Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)

Artigo originalmente publicado na Revista Outubro
nº 3 (1999)
O artigo de Michael Löwy, neste número da revista Outubro, é uma digna homenagem à figura de Leon Trotsky, o grande dirigente da Revolução de Outubro, presidente do Soviet de Petrogrado e fundador do Exército Vermelho. Löwy faz uma brilhante análise do papel de Trotsky como pensador e teórico marxista, aquele que melhor soube prever o desenvolvimento das contradições sociais e da luta de classes que culminaram na Revolução de Outubro e na formação do Estado operário soviético.

No entanto, analisando a atuação de Trotsky como dirigente do Estado soviético, Löwy a caracteriza como parte de um período autoritário que teria marcado todo o regime implantado pelos bolcheviques [1]. Indo um pouco mais além, Löwy afirma que “de uma maneira geral, Trotsky irá desenvolver, dentro desse período, idéias e argumentos fortemente marcados por um autoritarismo de inspiração ‘jacobina’”.

Mas é ao final do artigo que o autor coloca a questão decisiva. Löwy assinala os argumentos com que Trotsky rebatia a acusação de que o stalinismo era, em certa medida, herdeiro do bolchevismo. O organizador e comandante do Exército Vermelho demonstra que o stalinismo, para consolidar-se, necessitou aniquilar fisicamente a vanguarda operária e, principalmente, os velhos bolcheviques. Löwy reconhece a correção da defesa mas lança a dúvida: “O argumento é justo, mas não se pode deixar de questionar o papel de certas tradições autoritárias do bolchevismo de antes de 1917 e de práticas antidemocráticas dos anos 1918-23, na escalada do stalinismo: os revolucionários de Outubro não contribuíram, até um certo ponto – involuntariamente – para a gênese do gulag burocrático que os iria destruir?”

A pergunta é, ao mesmo tempo, antiga e atual. Antiga porque foi colocada desde, no mínimo, a década de 30 pelos que acusavam o bolchevismo de ser a matriz do stalinismo ou de ter facilitado, com seus erros, o caminho para o surgimento e consolidação da burocracia.

Por outro lado, a pergunta é extremamente atual porque, depois da queda dos regimes stalinistas em 1989/1990 e da restauração do capitalismo nos antigos Estados operários burocráticos, o debate sobre a natureza e a origem da burocracia stalinista voltou a ganhar enorme importância [2].

Nossa intenção não é polemizar com o artigo de Löwy em si. Isso porque o autor, ao contrário de um setor da esquerda, evidentemente não vê o stalinismo como continuidade do bolchevismo. Sua pergunta é se os erros dos bolcheviques “não contribuíram – involuntariamente –, e somente até um certo ponto” para o surgimento do stalinismo.

Mas, sem dúvida, é muito importante entrar no debate proposto, porque discutir os erros dos bolcheviques e suas conseqüências significa discutir como, no curso de uma revolução socialista, deve agir um futuro governo operário que enfrente uma situação de guerra civil e de isolamento internacional. Ou seja, diante de um quadro semelhante ao apresentado durante o período 1917-1923, qual deveria ser a política de um partido revolucionário no poder?

Nossa opinião é que a questão proposta por Löwy abarca pelo menos três grandes aspectos:

O primeiro é se de fato podemos caracterizar o primeiro período de governo dos bolcheviques (1917-1923) como um período predominantemente autoritário.

O segundo é se a defesa da revolução e do Estado operário, principalmente em meio a uma guerra civil, autorizam ou exigem a utilização de medidas autoritárias – que de fato foram tomadas pelos bolcheviques – contra as classes dominantes e seus agentes.

E, por último, cabe discutir se as medidas tomadas pelos bolcheviques provocaram ou facilitaram o caminho para o stalinismo, ou seja, se, mesmo involuntariamente, o bolchevismo não contribuiu para o surgimento do stalinismo.

Abordando o primeiro aspecto, em nossa opinião os fatos desmentem totalmente Löwy. Ao contrário de se caracterizarem pela “restrição crescentes às liberdades democráticas”, os primeiros anos do poder soviético significaram um grau de liberdade para a classe trabalhadora desconhecido não só no anterior regime kerenskysta, como nas próprias “democracias” burguesas.

Mesmo nos momentos de guerra civil, com todas as óbvias limitações que essa luta implacável impunha, o regime bolchevique de 1917 a 1923 foi extremamente democrático para a classe operária e os setores populares a ela aliados. Apesar de atacado por todos os lados, pelo exército branco e pelas tropas de 14 nações comandadas pelos maiores países imperialistas; apesar de sabotado internamente pelos partidos oportunistas, como os socialistas-revolucionários e mencheviques; apesar de tudo isso, foi o regime mais democrático para a classe operária e para o povo que a história já conheceu.

Em primeiro lugar, porque era baseado em um organismo que era ao mesmo tempo órgão de mobilização e base do Estado operário: os conselhos de representantes dos operários e camponeses (soviets) [3]. Segundo, porque o regime soviético garantiu amplas liberdades para a classe operária e o povo, assegurando o direito das organizações dos trabalhadores, sindicatos, comitês de fábrica, etc. Existia plena liberdade partidária para os partidos soviéticos, não só para os que estavam no governo (bolcheviques e socialistas-revolucionários de esquerda num primeiro momento), mas inclusive os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, até sua adesão à contra-revolução [4]. E, principalmente, porque o regime instituiu as maiores liberdades políticas, culturais, artísticas [5], científicas, de reunião e de imprensa que já existiram.

Dentro do próprio partido bolchevique a liberdade era enorme. Polêmicas fundamentais como a paz de Brest-Litovsk, a organização do Exército Vermelho e a utilização de oficiais czaristas [6], a discussão sobre os sindicatos e a militarização do trabalho, eram feitas publicamente nos jornais do partido, chegando muitas vezes a exageros “democratistas”, criticados por Lênin [7].
No entanto, esse regime enfrentou uma enorme contradição: durante o período de 1918 a 1921, os líderes bolcheviques estiveram obrigados a colocar acima de tudo a defesa da jovem república soviética. O que estava em jogo era a sobrevivência do Estado operário diante da guerra civil, que combinava o ataque dos Guardas Brancos com a invasão da Rússia por 14 exércitos estrangeiros. A situação exigia uma dura repressão, ou seja medidas autoritárias, contra a burguesia, a aristocracia e seus agentes. Trotsky definiu bem qual era a grande tarefa da classe operária e do partido revolucionário naquele momento, quando afirmou: “A missão e o dever da classe operária que se apossou do poder depois de uma longa luta, era fortalecê-lo inquebrantavelmente, assegurar definitivamente sua dominação, cortar toda tentativa de golpe de Estado por parte dos inimigos e procurar, dessa forma, a possibilidade de realizar as grandes reformas socialistas. Não valia a pena conquistar o poder, para fazer outra coisa.” [8].

Trotsky explicava o uso da violência pelo proletariado revolucionário pela necessidade deste defender o poder recém-conquistado com todas as suas forças e através de todos os meios: “A revolução não implica ‘logicamente’ o terrorismo, como também não implica a insurreição armada. Solene vulgaridade. Mas, ao contrário, a revolução exige que a classe revolucionária faça uso de todos os meios possíveis para alcançar seus fins: a insurreição armada, se é preciso; o terrorismo, se é necessário. A classe operária, que conquistou o Poder com as armas na mão, deve desfazer pela violência todas as tentativas destinadas a arrebatá-lo.

Neste sentido, o terror vermelho não se diferencia em princípio da insurreição armada, da qual não é mais que a continuação. Não pode condenar ‘moralmente’ o terror governamental da classe revolucionária a não ser aquele que, a princípio, reprove (de palavra) toda violência em geral” [9].

Quase meio século antes, Engels falando sobre autoridade, violência e Estado operário respondia aos anarquistas em palavras que pareciam prever as circunstâncias que cercariam o nascimento do primeiro Estado operário da história: “os anti-autoritários exigem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, mesmo antes de terem sido destruídas as condições sociais que o fizeram nascer. Exigem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Será que esses senhores jamais viram uma revolução? Uma revolução é, indiscutivelmente, a coisa mais autoritária que existe; é o ato através do qual uma parte da população impõe sua vontade à outra parte por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que existam; e o partido vitorioso, se não quiser ter lutado em vão, tem que manter esse domínio pelo terror que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria por acaso durado um só dia se não fosse empregada essa autoridade do povo armado frente aos burgueses? Não podemos, ao contrário, criticá-la por não se ter servido bastante dela?

Portanto, uma das duas: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e nesse caso não fazem senão semear a confusão; ou sabem e nesse caso traem o movimento do proletariado. Num e noutro caso, servem à reação” [10].

Nessa situação de guerra civil e brutal crise econômica, os bolcheviques viram-se obrigados a proibir o funcionamento de partidos soviéticos, como os socialistas-revolucionários e os mencheviques. Líderes de ambos os partidos tomaram parte de governos contra-revolucionários. O exemplo mais famoso é a participação de dirigentes dos SR no governo do general branco Kolchak, instalado em Samara. Os socialistas revolucionários de esquerda, que antes haviam participado do primeiro governo soviético, chegaram a desencadear uma onda de atentados contra os bolcheviques, ferindo Lenin e matando Uritsky, membro do Comitê Central.

Apesar dessas atitudes, abertamente contra-revolucionárias, as medidas que os bolcheviques tomaram – proibição da imprensa e dos próprios partidos – foram limitadas. Com idas e vindas, estes permaneceram em atividade inclusive durante a guerra civil [11]. Os líderes do Partido Comunista sempre defenderam a medida de proibição dos partidos como provisória, justificada apenas pela necessidade de defesa da república soviética. Com mais razão, aplicaram o mesmo critério quando tiveram que proibir as frações internas no seio do partido bolchevique.

Nesse ponto é preciso abordar a questão que sempre aparece como pano de fundo do debate dos supostos erros e tradições autoritárias dos bolcheviques. Trata-se da famosa discussão: bolchevismo e stalinismo são duas caras de uma mesma moeda? O stalinismo é filho, ainda que degenerado, do bolchevismo? Ou seja, trocando em miúdos, o processo de burocratização stalinista foi uma decorrência natural, uma evolução, mesmo que qualitativa, dos erros ou da política autoritária dos bolcheviques?

O erro básico de raciocínio por trás de questões formuladas dessa maneira, é conceder a um fator subjetivo, o partido bolchevique, um papel superior, decisivo, capaz de reverter os processos objetivos da história. O processo de burocratização foi um fenômeno objetivo, que dependeu diretamente do desenvolvimento da luta de classes. No caso concreto, da derrota da revolução mundial e do conseqüente isolamento da União Soviética, potencializados pelo tremendo atraso do país e do desgaste das massas com a guerra civil. Ou seja, fenômenos opostos aos que levaram os bolcheviques a liderar o proletariado até a conquista do poder. Apesar de lutarem contra eles, os bolchevique não puderam, nem podiam, inverter o curso objetivo da luta de classes.

Polemizando contra os que viam o stalinismo como continuidade do bolchevismo, Trotsky expunha a contradição dessa conclusão: se o stalinismo é herdeiro do bolchevismo porque teve necessidade de aniquilar fisicamente toda a velha guarda bolchevique para consolidar seu poder? “Depois da purga, a divisória entre o stalinismo e o bolchevismo não é uma linha sangrenta, mas sim toda uma torrente de sangue. A aniquilação de toda a velha geração bolchevique, de um setor importante da geração intermediária, a que participou na guerra civil, e do setor da juventude que assumiu seriamente as tradições bolcheviques, demonstra que entre o bolchevismo e o stalinismo existe uma incompatibilidade que não é só política, mas também diretamente física” [12].

Trotsky explica essa “torrente de sangue” que separa o bolchevismo do stalinismo justamente pelos elementos objetivos que motivaram o aparecimento e o desenvolvimento de ambos. O bolchevismo chegou ao poder no bojo da vaga revolucionária que surgiu no fim da Primeira Guerra Mundial. Somente esse enorme impulso pode explicar como o Exército Vermelho, formado da noite para o dia, pode sair vitorioso de uma guerra tão desigual contra os exércitos brancos, armados e apoiados por tropas de países imperialistas.

O stalinismo, ao contrário, foi fruto do retrocesso e derrota da revolução internacional entre 1919 e 1923, com especial destaque para a derrota da revolução alemã. Esse refluxo foi potencializado pelo atraso da Rússia e pela aniquilação de grande parte da classe operária, especialmente os elementos mais valorosos da vanguarda, durante a guerra civil. O stalinismo, portanto, é produto e expressão do retrocesso da revolução, e por sua vez, ao consolidar-se como burocracia, agente da maré contra-revolucionária que durou de 1923 até a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial.

O caráter inconciliável do bolchevismo e do stalinismo foi demonstrado não só pela sanha assassina com que a burocracia stalinista se lançou contra toda a “velha guarda” bolchevique, mas também pela resistência que os verdadeiros bolcheviques ofereceram ao processo de burocratização. O primeiro a lutar contra a burocratização foi o próprio Lenin. Foi seu último combate, só interrompido por sua morte em 1924. A bandeira da luta contra a burocracia foi arrebatada pela Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky que a sintetizou em forma de programa político de transição na luta pela Revolução Política, uma das bases para a fundação da Quarta Internacional.

Mas simplesmente identificar a ruptura total entre stalinismo e bolchevismo não resolve o debate. Löwy coloca a questão sob outro ângulo. Concordando que o stalinismo surgiu pelas razões objetivas apontadas por Trotsky e que não é, nem de longe, herdeiro do bolchevismo, Löwy pergunta se os bolcheviques, com suas medidas autoritárias, facilitaram ou contribuíram, mesmo involuntariamente, para o nascimento do stalinismo.

É importante responder a essa questão em si mesma, porque quando assinalamos os aspectos objetivos que determinaram a ascensão do stalinismo não pretendemos minimizar os erros dos bolcheviques e muito menos de Trotsky. É verdade que, especialmente, este último cometeu erros importantes ao propor a incorporação dos sindicatos ao aparelho do Estado e a militarização do trabalho. Eram propostas feitas no contexto do desmoronamento econômico do país, depois do fim da guerra civil, e com o objetivo de reerguê-lo, mas, se aplicadas, enfraqueceriam a capacidade dos trabalhadores de se defenderem do seu próprio Estado e da possibilidade de burocratização.

No entanto é preciso que se diga que essas propostas foram combatidas por Lenin e rejeitadas pela maioria do Partido Bolchevique. Ou seja, o que se poderia caracterizar como propostas “autoritárias” de Trotsky não foram implementadas pelo partido durante esse período.

Mas, justamente para não esconder esses erros, é preciso que sejamos mais específicos. Facilitar ou contribuir pode ter conotações amplas, desde acelerar a burocratização do Estado soviético até enfraquecer a futura resistência da oposição de esquerda. É preciso colocar a questão de modo mais concreto, tomando, por exemplo, a medida mais discutida: a proibição dos partidos e das frações internas do Partido Bolchevique. Teria este sido um erro que facilitou o caminho para o stalinismo?

Na verdade, há uma pergunta que precede a anterior: o que teria acontecido à revolução russa e à república soviética caso os bolcheviques não tivessem tomado essa medida e tivessem permitido que mencheviques e socialistas-revolucionários sabotassem a defesa da revolução? Não é difícil chegar à conclusão de que o resultado da guerra civil teria sido o esmagamento do Estado operário. Mas, mesmo supondo a hipótese absurda de que a ação da quinta-coluna dos partidos traidores não tivesse produzido nenhum efeito, nem assim a ascensão do stalinismo teria sido evitada.

Deveriam os bolcheviques deixar de tomar esse tipo de medidas para não “facilitar” a ascensão de uma burocracia? Trata-se de uma discussão totalmente abstrata do ponto de vista do desfecho de um processo revolucionário. Se o Estado operário fosse destruído pelos exércitos brancos e pelas tropas imperialistas, ou se permitisse que agentes da contra-revolução manipulassem a insatisfação social provocada pela fome, crise econômica e guerra, a revolução seria esmagada. O novo regime político resultante não seria uma ditadura burocrática mas, certamente, uma ditadura burguesa de tipo fascista ou semi-fascista.

As medidas tomadas pelos bolcheviques eram indispensáveis para a defesa da revolução, nas circunstâncias concretas de isolamento do Estado soviético e do atraso do país. Mais de uma vez seus líderes explicaram que, em circunstâncias distintas tais medidas ou não teriam existido ou teriam tido vida curta. Na década de 30, Trotsky voltou a defender a necessidade da proibição dos partidos soviéticos no momento em que essa decisão foi tomada, mas assinalou tanto as razões objetivas que levaram a essa e outras resoluções, como seus perigos inerentes: “Quanto à proibição dos demais partidos soviéticos, esta não é produto de uma ‘teoria’ bolchevique, mas sim uma medida de defesa da ditadura de um país atrasado e devastado, rodeado de inimigos. Os bolcheviques compreenderam claramente, desde o princípio, que esta medida, complementada posteriormente com a proibição de frações no próprio partido governante, assinalava um enorme perigo. No entanto, o perigo não radicava na doutrina, nem na tática, mas sim na debilidade material da ditadura e nas dificuldades internas e internacionais. Se a revolução tivesse triunfado tão somente na Alemanha, teria desaparecido por completo a necessidade de proibir os partidos soviéticos. É absolutamente indiscutível que a dominação do partido único serviu como ponto de partida jurídico para o sistema totalitário stalinista. Mas a causa deste processo não está no bolchevismo, nem na proibição dos demais partidos como medida transitória de guerra, mas sim nas derrotas do proletariado na Europa e na Ásia” [13].

Sobre o mesmo tema, Trotsky assinala as hipóteses, esboçadas por ele e Lenin, de alternativas políticas para os anarquistas, mostrando qual seria a postura dos bolcheviques em circunstâncias diferentes das impostas pela guerra e pela destruição econômica: “Durante o período heróico da revolução, os bolcheviques lutaram ombro a ombro com os anarquistas autenticamente revolucionários. Muitos passaram para as fileiras do partido. Mais de uma vez, Lenin e o autor destas linhas discutiram a possibilidade de conceder aos anarquistas determinados territórios, onde, com o consentimento da população local, pudessem realizar a experiência de abolir o Estado. Mas a guerra civil, o bloqueio e a fome não permitiram dar lugar para tais planos” [14].

Mas, principalmente, é preciso destacar que os bolcheviques tomaram todas as medidas para defender a revolução russa com os olhos postos no desenrolar da luta de classes internacional, especialmente a revolução na Alemanha. Ou seja, esperando que a revolução internacional tirasse a Rússia do isolamento e permitisse a volta de um regime soviético “normal” e não de exceção. Nunca pensaram que seria desejável ou mesmo possível qualquer tipo de desenvolvimento “socialista” num só país.

Mais do que isso, seu prognóstico era que sem uma vitória mais ou menos rápida do proletariado nos países capitalistas adiantados, a revolução russa não sobreviveria. Lenin definiu, assim, o papel da classe operária no poder: “Tendo conquistado o poder, o proletariado russo tinha inteira chance de mantê-lo e impulsionar a Rússia através da vitoriosa revolução no Ocidente” [15]. No segundo Congresso dos Sovietes, por ocasião da tomada do poder, Trotsky se expressou no mesmo sentido: “Se o povo europeu não se insurgir e derrotar o imperialismo, nós deveremos ser esmagados, isto é indubitável. Ou a Revolução Russa consegue fazer eclodir a luta no Ocidente, ou então os capitalistas do mundo inteiro sufocarão a nossa revolução” [16].

Ou seja, os bolcheviques defendiam o poder soviético, esperando que a revolução internacional permitisse a correção de problemas, inclusive a burocratização, trazidos pelo isolamento, o atraso e a guerra civil. Nunca pensaram que se poderia superar esse atraso nos limites das fronteiras nacionais.

Portanto, a pergunta de Löwy tem resposta. Os erros dos bolcheviques, tanto os reais como os supostos, não facilitaram nem contribuíram para o processo de burocratização. Este dependeu do desenvolvimento objetivo da luta de classes, nacional e, principalmente, internacional. O papel subjetivo do partido, decisivo numa crise revolucionária para dirigir a classe operária em direção à tomada do poder, torna-se apenas um elemento a mais na realidade objetiva imediata, incapaz de determinar o curso dos acontecimentos quando a maré da luta de classes se converte em derrotas do proletariado e em refluxo do movimento revolucionário das massas.

A conclusão anterior nos traz a outra: tanto no período de ascenso revolucionário como na resistência ao stalinismo, o bolchevismo demonstrou ser o marxismo desta época de crises, guerras e revoluções. As palavras de Trotsky continuam válidas nos dias de hoje: “O marxismo encontrou sua expressão histórica mais elevada no bolchevismo. Sob a bandeira bolchevique se realizou a primeira vitória do proletariado e se instaurou o primeiro Estado operário.”

Mais de oitenta anos se passaram desde a Revolução Russa. Oito décadas marcadas por enormes vitórias e derrotas. Hoje, a vanguarda do proletariado tem pela frente o desafio de recolher a bandeira bolchevique e lutar para avançar de novo, além dos portões abertos pela Revolução de Outubro de 1917. A revolução socialista mundial, razão de ser do bolchevismo e da Terceira Internacional impulsionada por ele, continua a ser a grande tarefa. Por essa razão, o bolchevismo continua a ser o marxismo do nosso tempo.

Notas:
1. “Os primeiros anos do poder soviético (1917-1923) se caracterizam por restrições crescentes das liberdades democráticas – mesmo que ainda estejam longe do sistema totalitário stalinista.”
2. Ver sobre este tema artigo de Massimo Salvadori que resgata a crítica marxista ao stalinismo. Segundo Salvadori, foi ninguém menos que Karl Kautsky quem primeiro definiu de maneira categórica o stalinismo como uma conseqüência do bolchevismo. Ver Massimo Salvadori, “A crítica marxista ao stalinismo”, in Eric Hobsbawn, História do marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, v. 7, pp. 290-296.
3. Sobre esse tema ver uma descrição da constituição e do funcionamento dos soviets na obra de E. H. Carr. A Revolução Bolchevique, Porto, Afrontamento, 1977, pp. 152 a 157.
4. É interessante a descrição que faz Charles Bettelheim sobre a política dos bolcheviques em relação aos partidos pequeno-burgueses (socialistas-revolucionários, mencheviques, socialistas-revolucionários de esquerda e inclusive os anarquistas) em sua obra A luta de classes na União Soviética. Apoiando-se em E. H. Carr e em outros historiadores, Bettelheim demonstra que os bolcheviques tiveram uma política de liberdade para esses partidos, limitando-a somente na medida em que a ação contra-revolucionária destes, aliando-se com a burguesia durante a guerra civil, tornava inevitável medidas coercitivas. Charles Bettelheim, A luta de classes na União Soviética, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, v. 1, pp. 229 a 241.
5. Durante o período 1917-1923, por mais de uma vez, os principais líderes bolcheviques colocaram-se contra qualquer idéia de apoio estatal a determinada corrente artística, polemizando abertamente contra as pretensões do Proletkult e dos futuristas, nesse sentido. Lenin e Trotsky o expressaram por diversas vezes em artigos e discursos. Trotsky desenvolveu essa posição em seu livro Literatura e revolução, especialmente nos capítulos “A cultura e a arte proletárias” e “A política do partido na arte”. Negando a possibilidade histórica do desenvolvimento de uma cultura proletária, Trotsky resumiu o que segundo ele deveria ser a posição do partido em relação à arte e aos movimentos artísticos: “A arte deve abrir por si mesma o seu próprio caminho. Os métodos do marxismo não são os mesmos da arte. O Partido dirige o proletariado não os processos da história. Sim. Há domínios nos quais ele dirige de forma direta e imperativa. Há outros onde apenas inspeciona e ajuda. E, finalmente, alguns onde somente se orienta. A arte não é um domínio que chame o Partido a comandar. Ele pode e deve protegê-la, estimulá-la e só indiretamente dirigi-la (…) Não pode, em hipótese alguma, colocar-se na posição de um círculo literário e competir com outros. Não pode e não deve.” Leon Trotsky, Literatura e revolução, Rio de Janeiro, Zahar, 1969, pp. 187 e 188.
6. Sobre esse tema, ver a longa descrição feita por Isaac Deutscher no capítulo 12, “Armando a República”, de O profeta armado, o primeiro volume de sua biografia de Trotsky. Em especial, deve-se destacar o debate sobre o emprego de antigos oficiais do exército czarista na formação do Exército Vermelho, ponto polêmico, primeiro com os mencheviques e socialistas revolucionários de esquerda e, depois, com os comunistas esquerdistas (facção encabeçada por Bukharin, Piatakov, Bubnov, I. N. Smirnov, Lomov- Oppokov e outros; a polêmica com esses últimos chegou às páginas do Pravda, em plena guerra civil). Isaac Deutscher, Trotsky. O profeta armado, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984, pp. 431 a 475.
7. A crítica de Lenin tornou-se especialmente aguda por ocasião da discussão sobre o papel dos sindicatos na ditadura do proletariado. Lenin, opondo-se à posição de Trotsky, que queria integrá-los ao aparelho de Estado, reconhece o direito deste de tornar pública a discussão, mas o critica por fracionalista e por expor o partido ao perigo de uma cisão, na medida em que essa divisão já estava sendo explorada por mencheviques e socialistas revolucionários. V. I. Lenin, “Una vez más acerca de los sindicatos, el momento actual y los errores de los camaradas Trotsky y Bujárin”, Obras escogidas, Moscou, Progreso, 1977, pp. 339 a 350.
8. Leon Trotsky, Comunismo e terrorismo, Buenos Aires, Heresiarca, 1972, p. 64.
9. Leon Trotsky, op. cit., p. 64.
10. Friedrich Engels, “Sobre a autoridade”, artigo escrito durante os meses de janeiro e fevereiro de 1873 e publicado no Almanacco Repubblicano . Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, s.d., v. 2, p. 187.
11. Charles Bettelheim, op. cit.
12. Leon Trotsky, “Bolchevismo y stalinismo”, in Escritos, Bogotá, Pluma, 1980, t. VIII, v. 3, p. 572.
13. Idem, p. 572.
14. Idem.
15. Citado por Leon Trotsky, História da Revolução Russa, Rio de Janeiro, Saga, 1967, v. 3, apêndice 3, p. 1020.
16. Idem, p. 1022.

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Baixe o artigo de Michael Löwy, publicado na revista Outubro