Redação

O enfrentamento atual com a burguesia é mais um capítulo em uma longa e heróica resistência, que por muitas vezes colocou os bolivianos diante da possibilidade de conquistar o poder

José Erinaldo Júnior, de São Paulo

Desde o período colonial e sua independência da Espanha, a Bolívia construiu uma história de resistência às agressões dos colonizadores e do imperialismo. A construção social e política do país também é marcada por guerras, como a do Pacífico (quando o Chile tomou sua saída para o mar), a do Chaco (quando perdeu terras ricas em gás e petróleo ao Paraguai) e a chamada Revolução Acreana (quando teve terras ao norte tomadas pelo Brasil).

Além dos países vizinhos, as riquezas bolivianas também despertaram a cobiça de oligopólios e serviu para enriquecer grandes capitalistas como John Rockfeller, que, com a Standard Oil, criou as bases da indústria do petróleo.

A Revolução de 1952
Contra essa histórica posição na divisão internacional do trabalho, camponeses, indígenas e operários bolivianos escreveram preciosos capítulos da luta de classes internacional. De todos, o mais importante foi o da Revolução de 1952, que colocou de forma escancarada a possibilidade trabalhadores tomarem o poder e que, até hoje, define aspectos políticos do movimento social boliviano.

A nacionalização dos minérios e a reforma agrária foram algumas das conquistas dessa revolução. Foi ela que colocou o proletariado, nomeadamente o setor mineiro, como protagonista dos enfrentamentos de classe no país. Até nos dias de hoje, o estrondo das explosões de dinamites promovidas pelos mineiros dão o ritmo das mobilizações, mantendo viva a memória da Revolução de 52 e das Teses de Pulacayo, o programa aprovado pelo congresso de mineiros em 1946. As teses são uma adaptação do Programa de Transição de Trotsky à realidade boliviana e serviram de base para as mobilizações que culminaram na Revolução de 1952.

Pela água e pelo gás
Em 2000, em Cochabamba, houve uma gigantesca mobilização liderada pelos cocaleiros (agricultores da folha de coca) que derrotou a tentativa de transnacionais como a Nestlé de privatizar a água. Foi a chamada Revolução das Águas.

Naquele momento o movimento camponês e indígena passou a acompanhar os mineiros na linha de frente das mobilizações. É quando ganha forma e força o Movimento ao Socialismo (MAS) e Evo Morales se torna a principal liderança boliviana.

Em 2003, uma greve geral organizada pela Central Operária Boliviana (COB) desata um novo processo revolucionário na Bolívia. Na “Guerra do Gás”, a população recusou-se a aceitar a entrega do gás ao imperialismo, e fez desta a primeira das reivindicações que formaram a “Agenda de Outubro”. Ao final, os protestos derrubaram o presidente Sanchez de Lozada (“Goni”, o Gringo), produziram fissuras no exército e deixaram novamente um vazio de poder.

A direção da COB, lamentavelmente, repetiu o erro de 1952 e se recusou a ocupar esse vazio, permitindo que o vice-presidente Carlos Mesa assumisse o governo e abafasse a revolta.

Mesa também contou com a “valorosa contribuição” de Evo Morales. Em viagem pela Suíça, Evo pediu paciência ao movimento e respeito às leis e, principalmente, obediência ao calendário eleitoral, pois apostava que seria eleito nas eleições seguintes.

A Revolução das Águas e a Guerra do Gás foram dois momentos chaves das mobilizações impressionantes que sacudiram a Bolívia na última década.

A eleição de Evo
Ao final de 2005, o MAS e Evo Morales conseguiram frear a manifestações e ganhar as eleições. Eleito, Evo integrou-se ao time dos governos de frente popular da América Latina, como Lula, no Brasil, e Rafael Correa, no Equador. Tais governos possuem origens nos movimentos sociais e são por eles levados ao poder. Apesar disso, conspiram contra os trabalhadores, em favor da burguesia.

Ao contrário do Brasil, a frente popular da Bolívia, chegou ao governo como resultado de um processo revolucionário e por isso sofre enorme pressão dos movimentos sociais por suas reivindicações. Essa pressão empurra Evo a ter de se enfrentar contra um setor da burguesia boliviana, a chamada burguesia da Meia Lua.

Meia-Lua: O fascismo ao lado
A dominação sempre foi acompanhada de um ideário racista por parte da burguesia boliviana. O historiador Gabriel René Moreno, por exemplo, ao verificar que os cérebros de indígenas e mestiços pesavam menos que os de homens brancos, concluiu que o povo boliviano era “celularmente incapaz”. Não é a toa que a Universidade de Santa Cruz, na região da Meia-Lua, até hoje leve o seu nome. A burguesia da Meia Lua, com seus bandos armados, é a herdeira direta dos resquícios colonizadores e a principal representante do capital estrangeiro.

Conhecida também como “Os Cívicos”, a burguesia da Meia Lua é encabeçada por um latifundiário chamado Branco Marincovich e pelos governadores de Santa Cruz de La Sierra, Beni, Pando e Tarija. Esses estados reúnem grande parte da população e concentram as reservas de gás e o setor do agronegócio, responsáveis por enorme parcela da economia.

Como seria diretamente prejudicada, caso as reivindicações da “Agenda de Outubro” fossem atendidas, a burguesia da Meia Lua busca retomar o poder político de forma direta. E promove uma oposição sistemática à Evo Morales para evitar que este ceda à pressão do movimento.

A forte oposição da Meia Lua cria a aparência de que Evo permanece ao lado dos que o elegeram. No entanto, se ultrapassarmos a análise superficial, veremos que o governo atua controlando o acirramento de classes, para que a burguesia mantenha sua dominação. Os últimos acontecimentos comprovam a natureza deste governo.

Discursos e recuos
Todo bom pescador solta e recolhe a linha várias vezes, até cansar o peixe e ter condições de fisgá-lo. Da mesma forma, Evo ensaiou ir adiante com as reivindicações dos movimentos sociais, para conseguir controlá-los.
O governo propôs um imposto (IDH) para sobretaxar os recursos do gás que ficavam nas mãos dos estados. A arrecadação supostamente iria ser utilizada em programas sociais.

Em resposta, os governadores da Meia Lua realizaram grandes manifestações contra o governo, aflorando discursos e ações fascistas, polarizando e ameaçando dividir o país.

Além de outras ações, também organizaram incursões paramilitares sobre o Plan 3000 (bairro de Santa Cruz com maioria de apoiadores do governo) e assassinaram, com a ajuda de mercenários brasileiros, mais de 30 pessoas no estado de Pando.
O MAS também respondeu com manifestações e uma marcha em setembro, que chegou a cercar Santa Cruz com 15 mil camponeses. No entanto, a disposição dos que enfrentavam os fascistas arriscando e perdendo vidas não era a mesma da do presidente e de seu partido.

Apesar de, diante da indignação com o massacre, decretar Estado de Sítio em Pando e prender o governador, Evo se reuniu com Os Cívicos em Cochabamba, recuou da proposta original do IDH e posou para fotos com os assassinos.
A traição do governo com o Acordo de Cochabamba deu mais força política e dinheiro para a burguesia da Meia Lua que, fortalecida, exigiria a rendição do governo no debate sobre a Constituição.

* Esteve recentemente na Bolívia e participou da marcha em La Paz, no dia 19 de outubro

Post author José Erinaldo júnior, de São Paulo (SP)
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