Beija Flor: sua arte presa pela corrupção
George Bezerra, de Fortaleza (CE)

Um exemplo de quando a arte perde sua independência: escola recebeu dinheiro do governo corrupto do DF e exaltou Brasília sem nenhuma corrupçãoO ano era 1989. As recentes lutas contra a ditadura ainda estavam vivas. Lula disputava sua primeira eleição presidencial, e as greves operárias faziam parte da conjuntura do país. As mazelas sociais estouravam em meio a uma inflação galopante que endurecia a vida da classe trabalhadora brasileira.

Foi nesse contexto que o carnavalesco Joãzinho Trinta emprestou seu talento à escola Beija-Flor de Nilópolis com o eternizado enredo “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia!”.

O enredo tratava das desigualdades sociais do país, apresentando na avenida dois setores: um pobre e um rico. A escola foi ousada e tentou levar à avenida a imagem do Cristo Redentor vestido de mendigo. A ideia era chocar e, principalmente, contrastar com a imagem daquele Cristo de braços abertos e acolhedores para todos, tão difundida nos cartões postais numa cidade onde os braços do Cristo acolhem a poucos.

Indignada, a igreja católica entrou em cena, e a escola foi censurada. O Cristo-Mendigo não entrou na avenida, mas apareceu todo coberto de preto como forma de protesto. Aliás, essa é a imagem mais lembrada daquele carnaval. A Beija-Flor não ganhou o carnaval de 1989. Foi vice-campeã, mas caiu nas graças do povo e mostrou como é possível fazer uma arte livre que questione a sociedade capitalista, fazendo justiça à letra do samba enredo que dizia: “Firme… Belo perfil! Alegria e manifestação. Eis a Beija-flor tão linda,derramando na avenida frutos de uma imaginação”.

O ano agora é 2010. Passaram-se 21 anos. Hoje, a maioria das escolas de samba, principalmente as grandes, são patrocinadas por grandes empresas e pelos governos, reduzindo o poder criativo do fazer arte. Nos desfiles das escolas de samba, o ditado “quem paga escolhe a música que vai tocar” mostra literalmente sua atualidade.

O próprio Joãzinho Trinta, principal responsável pela ousadia da Beija-Flor em 1989, fez um samba enredo, em 2003, intitulado “O Brasil que Vale” patrocinado pela Vale do Rio Doce. O desfile, que deveria tratar das belezas naturais do Brasil, acabou se transformando numa propaganda da Vale do Rio Doce, uma empresa protagonista na destruição das belezas naturais do país.

A Beija-Flor de 2010 recebeu nada mais nada menos que R$ 3 milhões de reais do governo do corrupto José Arruda do Distrito Federal para falar de Brasília na avenida. Na letra do samba enredo, Brasília é apresentada como “orgulho, patrimônio mundial… capital da esperança”.

Nada a ver com a Brasília da propina, dos podres bastidores do poder burguês, dos escândalos de corrupção, do mensalão, dos Arrudas, Sarneys, Severinos e Collors de Mello. Enfim, de longe é aquela cidade que “fabrica a sua própria lei”.

Mas, não foi só a letra que pintou uma Brasília da fantasia. Na avenida, pouco ou nada das grandes manifestações dos movimentos popular, estudantil e sindical que, por várias vezes tomaram conta da cidade, pela reforma agrária, por aumento salarial, contra a retirada de direitos, contra a corrupção ou simplesmente para expressar o ódio contra os governos de plantão, como na marcha dos cem mil que lançou a campanha “Fora FHC”, foram mostradas.

O samba da Beija-Flor de 2010 nada lembra aquela escola de 1989 do engajado Ratos e Urubus. Da mesma forma que a arte pode ser livre e emprestar sua força ao protesto social, também pode fazer o mesmo a serviço dos donos do poder. Mas aí, o carnaval, essa evolução da liberdade, fica preso, perde a graça.

Beija-Flor, quem te viu, quem te vê…