James Brown

A morte do cantor James Brown, aos 73 anos, em pleno dia de Natal não deixa de guardar um irônico paralelo com sua polêmica trajetória. Irreverente, contraditório e inegavelmente revolucionário naquilo que fazia, Brown teve como um dos grandes feitos de sua carreira ter sacudido, nos anos 50, a música “gospel” norte-americana, dando um tempero mundano aos cantos negros nas igrejas protestantes. Dali em diante, Brown esteve na raiz de tudo que houve de inovador na música negra.

Assim como a maioria dos grandes músicos negros norte-americanos, James Brown Jr. nasceu na miséria, em 3 de maio de 1933. Vivendo em meio à Grande Depressão, Brown cresceu trabalhando na colheita de algodão nos campos do racista estado da Carolina do Sul. Aos quatro anos, abandonado pela mãe, o futuro músico foi viver no prostíbulo administrado por sua tia, na Geórgia, onde, para sobreviver, trabalhava como engraxate e dançando nas ruas de sua cidade.

Forjado neste ambiente miserável e sem perspectivas, não demorou muito para que Brown tomasse o rumo de muitos outros jovens negros de sua geração: aos 16 anos foi preso pela primeira vez por assaltar automóveis, o que lhe valeu três anos de trabalhos forçados em um reformatório juvenil.

Depois da prisão, o futuro músico buscou uma “saída” também típica dos jovens de sua raça e classe social, investindo por algum tempo nas carreiras de boxeador e jogador de baseball, interrompidas devido a uma lesão na perna. Na seqüência, tentou a vida como trabalhador de uma indústria automobilística, ao mesmo tempo em que ensaiava com várias bandas.

Foi nessa época, que Brown passou a integrar a banda “The Famous Flames”, formada juntamente com Bobby Byrd (um amigo que ele conheceu no reformatório), e responsável pelo lançamento, em 1956, de seu primeiro grande sucesso, “Please, please, please”, a música que construiu (ou detonou) as pontes entre a sonoridade e o ritmo do gospel com o balanço e universo mundano do “rhythm and blues”.

Nos anos seguintes, vieram “hits” como “Try me (I need you)” e a explosão nacional, que chegou em 1962, quando Brown, numa demonstração de seu estilo aventureiro e ousado, bancou com seu próprio dinheiro uma apresentação no templo da música negra no bairro nova-iorquino do Harlem, o Apollo Theater, que rendeu o disco “Live in Apollo”.

De lá até os dias de hoje, o impacto de James Brown no cenário musical, particularmente entre os artistas negros, só não foi maior do que aquele provocado por suas roupas extravagantes e sua dança frenética, algo que pode ser verificado em carreiras tão distintas como as de Michael Jackson, Mick Jagger, David Bowie ou Tim Maia.

Ao morrer em decorrência de uma pneumonia (depois de lutar dois anos contra um câncer de próstrata), aos 73 anos, Brown deixou um legado artístico inigualável e uma das biografias mais tumultuadas da história da música.

De corpo e alma
James Brown costumava dizer que o ato de dançar também traz consigo um sentido revolucionário, na medida em que as pessoas se “joguem” nas pistas com todos os seus sentimentos, de corpo e alma (“body and soul”). E, de certa forma, foi este o efeito que ele causou durante os anos 60, quando seus “hits” serviam para embalar gerações de jovens negros tanto nas pistas de danças e shows, quanto nas passeatas e manifestações pelos direitos civis.

Seus sucessos, como “Papa´s got a brand new bag”, “I got you (I feel good)”, “Get Up (I feel like being a sex machine),”It´s a new day” e “Super Bad”, gravados nos anos 60, incendiavam jovens negros (e também brancos que dançavam ao ritmo e no estilo de Brown como forma de demonstrar seu apoio aos direitos civis) e muitas de suas músicas foram entoadas nas ruas durante aqueles conturbados anos.

Marco deste envolvimento foi o lançamento, em 1968, da música “Say it loud – I´m black, I´m proud” (“Diga bem alto – Eu sou negro, eu tenho orgulho”), cujo refrão – “Preferimos morrer de pé, que viver de joelhos” – foi transformado em verdadeiro hino do movimento negro norte-americano.

Seu envolvimento com a luta anti-racista também o levou ao Zaire, em 1974, para realizar um concerto histórico, como parte da programação da luta entre Muhammad Ali e George Foremann, pelo título mundial de boxe dos pesos pesados.

Apesar de tudo isso, a vida de Brown está longe de ser marcada unicamente por acertos. Muito pelo contrário.

Um poço de contradições
Extremamente influente entre os jovens e trabalhadores negros, James Brown jogou, em pelo menos uma ocasião, um papel lamentavelmente fundamental na contenção das lutas pelos direitos civis.

Em 5 de abril de 1968, um dia depois da morte de Martin Luther King, o músico deveria realizar um show em Boston. A expectativa de que o show se transformasse em uma violenta manifestação política era enorme, mas Brown, cedendo às pressões das autoridades, foi às emissoras de TV pedir calma à população, anunciando que o concerto seria transmitido pela televisão e que todos deveriam ficar em suas casas para assisti-lo gratuitamente. O pedido foi atendido, coisa que também aconteceu no dia seguinte, na capital Washington, que, até então, estava sendo sacudida por violentas manifestações.

Em 1969, Brown provocou novamente a ira da militância política norte-americana e mundial ao cantar “Say it loud” em plena Casa Branca, para a posse do famigerado presidente Nixon, a música “America is my home” (“Os EUA são meu lar”). E, como se isso não bastasse, poucos anos depois foi ao Vietña para entreter as tropas norte-americanas que ocupavam o país.

No campo das artes, outra séria derrapada foi sua participação, nos anos 80, no fascistóide “Rocky 4”, de Silverster Stallone, cuja música título, “Living in America”, cantada por Brown, servia para embalar a luta entre o Rocky e um monstruoso lutador soviético, numa metáfora tacanha do final da “Guerra Fria”.

Se no cenário artísticos suas escolhas são, no mínimo, questionáveis, na vida pessoal a história foi ainda mais complicada. Seus problemas com a justiça foram inúmeros, o que o levou a prisão diversas vezes, particularmente devido ao envolvimento com drogas e “arruaças” (algo que, para muitos, não teria acontecido caso ele fosse uma celebridade branca).

Racismo judicial à parte, o fato é que Brown estava longe de ser um “modelo”. Sua relação com as mulheres, por exemplo, sempre foi das piores, o que culminou em condenações por espancamento de duas de suas mulheres, Adrienne Rodriegues e Tomie Mae Brown. Sua última condenação foi em 1988, por porte de armas, tentativa de assalto e uma fuga “espetacular” pelas estradas da Geórgia e Carolina do Norte, o que lhe rendeu dois anos na cadeia.

Apesar de todo esse tumulto na vida pessoal, Brown vez muito dinheiro com a sua música, criando um mais do que razoável patrimônio com negócios envolvendo emissoras de rádio e empresas de produção artística.

Do gospel ao rap
Apesar de seus muitos erros, defeitos e contradições, é inegável o quanto o mundo da música deve a Brown. Se não bastassem os imortais sucessos que se encontram entre as mais de 800 canções gravadas por ele, sua contribuição para o desenvolvimento do funk e do rap, ao lado de outros gênios como Ray Charles e Little Richards, são inquestionáveis, fazendo com que músicas como “It´s too funky in here”, “Funky Drummer” e “Sex Machine” se encontrem, até hoje, entre as músicas mais sampleadas nas pistas e shows destes estilos.

Como também é impossível negar que, num mundo cercado por racismo e marginalização, a figura de Brown será sempre lembrada por sua voz rascante, seu estilo único, sua irreverência e sua contagiante música.