Billie Holiday
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Em 7 de abril, Billie Holiday faria 90 anos, caso não tivesse morrido em decorrência de uma overdose de heroína aos 44 anos, em 1959. Suas comoventes e melancólicas interpretações são ecos de uma vida marcada pelo racismo e a opressãoEleanora Holiday nasceu em 1915, em uma família pobre residente em um gueto negro da Pennsylvania, quando seus pais, Clarence e Sadie, tinham respectivamente 15 e 13 anos. Apelidada de “Lady Day”, pelo saxofonista Lester Young — com quem ela gravou alguns de seus mais vibrantes sucessos, como “Easy Living” e “Follin’ Myself” —, Billie teve sua vida e carreira profundamente marcadas pelo racismo e por eventos que fizeram dela uma mulher mergulhada na tristeza.

Uma situação que a cantora traduziu na voz cortante utilizada para interpretar “blues” cujas letras se aproximam de melancólico registro autobiográfico de sua tumultuada vida. Músicas com “Lover Man” (“o amante”), “Good morning heartache” (“bom dia, coração partido”), “That ole devil called love” (“aquele velho diabo chamado amor”) e “What this thing called love?” (“O que é esta coisa chamada amor?”), esta última do genial Cole Porter, são comoventes enredos para uma vida amorosa marcada por sobressaltos.

Já a música “Strange Fruit” tornou-se um verdadeiro hino de denúncia ao racismo e “God bless the child”, considerada até hoje um dos maiores clássicos do jazz, é uma contundente denúncia da pobreza e da injustiça social que faz com que “os poderosos consigam sempre mais, enquanto os fracos desfalecem”.

Do gueto para o centro dos palcos
Suas tragédias pessoais começaram ainda na infância. Aos 10 anos, Billie foi estuprada por um vizinho. Típico da postura machista que até hoje cerca a violência contra as mulheres, ela acabou sendo “condenada” pelo ato e foi presa em um reformatório para jovens delinqüentes, onde viveu mais uma brutal violência: como punição para seu “mau comportamento”, foi jogada em uma cela, durante toda uma noite, com o cadáver de um rapaz.

Quando finalmente foi libertada, Billie mudou-se com sua mãe para Nova Jersey, em pleno período da Grande Depressão nos EUA, e como muitas crianças negras da época, trabalhou como empregada doméstica. Odiando este tipo de trabalho, com apenas 14 anos Billie tornou-se prostituta em um dos mais famosos bordéis do Harlem, o bairro negro e boêmio de Nova York, uma atividade que lhe rendeu uma nova passagem pela prisão.

Disposta a sair da miséria, Billie bateu de porta em porta dos bares do Harlem, procurando emprego como dançarina e acabou sendo descoberta como cantora. Aos 15 anos, ela já estava cantando em vários clubes noturnos e aos 18, gravou seu primeiro disco. Nos anos seguintes, Billie cantou acompanhada de alguns dos melhores músicos e cantores negros de sua época, como Teddy Wilson, Duke Ellington, Count Bessie, Bessie Smith, Lester Young e Buck Clayton.

Apesar do sucesso, desde o início, os problemas não cessaram. O racismo, por exemplo, acompanhou sua carreira das formas mais absurdas. Quando ainda cantava com Count Bessie, um empresário de uma casa noturna a obrigou pintar o rosto com graxa preta, por considerá-la “clara demais”.

Em 1938, Billie, tornou-se uma das primeiras mulheres negras a cantar com uma “big band” de brancos (dirigida por Artie Shaw), mas os problemas continuaram: os produtores recusavam-se a gravar as músicas produzidas pela banda e Billie, várias vezes foi discriminada, inclusive nos hotéis nos quais o grupo se hospedava durante as turnês (que a obrigavam a utilizar o elevador “de serviço” e a proibiam de circular entre os hóspedes “regulares”), o que acabou resultando na saída de Billie, em protesto contra a situação.

Foi a fundação do Café Society, um clube que tinha como lema “o lugar errado para as pessoas direitas” e como regra a não segregação racial, que deu visibilidade nacional para Lady Day. Contratada em 1939 por Barney Josephson, o empresário judeu e ativista anti-racista que criou o clube, Billie tornou-se um imediato sucesso.

Sucesso em muito relacionado com uma de suas interpretações mais vigorosas e polêmicas: a música “Strange Fruit”, uma poderosa balada cujos versos mencionam que das árvores dos ultra-racistas estados do Sul dos Estados Unidos brotam “estranhos frutos” — “corpos negros que balançam na brisa sulista”, em alusão aos enforcamentos praticados pela Klu Klux Klan e outros grupos racistas que empestavam os estados sulistas.

Desencantos e perseguições
No auge da fama, em 1941, Billie acrescentou o casamento com Jimmy Monroe à longa lista de frustrações amorosas que marcaram sua vida. Aliás, foram os constantes casos de Monroe com outras mulheres que fizeram com que Billie compusesse uma de suas mais belas canções, “Don´t Explain” (“não se explique”), escrita depois de ver o marido chegar em casa com a roupa manchada de batom.

Pouco depois da separação com Monroe, ela se casou com um sujeito ainda pior: o trompetista Joe Guy, que além de a ter levado praticamente à falência parece ter sido responsável pela introdução de Billie no mundo do ópio e, posteriormente, da heroína. Um terceiro casamento, desta vez com Louis McKay, foi igualmente desastroso.

Em 1946, já bastante famosa, Billie foi chamada por Hollywood para fazer o filme “New Orleans”, com Louis Armstrong. Típico da indústria cinematográfica, o papel reservado para ela foi de uma empregada doméstica. Um papel que aceitou fazer para estar ao lado de seu ídolo desde a infância, mas sobre o qual ela protestou publicamente.

`BillieO longo e doloroso caminho ladeira abaixo se acentuou em 1947, quando a cantora foi presa por porte de heroína, ficando na cadeia por cerca de um ano, algo que raramente teria ocorrido com uma “celebridade” branca (muitas delas, no mundo do cinema e da música, notórios consumidores de drogas das mais diversas). Além da prisão, Billie teve que amargar, até o fim de sua vida, a total proibição, por parte da polícia, de se apresentar em qualquer clube nova iorquino, o que em muito prejudicou sua carreira.

Apesar de inúmeros sucessos que sucederam esse episódio — como as espetaculares gravações de “Fine and Mellow” e de “I loves you, Porgy” (da “ópera negra” “Porgy and Bess”, escrita por George e Ira Gershwin) e uma ultra bem sucedida turnê pela Europa, em 1954 — a decadência de Billie era evidente. Ao voltar da Europa, a cantora foi presa novamente, desta vez na Filadélfia, que também a baniu para sempre de seus clubes.

A experiência fez com que ela procurasse ajuda, internando-se numa clínica de reabilitação. No entanto, o abandono da heroína foi acompanhado pelo mergulho em três litros diários de vodka ou gim.

O desfecho não poderia ser outro. Com o fígado e o coração em frangalhos, Billie morreu na manhã de 17 de julho de 1959. Os capítulos finais de sua vida foram lamentavelmente dignos de uma trajetória marcada pela pobreza, pela perseguição policial e pela tragédia: Billie recebeu voz de prisão enquanto agonizava em seu leito de morte e no momento da autópsia os médicos encontraram US$ 750 que Billie havia escondido sob sua roupa. Era todo dinheiro que lhe restava, além de 70 centavos que estavam em sua conta corrente.

Dona de uma voz inconfundível, Billie foi referência fundamental para música contemporânea e para cantoras que vão de Janis Joplin a Nina Simone. Billie deixou gravada em sua autobiografia, “Lady sings the blues” (que recebeu uma – fraca – versão cinematográfica, em 1972, com Diana Ross interpretando Billie) uma frase que em muito sintetiza sua vida e suas melancólicas interpretações: “Eu vivi músicas como estas”.

Uma vida que merece a homenagem de todo e qualquer um que dê valor à difícil arte de extrair beleza da adversidade.