Nas últimas semanas o povo boliviano sofreu com intensas chuvas que castigaram o país. Desmoronamentos, perda de casas e interrupção de rodovias somaram-se a 42 mortes e mais de 32 mil famílias desabrigadas.

Em meio ao desastre natural, a situação política do país vive os dois anos do governo de Evo Morales, que neste momento tenta estabelecer diálogos com os prefeitos opositores, com o objetivo de fechar a crise agravada no final do ano passado.

As insurreições populares de 2003 e 2005 questionaram profundamente as políticas imperialistas do neoliberalismo e colocaram no centro da luta a nacionalização dos hidrocarbonetos (gás e petróleo). Também possibilitaram a vitória eleitoral de Evo. Esta realidade política do país mais uma vez desperta interesse, debates e polêmicas em vários setores da esquerda latino-americana.

O debate central é sobre o caráter dos governos que surgiram depois da onda de insurreições de massas que sacudiram o continente, e qual política devem ter os revolucionários frente a eles.

Política econômica
Durante as comemorações, Evo fez um discurso de seis horas e descreveu com abundantes cifras uma situação que se assemelha mais a uma bonança econômica, além de divulgar resultados positivos da gestão pública. No entanto, os indicadores mostram, para além da retórica do governo, que houve um aprofundamento da política de exportação dos recursos naturais. As empresas transnacionais seguem se beneficiando e as nacionais não têm do que se queixarem.

Evo não disse que a “folga econômica” tem origem na verdade numa maior arrecadação do Estado devido aos altos preços das matérias-primas exportadas ao mercado internacional. As exportações superaram US$ 4,7 bilhões com superávit de US$ 207 bilhões e as reservas internacionais se aproximam dos US$ 5,3 bilhões, quatro vezes maior que em 2006.

A dívida externa, por sua vez, diminuiu. Resultado do “perdão” dos organismos internacionais, que anularam cerca de US$ 2 bilhões em troca de garantias jurídicas para os contratos.

Porém, ao mesmo tempo em que ocorreu este alívio, a dívida interna cresceu enormemente. No primeiro ano do governo de Evo, os serviços da dívida pública interna custaram ao tesouro público US$ 556 milhões, enquanto os da dívida externa representaram US$ 325 milhões. No segundo ano esta cifra duplicou. Para a realidade boliviana, o fardo do pagamento da dívida continua pesado e nem se compara com os gastos sociais.

Farra dos bancos
O sistema financeiro privado, por outro lado, obteve lucros como nunca. Os dados da Superintendência de Bancos e Entidades Financeiras revelam que os bancos comerciais, estrangeiros e nacionais que operam na Bolívia alcançaram um lucro líquido de U$ 42,9 milhões no primeiro semestre de 2007, o maior registrado nos últimos vinte anos.

Ao mesmo tempo, a política interna do governo é orientada basicamente para preservar a estabilidade, evitar gastos sociais e manter baixos salários e precarização trabalhista. Ou seja, a “bonança financeira do Estado” tem as mesmas bases neoliberais do passado.

As empresas privadas, nacionais e multinacionais também tiveram extraordinários lucros. Segundo dados do Ministério da Fazenda, os lucros declarados pelas médias e grandes empresas quase duplicaram entre o primeiro semestre de 2005 e o de 2007. Só no último ano, os ganhos dos empresários cresceram 20,1%. Os maiores lucros são das grandes empresas exportadoras de minerais, gás e agro-industriais.

Os limites na nacionalização
Em seu discurso, Evo destacou o avanço da nacionalização dos hidrocarbonetos e de setores da mineração. Os exemplos foram o aumento de ingressos que estes setores proporcionaram ao Estado. Hoje utilizados para financiar o bônus escolar (Juancito Pinto) e o Renda Dignidade, programas sociais compensatórios semelhantes ao Bolsa Família de Lula.

Mas Evo não pôde apresentar em números o quanto avançou o controle da estatal YPFB sobre a cadeia produtiva, isto é, sobre a produção, o transporte, o refino, a armazenagem, a distribuição e a industrialização do gás e do petróleo. Isso porque muito pouco foi mudado.

Quando saiu o decreto da nacionalização dos hidrocarbonetos, em maio de 2006, houve um debate sobre o alcance da medida. Mas não havia dúvidas quanto ao seu conteúdo. O decreto dizia:

“O Estado recupera a propriedade, a posse e o controle total e absoluto dos hidrocarbonetos do país. Artigo 2º: As empresas que operam na Bolivia devem entregar a YPFB a totalidade de sua produção, para que a estatal assuma o monopólio da comercialização, definindo condições, volumes e preços para o mercado interno, externo e industrialização.

Artigo 5º: O Estado deve tomar o controle e direção da cadeia produtiva”. Algumas semanas depois o governo baixou outro decreto: “As empresas Andina (Repsol), Chaco (Amoco-British Petroleum) e a transportadora Transredes (Enron-Shell), privatizadas por Goni, deverão passar para a propriedade da YPFB”.

No debate aberto, era indiscutível que Banzer e Goni haviam sido governos das privatizações das empresas públicas e Evo Morales parecia apontar para o caminho da “nacionalização”. A recompra das refinarias era um ponto a seu favor.

No entanto, mais de 18 meses depois do decreto, é possível avaliar o que realmente foi aplicado e o que ficou no papel. Devido à medida, foi possível renegociar novos contratos com as petroleiras e conseguir melhores preços para os hidrocarbonetos. Mas a decisão de entregar à YPFB (estatal boliviana de gás) as ações das empresas privatizadas (Andina, Chaco e Tranredes) virou letra morta. A Petrobras, por exemplo, continua operando e controlando os mega-campos de gás de San Alberto e San Antonio. O decreto 29.130, de 2007, aprofunda a abertura das reservas de gás às multinacionais petroleiras, por meio da criação de empresas mistas.

No último acordo firmado com a Petrobras, a estatal brasileira se comprometeu a investir US$ 1 bilhão nos campos operados por ela para aumentar sua produção que vai direto ao Brasil. Também foi acordada a criação de uma empresa mista entre Petrobras e YPFB para explorar campos de gás bolivianos. Pelo acordo, a Petrobras terá o controle de 82% do que for descoberto e somente estará obrigada a vender 18% ao mercado interno.

Se compararmos estas políticas com o conteúdo do decreto da “nacionalização”, concluímos que o governo está no rumo oposto. Andrés Soliz Rada, autor do Decreto e ex ministro de hidrocarbonetos declara que algumas tarefas do Decreto ficaram pendentes e outras retrocederam.

Mas o que detonou a última insurreição está hoje amortizado pelo discurso governista de que avança o processo de nacionalização, fazendo chegar às crianças e idosos políticas assistencialistas de migalhas da renda petroleira.

Mineração
Por outro lado, a presença do estado retrocedeu em outras áreas. Foi o que aconteceu com a mineração. A estatal COMIBOL, que depois do Decreto da nacionalização de Vinto e Huanuni – fruto da luta dos mineiros estatais -, se enfraqueceu ainda mais com o incentivo do governo aos cooperativistas e a megas-projetos para a mineração privada estrangeira. A reserva de ferro de Mutún foi entregue à multinacional Jindal Steel & Power e San Cristóbal. Já a terceira maior reserva de plata a céu aberto do mundo foi entregue à Andean Silver, multinacional que tem r vínculos com o mega especulador George Soros.

Pobreza e desigualdade
Apesar de Evo destacar em seu discurso o pífio crescimento de 4,2% da economia, ele nada disse sobre o aumento da pobreza.

É verdade que o governo herdou um país com indicadores alarmantes resultado da maior concentração de riquezas do período neoliberal. Entretanto, Evo não conseguiu resolver, nem mesmo reverter questões materiais concretas para o povo: inflação e baixos salários, desemprego e escassez de gás. E agora com os desastres naturais a situação se torna ainda mais intolerável.

A inflação em 2007 foi de 11,73%, ocasionando uma terrível perda do poder aquisitivo dos salários da classe trabalhadora. O que impossibilita qualquer desenvolvimento do mercado interno, apesar do discurso do governo de valorizá-lo, de impulsionar a economia familiar, etc.

Só em agosto houve um aumento dos preços da cesta básica de quase 7%. A pobreza que atinge mais da metade da população (sendo um terço deles considerados em estado de pobreza extrema). Mesmo assim, o governo busca convencer o povo que está colocando em marcha uma revolução social, democrática e cultural. Vale lembrar que mais 10% da população economicamente ativa está desempregada.

,b>Pacto com burguesia
Enquanto a burguesia da “media luna” Conjunto dos Departamentos mais ricos), polariza o país contra a nova constituição proposta pelo MAS (Movimento ao Socialismo) e Evo, as cifras e dados não deixam dúvidas de quem são os maiores beneficiados da política econômica aplicada pelo governo. Tampouco a proposta de nova Constituição, que será submetida a um referendo popular, ameaça os seus lucros. Trata-se de um texto que ratifica a economia capitalista e suas bases centrais, mas que tenta unir isto a reivindicação histórica dos povos indígenas e originários.

Esta temática é um ponto chave da questão social e nacional do país. Estes povos reivindicam o direito a Terra e Território e a ter regiões autónomas em seus “territórios ancestrais”, onde posam se organizar institucionalmente segundo suas tradições e dispor dos recursos naturais. Esta reivindicação põe em relevo o problema da reforma agrária no leste do país, onde se concentram os latifúndios de soja e a criação de gado.

Autonomia dos departamentos
No final ano passado o governo se enfrentou com a burguesia e os governadores da chamada “media luna”. Eles defendiam a autonomia de seus departamentos (estados), o que na prática significaria a divisão do país.
O governo contra-atacou e defendeu a proposta de submeter os mandados dos governadores a um referendo revocatório de mandato, buscando desviar para as urnas

o conflito das ruas
O governo abandonou temporariamente esta proposta e apostou durante todo o mês de janeiro em um processo de diálogo com a direita opositora. Evo propôs um pacto nacional com as “ forças regionais, cívicas e políticas”, em outras palavras, com a burguesia. O governo recebeu elogios até de José Miguel Insulza, secretário geral da OEA, que declarou apoio a iniciativa de Morales.
Mas até o momento a burguesia não aceitou nenhum acordo. Exige que Evo mude todo o texto constitucional. Ou seja, exige que o presidente retroceda mais. Morales, por sua vez, tenta manobrar entre o que reivindicam os camponeses (reforma agrária) e a burguesia (autonomia).

Para diminuir a pressão dos movimentos sociais, o governo adota o discurso de que “só não avança mais, porque a direita não deixa”. Assim têm conseguido segurar a maioria dos movimentos sociais, em particular suas direções.

Alternativa dos trabalhadores
Ao mesmo tempo em que Evo discursava fazendo o balanço dos dois anos de seu governo, a COB (Central Operária Boliviana) realizou um protesto nacional de mineiros exigindo aumento salarial e repúdio à Constituição pactada. A central entregou um conjunto de reivindicações que até hoje o governo não deu nenhuma atenção. Evo dialoga e propõe pactos com a burguesia. Com os trabalhadores, porém, o presidente mandou um recado: “me deixem governar”.

O conflito que cruzou o segundo semestre de 2007 não está resolvido. O custo de vida se eleva muito, os desastres naturais agravam a situação, o governo propõe retroceder ainda mais à direita e a COB anuncia bloqueios e protestos a partir de 18 de fevereiro. Tudo isso indica que 2008 poderá ser marcado por fortes batalhas nas ruas. A questão é com tantos referendos propostos pela burguesia e o governo, com o freio que muitas direções impõem às lutas pelo seu apoio ao governo, conseguirá a classe trabalhadora boliviana transpor as barreiras levantadas por Morales e assim derrotar a burguesia e avançar no processo revolucionário?

Uma tarefa, o que torna mais imprescindível a construção de um partido revolucionário que mantenha a mais absoluta independência política frente ao governo.

Responder a questão nacional boliviana de séculos de opressão e exploração da grande maioria da população só é possível enfrentando e derrotando burguesia.
Post author Nerecilda Rocha, de La Paz
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