas fora do apartamento. Quando Thiago vai jantar na casa de uma senhora espanhola, cujo filho morreu durante a ditadura franquista, sentimos que somos transferidos para outro filme. Ela vive no apartamento em frente, e encontrou em Thiago as lembranças de seu filho. Ela quer protegê-lo, ajudá-lo em sua luta contra a ditadura militar, porque havia se recusado a dar a mão a seu filho quando ele mais precisava, e agora queria reparar esse erro. A ditadura é a mesma em qualquer lugar do mundo, e a luta contra ela também.

Em outra cena, Thiago e Rosa, a militante que cuida de seus ferimentos, saem na cobertura do edifício e sentem o vento na cara, a liberdade de poder olhar o céu, de dançar e amar. E olham para a cidade grande e se perguntam: será que eles sabem o que estamos fazendo? Sabem que estamos lutando por eles?

Thiago passa o tempo todo querendo sair do apartamento, para continuar a luta armada. Mas o cerco em torno dele vai se fechando, fechando, fechando até o belíssimo desfecho do filme.

Toni Venturi faz cinema, não faz uma avaliação política da guerrilha. Por isso, seu filme é tão bom. Ele pisa no governo militar, o carrasco dos guerrilheiros e de todos nós. Mas não exalta a guerrilha. Mostra que os guerrilheiros cometiam erros, que lutavam de forma isolada da classe trabalhadora e do povo brasileiro e por isso foram derrotados. Mas faz isso de forma, digamos, fraternal, respeitando combatentes heróicos, que deram a vida por essa luta. Venturi mostra que os guerrilheiros eram humanos, militantes políticos cheios de contradições, de sonhos, e que entraram em desespero total diante do cerco e da crueldade sem limites da ditadura militar. Quando todos estão “caindo”, a organização decide suspender a luta armada, “para não perder a todos”. Mas Thiago não concorda; ele queria ir até o fim. Equivocado, mas com uma enorme coragem e determinação.

Pontuado pela maravilhosa trilha sonora, de Fernanda Porto, o filme flui e te leva às lágrimas. Algumas das mais belas canções da música popular brasileira entram em harmonia perfeita com as cenas, descrevendo-as quase literalmente. Não, Toni Venturi não fez um filme. Prestou um tributo aos que aderiram à luta armada. Mas não apenas a eles, também aos que não pegaram em armas, mas estivemos nas passeatas, nas greves, nas assembléias estudantis, nas portas das fábricas, lutando dia e noite, noite e dia, nos sentimos homenageados. Todos nós, que também tivemos companheiros mortos e torturados; todos nós, que colocamos os melhores anos de nossa vida a serviço do fim da ditadura, afinal, valeu a pena. Assim nos sentimos quando saímos do cinema, depois de ver Cabra Cega.