O artigo abaixo foi originalmente publicado na Revista Outubro nº 3 como parte de um debate sobre se o bolchevismo dos primeiros anos da Revolução Russa já trazia em si os elementos que levaram à degeneração stalinista. Por razões editoriais dividimos o texto em duas partes. A segunda será publicada na próxima edição.

O artigo de Michael Löwy, neste número da revista Outubro, é uma digna homenagem à figura de Leon Trotsky, o grande dirigente da Revolução de Outubro, presidente do Soviet de Petrogrado e fundador do Exército Vermelho. Löwy faz uma brilhante análise do papel de Trotsky como pensador e teórico marxista, aquele que melhor soube prever o desenvolvimento das contradições sociais e da luta de classes que culminaram na Revolução de Outubro e na formação do Estado operário soviético.
No entanto, analisando a atuação de Trotsky como dirigente do Estado soviético, Löwy a caracteriza como parte de um período autoritário que teria marcado todo o regime implantado pelos bolcheviques. Indo um pouco mais além, Löwy afirma que “de uma maneira geral, Trotsky irá desenvolver, dentro desse período, idéias e argumentos fortemente marcados por um autoritarismo de inspiração ‘jacobina’”.

Mas é ao final do artigo que o autor coloca a questão decisiva. Löwy assinala os argumentos com que Trotsky rebatia a acusação de que o stalinismo era, em certa medida, herdeiro do bolchevismo. O organizador e comandante do Exército Vermelho demonstra que o stalinismo, para consolidar-se, necessitou aniquilar fisicamente a vanguarda operária e, principalmente, os velhos bolcheviques. Löwy reconhece a correção da defesa mas lança a dúvida: “O argumento é justo, mas não se pode deixar de questionar o papel de certas tradições autoritárias do bolchevismo de antes de 1917 e de práticas antidemocráticas dos anos 1918-23, na escalada do stalinismo: os revolucionários de Outubro não contribuíram, até um certo ponto – involuntariamente – para a gênese do gulag burocrático que os iria destruir?”
A pergunta é, ao mesmo tempo, antiga e atual. Antiga porque foi colocada desde, no mínimo, a década de 30 pelos que acusavam o bolchevismo de ser a matriz do stalinismo ou de ter facilitado, com seus erros, o caminho para o surgimento e consolidação da burocracia.

Por outro lado, a pergunta é extremamente atual porque, depois da queda dos regimes stalinistas em 1989/1990 e da restauração do capitalismo nos antigos Estados operários burocráticos, o debate sobre a natureza e a origem da burocracia stalinista voltou a ganhar enorme importância.

Nossa intenção não é polemizar com o artigo de Löwy em si. Isso porque o autor, ao contrário de um setor da esquerda, evidentemente não vê o stalinismo como continuidade do bolchevismo. Sua pergunta é se os erros dos bolcheviques “não contribuíram – involuntariamente –, e somente até um certo ponto” para o surgimento do stalinismo.

Mas, sem dúvida, é muito importante entrar no debate proposto, porque discutir os erros dos bolcheviques e suas conseqüências significa discutir como, no curso de uma revolução socialista, deve agir um futuro governo operário que enfrente uma situação de guerra civil e de isolamento internacional. Ou seja, diante de um quadro semelhante ao apresentado durante o período 1917-23, qual deveria ser a política de um partido revolucionário no poder?

Os primeiros anos
Nossa opinião é que a questão proposta por Löwy abarca pelo menos três grandes aspectos:

O primeiro é se de fato podemos caracterizar o primeiro período de governo dos bolcheviques (1917-1923) como um período predominantemente autoritário.
O segundo é se a defesa da revolução e do Estado operário, principalmente em meio a uma guerra civil, autorizam ou exigem a utilização de medidas autoritárias – que de fato foram tomadas pelos bolcheviques – contra as classes dominantes e seus agentes.
E, por último, cabe discutir se as medidas tomadas pelos bolcheviques provocaram ou facilitaram o caminho para o stalinismo, ou seja, se, mesmo involuntariamente, o bolchevismo não contribuiu para o surgimento do stalinismo.

Abordando o primeiro aspecto, em nossa opinião os fatos desmentem totalmente Löwy. Ao contrário de se caracterizarem pela “restrição crescente às liberdades democráticas”, os primeiros anos do poder soviético significaram um grau de liberdade para a classe trabalhadora desconhecido não só no anterior regime kerenskysta, como nas próprias “democracias” burguesas.

Mesmo nos momentos de guerra civil, com todas as óbvias limitações que essa luta implacável impunha, o regime bolchevique de 1917 a 1923 foi extremamente democrático para a classe operária e os setores populares a ela aliados. Apesar de atacado por todos os lados, pelo exército branco e pelas tropas de 14 nações comandadas pelos maiores países imperialistas; apesar de sabotado internamente pelos partidos oportunistas, como os socialistas-revolucionários e mencheviques; apesar de tudo isso, foi o regime mais democrático para a classe operária e para o povo que a história já conheceu.

Em primeiro lugar, porque era baseado em um organismo que era ao mesmo tempo órgão de mobilização e base do Estado operário: os conselhos de representantes dos operários e camponeses (sovietes). Segundo, porque o regime soviético garantiu amplas liberdades para a classe operária e o povo, assegurando o direito das organizações dos trabalhadores, sindicatos, comitês de fábrica, etc. Existia plena liberdade partidária para os partidos soviéticos, não só para os que estavam no governo (bolcheviques e socialistas-revolucionários de esquerda num primeiro momento), mas inclusive os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, até sua adesão à contra-revolução. E, principalmente, porque o regime instituiu as maiores liberdades políticas, culturais, artísticas, científicas, de reunião e de imprensa que já existiram.

Dentro do próprio partido bolchevique a liberdade era enorme. Polêmicas fundamentais como a paz de Brest-Litovsk, a organização do Exército Vermelho e a utilização de oficiais czaristas, a discussão sobre os sindicatos e a militarização do trabalho, eram feitas publicamente nos jornais do partido, chegando muitas vezes a exageros “democratistas”, criticados por Lênin.

A sobrevivência da URSS
No entanto, esse regime enfrentou uma enorme contradição: durante o período de 1918 a 1921, os líderes bolcheviques estiveram obrigados a colocar acima de tudo a defesa da jovem república soviética. O que estava em jogo era a sobrevivência do Estado operário diante da guerra civil, que combinava o ataque dos Guardas Brancos com a invasão da Rússia por 14 exércitos estrangeiros. A situação exigia uma dura repressão, ou seja medidas autoritárias, contra a burguesia, a aristocracia e seus agentes. Trotsky definiu bem qual era a grande tarefa da classe operária e do partido revolucionário naquele momento, quando afirmou: “A missão e o dever da classe operária que se apossou do poder depois de uma longa luta, era fortalecê-lo inquebrantavelmente, assegurar definitivamente sua dominação, cortar toda tentativa de golpe de Estado por parte dos inimigos e procurar, dessa forma, a possibilidade de realizar as grandes reformas socialistas. Não valia a pena conquistar o poder, para fazer outra coisa”.

Trotsky explicava o uso da violência pelo proletariado revolucionário pela necessidade deste defender o poder recém-conquistado com todas as suas forças e através de todos os meios: “A revolução não implica ‘logicamente’ o terrorismo, como também não implica a insurreição armada. Solene vulgaridade. Mas, ao contrário, a revolução exige que a classe revolucionária faça uso de todos os meios possíveis para alcançar seus fins: a insurreição armada, se é preciso; o terrorismo, se é necessário. A classe operária, que conquistou o poder com as armas na mão, deve desfazer pela violência todas as tentativas destinadas a arrebatá-lo.
Neste sentido, o terror vermelho não se diferencia em princípio da insurreição armada, da qual não é mais que a continuação. Não pode condenar ‘moralmente’ o terror governamental da classe revolucionária a não ser aquele que, a princípio, reprove (de palavra) toda violência em geral”.

Quase meio século antes, Engels, falando sobre autoridade, violência e Estado operário, respondia aos anarquistas em palavras que pareciam prever as circunstâncias que cercariam o nascimento do primeiro Estado operário da história: “os anti-autoritários exigem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, mesmo antes de terem sido destruídas as condições sociais que o fizeram nascer. Exigem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Será que esses senhores jamais viram uma revolução? Uma revolução é, indiscutivelmente, a coisa mais autoritária que existe; é o ato através do qual uma parte da população impõe sua vontade à outra parte por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que existam; e o partido vitorioso, se não quiser ter lutado em vão, tem que manter esse domínio pelo terror que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria por acaso durado um só dia se não fosse empregada essa autoridade do povo armado frente aos burgueses? Não podemos, ao contrário, criticá-la por não se ter servido bastante dela?
Portanto, uma das duas: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e nesse caso não fazem senão semear a confusão; ou sabem e nesse caso traem o movimento do proletariado. Num e noutro caso, servem à reação”.

Nessa situação de guerra civil e brutal crise econômica, os bolcheviques viram-se obrigados a proibir o funcionamento de partidos soviéticos, como os socialistas-revolucionários e os mencheviques. Líderes de ambos os partidos tomaram parte de governos contra-revolucionários. O exemplo mais famoso é a participação de dirigentes dos SR no governo do general branco Kolchak, instalado em Samara. Os socialistas revolucionários de esquerda, que antes haviam participado do primeiro governo soviético, chegaram a desencadear uma onda de atentados contra os bolcheviques, ferindo Lênin e matando Uritsky, membro do Comitê Central.

Apesar dessas atitudes abertamente contra-revolucionárias, as medidas que os bolcheviques tomaram – proibição da imprensa e dos próprios partidos – foram limitadas. Com idas e vindas, estes permaneceram em atividade inclusive durante a guerra civil. Os líderes do Partido Comunista sempre defenderam a medida de proibição dos partidos como provisória, justificada apenas pela necessidade de defesa da república soviética. Com mais razão, aplicaram o mesmo critério quando tiveram que proibir as frações internas no seio do partido bolchevique.

Nesse ponto é preciso abordar a questão que sempre aparece como pano de fundo do debate dos supostos erros e tradições autoritárias dos bolcheviques. Trata-se da famosa discussão: bolchevismo e stalinismo são duas caras de uma mesma moeda? O stalinismo é filho, ainda que degenerado, do bolchevismo? Ou seja, trocando em miúdos, o processo de burocratização stalinista foi uma decorrência natural, uma evolução, mesmo que qualitativa, dos erros ou da política autoritária dos bolcheviques?

O erro básico de raciocínio por trás de questões formuladas dessa maneira, é conceder a um fator subjetivo, o partido bolchevique, um papel superior, decisivo, capaz de reverter os processos objetivos da história. O processo de burocratização foi um fenômeno objetivo, que dependeu diretamente do desenvolvimento da luta de classes. No caso concreto, da derrota da revolução mundial e do conseqüente isolamento da União Soviética, potencializados pelo tremendo atraso do país e do desgaste das massas com a guerra civil. Ou seja, fenômenos opostos aos que levaram os bolcheviques a liderar o proletariado até a conquista do poder. Apesar de lutarem contra eles, os bolcheviques não puderam, nem podiam, inverter o curso objetivo da luta de classes.

Incompatibilidade
Polemizando contra os que viam o stalinismo como continuidade do bolchevismo, Trotsky expunha a contradição dessa conclusão: se o stalinismo é herdeiro do bolchevismo porque teve necessidade de aniquilar fisicamente toda a velha guarda bolchevique para consolidar seu poder? “Depois da purga, a divisória entre o stalinismo e o bolchevismo não é uma linha sangrenta, mas sim toda uma torrente de sangue. A aniquilação de toda a velha geração bolchevique, de um setor importante da geração intermediária, a que participou na guerra civil, e do setor da juventude que assumiu seriamente as tradições bolcheviques, demonstra que entre o bolchevismo e o stalinismo existe uma incompatibilidade que não é só política, mas também diretamente física”.

Trotsky explica essa “torrente de sangue” que separa o bolchevismo do stalinismo justamente pelos elementos objetivos que motivaram o aparecimento e o desenvolvimento de ambos. O bolchevismo chegou ao poder no bojo da vaga revolucionária que surgiu no fim da Primeira Guerra Mundial. Somente esse enorme impulso pode explicar como o Exército Vermelho, formado da noite para o dia, pôde sair vitorioso de uma guerra tão desigual contra os exércitos brancos, armados e apoiados por tropas de países imperialistas. O stalinismo, ao contrário, foi fruto do retrocesso e derrota da revolução internacional entre 1919 e 1923, com especial destaque para a derrota da revolução alemã. Esse refluxo foi potencializado pelo atraso da Rússia e pela aniquilação de grande parte da classe operária, especialmente os elementos mais valorosos da vanguarda, durante a guerra civil. O stalinismo, portanto, é produto e expressão do retrocesso da revolução, e por sua vez, ao consolidar-se como burocracia, agente da maré contra-revolucionária que durou de 1923 até a derrota do nazismo na Segunda Guerra Mundial.

O caráter inconciliável do bolchevismo e do stalinismo foi demonstrado não só pela sanha assassina com que a burocracia stalinista se lançou contra toda a “velha guarda” bolchevique, mas também pela resistência que os verdadeiros bolcheviques ofereceram ao processo de burocratização. O primeiro a lutar contra a burocratização foi o próprio Lênin. Foi seu último combate, só interrompido por sua morte em 1924. A bandeira da luta contra a burocracia foi arrebatada pela Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky que a sintetizou em forma de programa político de transição na luta pela Revolução Política, uma das bases para a fundação da Quarta Internacional.
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