Os bombardeios de F-15, F-18 e helicópteros Cobra dos EUA sobre a população iraquiana, em plena recontagem de votos, antecipam a exata dimensão do que o referendo sobre o projeto constitucional representa para o Iraque. Enquanto isso, sunitas levantam susO referendo sobre a Constituição – em um Iraque ocupado e em plena guerra de libertação nacional – dividiu posições em relação ao futuro do país. As forças de ocupação reivindicam uma alta participação da população iraquiana – cerca de 10 milhões de eleitores, ou mais de 60% do eleitorado registrado, teriam comparecido, segundo a Comissão Eleitoral, à eleição realizada no dia 15 de outubro. Assim, os Estados Unidos e seus aliados tentam mais um passo para tentar legitimar a ocupação militar que levou milhares de manifestantes às ruas em todos os continentes. Estima-se que a afluência de eleitores, contudo, tenha sido menor do que nas eleições anteriores e ainda não há uma previsão para a divulgação oficial dos resultados.

Mais divisão, menos liberdade
Não se trata, evidentemente, de uma recuperação da soberania do Iraque, quanto menos de uma expansão dos direitos democráticos. Ao contrário, o principal objetivo da votação é cumprir o calendário marcado pelo governo Bush para reduzir a pressão interna que gera a sensação de “atoleiro” das tropas norte-americanas no Iraque – a cada dia morrem dois marines e o alto custo para manter 160 mil soldados. Por outro lado, Bush sonha em poder ocultar-se detrás de instituições supostamente autônomas que realmente possam controlar as massas iraquianas e, desta forma, gerenciar uma dominação menos custosa. A agenda de Washington não era lograr uma simples mudança de governo para depor Hussein e seu partido, mas sim acabar com o Estado existente como forma de organização societária e aprofundar a fragmentação de religiões, seitas e grupos étnicos, potencializando os setores mais fundamentalistas, conservadores e reacionários.

O porta-voz de George W. Bush Jr., Scott McClellan, afirmou que, “aprovando-se ou não a carta magna no Iraque, a própria votação servirá para fazer avançar a democracia”. Desta forma confirma-se a manipulação de todo o processo eleitoral – desde o censo e o conteúdo da consulta, até o número de votantes e a natureza do voto – como último recurso do imperialismo norte-americano. O referendo aconteceu em meio à mais absoluta confusão e desconhecimento do projeto constitucional – retocado na última hora e pendente de negociações posteriores. Trata-se do ato central da “redemocratização” promovida e desenhada pelos EUA sob as botas de exército de ocupação. O mesmo exército que se ocupou, durante os últimos meses, a detonar várias ofensivas de castigo – centenas de mortos e milhares de detenções – ao fortalecimento do desespero e da “idéia-força” de que “a única saída é votar no referendo”. O ritual das urnas, assim, teve um cenário bastante peculiar: alambrados, blocos de cimento, veículos blindados, tanques, helicópteros e o constante assédio de patrulhas militares das forças de ocupação.

Democracia das bombas
Aviões e helicópteros norte-americanos bombardearam várias localidades próximas a Ramadi, deixando um saldo de 70 iraquianos mortos, dentre estes 39 civis, segundo testemunhas oculares. Ramadi foi cenário, em plena jornada eleitoral, de uma emboscada que custou a vida de cinco soldados dos EUA. Em plena recontagem eleitoral, o exército norte-americano castigou com fogo aéreo a cidade de Ramadi, a 100 quilômetros a oeste da capital, Bagdá, provocando a morte de cerca de 70 iraquianos. A ofensiva norte-americana bombardeou três vezes a cidade, desde a tarde do dia 16 até a madrugada de 17 de outubro, com caças aéreos F-15, F-18 e com helicópteros Cobra. O comando da ocupação alega que todos os que morreram eram “rebeldes” e acrescenta que planejou seus ataques “com o objetivo de minimizar a possibilidade de danos colaterais” aos civis.

Suspeita de fraude
A Comissão Suprema Eleitoral anunciou um atraso na publicação dos “resultados preliminares oficiais”, com a justificativa de que os números enviados por algumas províncias indicavam que sua população votou de forma quase unânime, pelo “sim” ou pelo “não”. “Estas porcentagens deram-se em lugares onde há uma grande presença de diferentes etnias e credos (árabes-curdos ou sunitas-xiitas)”, assinalou a comissão, qualificando-os de “altos em comparação ao padrão internacional”.

A comissão não confirmou se celebrar uma consulta num país ocupado responde ao padrão internacional. Mais grave ainda, obviou que curdos e xiitas são majoritariamente favoráveis à constituição que era objeto de consulta, enquanto a maioria dos sunitas a rechaça. “Segundo o padrão internacional, deve-se tomar, aleatoriamente, mostras de diferentes urnas de diversas províncias para verificar os informes”, ratificou a comissão, alimentando as suspeitas de fraude entre os sunitas.

Os primeiros a votar foram o presidente-fantoche Jalal Talabani e o primeiro-ministro Al-Jafaari que, sorrindo, saudaram as câmeras de televisão da rede Al-Jazeera. “A Constituição aplainará o caminho para a unidade nacional”, disse Al-Jafaari. “É um dia histórico e estou otimista porque os iraquianos responderam ‘sim´”, acrescentou o primeiro-ministro. As eleições na capital, por sua vez, deram-se sob vôos rasantes de helicópteros Apache e Black Hawk, das forças armadas dos EUA.

As eleições ocorreram azeitando-se a máquina de ilusões eleitorais e em base a um amplo desconhecimento da população sobre o processo. Por um lado, a publicidade governamental conclama sem parar – na televisão e no rádio – a “Votar pelo Iraque”, com uma campanha muito distante da realidade iraquiana, repleta de carros-bombas, operações militares e caos generalizado. No dia anterior ao referendo, ativistas insurgentes sabotaram linhas de transmissão de energia do país, causando um blecaute em Bagdá e nas áreas próximas. Bagdá amanheceu como uma cidade fantasma – em função do fechamento de escolas, oficinas e locais públicos -, completamente inundada com cartazes oficias onde se lia “vote sim” e também uma ampla campanha de cartazes da resistência iraquiana, chamando o voto no “não”.

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