Ingmar Bergman
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Morre, aos 89 anos, o diretor que soube, como poucos, traduzir sensibilidade em filmes marcantes e geniaisA morte do cineasta sueco Ingmar Bergman foi anunciada na madrugada de segunda, 30 de julho. O diretor, de 89 anos, estava em sua casa na ilha de Farö, no Mar Báltico, para onde ele havia se retirado e se isolado desde a morte de sua quinta mulher, Ingrid Karlebo von Rosen, em 1995.

Nascido em Uppsala, nas redondezas de Estocolmo, Bergman é reconhecido mundialmente como um dos mais importantes diretores da história do cinema. Seu último filme, Saraband, foi realizado em 2003, fazendo uma seqüência de um de seus próprios clássicos Cenas de um casamento (1973) e, de certa forma, fechando o ciclo de sua própria vida e obra.

Único no estilo e universal nos temas, seria uma excelente definição para um diretor que no decorrer de quase 60 anos de carreira construiu uma obra de beleza e densidade espetaculares. Uma obra, que ao navegar pelos tumultuados universos da própria existência, da solidão, do amor, da memória, da infância, das pequenas alegrias, das dores profundas (dentre elas a morte) diz respeito a todo mundo. Pelo todo mundo que tenha sensibilidade suficiente para entender que a vida também é feita destes momentos e experiências.

Uma sensibilidade que Bergman (muitas vezes a partir de suas próprias experiências pessoais) soube, como poucos, traduzir em filmes marcantes e geniais. Tanto pelos seus temas quanto pela sua extrema capacidade em manipular a linguagem cinematográfica e dirigir atores.

As conturbações de uma vida criativa
Em sua autobiografia Laterna mágica (1978) – uma referência a um brinquedo infantil que funciona com um projetor de sombras e, evidentemente, é uma metáfora para o cinema –, o diretor recorda a importância que a infância teve em toda a sua formação e no seu cinema e, particularmente, como a figura de seu pai (um rigoroso pastor protestante, a quem ele se refere como “um monstro frio”) teve papel determinante em sua trajetória.

Uma trajetória que começou no teatro, depois que Bergman se formou na Universidade de Estocolmo, em 1940. Sua carreira cinematográfica só começou cinco anos depois, quando ele estreou com Crise. No decorrer dos anos, Bergman ainda dirigiu várias produções para a TV, o teatro e a ópera.

Em sua filmografia, um dos filmes que melhor refletiu estas experiências foi Fanny e Alexandre (1982), talvez o mais “pessoal” dentre os filmes do diretor, no qual ele mergulha no universo infantil atormentado por um pai autoritário e repressor, em meio uma família extensa e cheia de contradições.

O filme, diga-se de passagem, marcou o retorno de Bergman à sua terra natal, a Suécia, depois de um “exílio” forçado. Em 1976, o diretor mudou-se para a Alemanha depois de sofrer um conturbado processo por evasão fiscal, no qual chegou a ser detido e, posteriormente, absolvido. Apesar de ter saído do país, durante toda sua vida Bergman afirmou que foi vítima de um advogado inescrupuloso que o convenceu a assinar papéis sem ler.

Muito mais conturbada, no entanto, foi sua vida amorosa. Dentre suas cinco mulheres, a relação que mais profundamente marcou sua obra foi com a atriz (e, posteriormente, diretora) Liv Ullman, com quem foi casado entre 1966 e 71 e produziu dez de seus mais fascinantes filmes.

Os frutos da relação não cessaram com o fim do relacionamento. Nos anos seguintes, Liv teve expressivas atuações em alguns dos principais filmes de Bergman: Cenas de um Casamento (1973), O Ovo da Serpente (1979), Sonata de Outono (1978) e seu último, Saraband.

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Um dos resultados mais belos do encontro destes dois geniais exemplos de suas respectivas artes se deu no início do relacionamento dos dois, em 1966, quando Bergman dirigiu Liv Ullmann em Persona um dos filmes que o próprio Bergman definia da seguinte forma: “Foi o mais longe a que cheguei”.

E, de fato, Bergman foi longe em Persona, ousando tanto em inovações na linguagem cinematográfica quanto no conteúdo – o que fez, diga-se de passagem, que, no Brasil, o filme recebesse o ridículo e preconceituoso subtítulo Quando duas mulheres pecam – ao tratar da relação entre duas mulheres, a enfermeira Alma (Bibi Andersson) e a atriz Elisabet (Liv Ullmann) cuja profunda crise pessoal fez com que ela simplesmente parasse de falar.

Jogos da memória, da vida e da morte
Uma das cenas mais famosas do cinema encontra-se em O sétimo selo: a de um cavaleiro medieval se pergunta pelo sentido da vida jogando xadrez com a morte. Produzido em 1957, o filme é uma evidente metáfora à Guerra Fria construída a partir da inglória e derradeira disputa travada pelo cavalheiro.

Tema constante na filmografia de Bergman, a morte tem caráter muito especial em suas histórias. Ela é, simplesmente, parte da vida, a qual o cineasta definiu, em 1976, com um ateísmo que causou polêmica: Estamos na Terra e esta é nossa única vida.

Uma vida na qual a morte é, evidentemente, um momento marcante, mas é tanto parte da vida quanto o é uma troca de olhares que muda a trajetória de duas pessoas, uma recordação infantil que se perpetua na mente ou qualquer outro momento guardado na memória.

Aliás, a memória também tem papel central no universo berganiano. E o filme que melhor demonstra isto é o belíssimo Morangos silvestres (1957), em que um velho professor à beira da morte faz um poético mergulho em seu passado, que na tela, mescla-se, a todo momento, com o presente.

Mergulhos no ser humano
Nos anos 1960 e 70, em meio aos tumultos políticos que o mundo atravessava, muitos foram os que classificaram Bergman com um diretor existencialista, “despolizado”. Uma leitura bastante equivocada tanto do papel do cinema quanto da obra do cineasta sueco.

Se não bastasse o fato de Bergman ter composto um dos mais radicais “manifestos” contra o nazismo, em O ovo da serpente – no qual, durante os anos 60, pessoas são submetidas a experiências médicas e psíquicas, na Berlim dos anos 1920, onde o nazismo estava sendo gestado –, o cinema de Bergman nunca deixou de ter uma dimensão política, principalmente naquele campo particularmente reservado à arte: a representação das contradições do ser humano, seus sonhos e desejos.

Neste sentido, um dos mais belos exemplos é Gritos e sussurros (1972) que retrata o drama das irmãs Karin, Maria e Agnes (esta última no seu leito de morte, sendo velada pelas demais e auxiliada pela empregada Anna), que em diálogos e recordações revelam um vida repleta de mentiras, amores proibidos e culpas.

O filme também é exemplar de outro aspecto fundamental da obra de Bergman: a profundidade com que seus filmes mergulham no universo feminino. Tema que esta no centro de outra obra-prima do diretor, Sonata de outono (1978), em que os embates entre mãe e filha – magistralmente interpretadas por Ingrid Bergman e Liv Ullmann – servem como palco para o debate sobre as diferentes visões de mundo de duas gerações.

Outro tema freqüente de sua obra foi a denúncia da opressão, como, por exemplo, em um de seus primeiros filmes, Noites no circo (1953), em que ele retratou a trágica trajetória de um palhaço permanentemente perseguido por um grupo de soldados, amantes de sua mulher.

Tendo vivido plenamente sua “única vida”, Bergman, além de seus nove filhos, deixou um legado inestimável. Não só em suas muitas obras, mas também através da reconhecida influência que ele teve nas obras de alguns dos principais nomes do cinema mundial, como o francês Jean-Luc Godard, o brasileiro Walter Hugo Khouri, o dinarmaquês Lars Von Trier e os norte-americanos David Lynch, Stanley Kubrick, Robert Altman e Woody Allen, cuja definição que tinha de Bergman dá bem a dimensão de sua importância: “Ele é provavelmente o maior diretor, desde a invenção da câmera”. Opinião compartilhada por gente do porte do cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-98) e do italiano, Federico Fellinni (1920-93), que via em Bergman uma espécie de irmão espiritual.

No escurinho dos cineclubes
Figura fundamental na formação intelectual e artística de gerações, para nós brasileiros, Bergman com certeza será sempre lembrado como um cineasta relacionado aos apertados e muitas vezes precários (mas vitais) cineclubes que pipocaram nas grandes cidades no final dos anos 1970, ou seja, nos anos finais da ditadura.

No meio daqueles conturbados e agitados anos, assistir a um filme de Bergman num daqueles cineclubes era parte de uma experiência toda especial. O cineclube era uma espécie de ponto de encontro obrigatório para jovens de esquerda e todos aqueles que buscavam um espaço onde se respirasse mais liberdade; os filmes de Bergman (ao lado de Luis Buñuel, Fellini e alguns outros) serviam como janela para a imaginação e estímulo para questionamentos sobre o mundo em que vivemos. Algo por si só subversivo.

Era (e, certamente, continua sendo) este o efeito provocado por um filme como O sétimo selo. Não há como ficar impassível diante do angustiado cavaleiro travando um embate que, desde o início, ele já sabe perdido; não é possível sair do filme sem destinar algum tempo para a reflexão sobre o porquê, em meio a tanta devastação, tristeza e morte, somente uma família de artistas saltimbancos consegue jogar alguma luz sobre a realidade.

Ingmar Bergman se assemelhava a um destes saltimbancos. Diretor genial que soube viver sua “única vida” com uma plenitude invejável. Artista único, que nos deixou uma obra universal.

PARA VER:
Filmografia básica: Selecionar o que é “fundamental” entre os 54 filmes de Bergman. Contudo, há coisas realmente imperdíveis. Todas elas disponíveis em DVD:

• Noites de circo (1953)
• O sétimo selo (1957)
• Morangos silvestres (1957)
• Persona: quando duas mulheres pecam (1966)
• Gritos e sussurros (1973)
• Cenas de um casamento (1974)
• A flauta mágica (1975)
• Sonata de Outono (1978)
• O ovo da serpente (1979)
• Fanny e Alexander (1982)
• Depois do ensaio (1984)