Enquanto Tsipras e seu novo ministro das finanças, Euclid Tsakalotos, buscam, em Bruxelas, um novo acordo com a Troika, tirei o dia para finalmente conhecer parte da estrutura partidária do Syriza. Devo admitir que a tarefa foi executada com uma mistura confusa de sentimentos. Rejeito categoricamente o conteúdo da política do partido de conciliação com a troika e, agora, com a direita parlamentar que foi derrotada no referendo. Ao mesmo tempo, a dinamicidade da organização e sua capacidade de sair, em poucos anos, das margens da vida política grega para ocupar o centro da luta antiausteridade na Europa , de certo modo me atrai. Tais sentimentos apenas se aprofundaram em minha visita a radio Kókkinos.

Por detrás de um enorme banner que carrega seu nome, cujo significado em português é, literalmente, “Vermelho”, a rádio ocupa um simpático prédio de quatro andares. Ele fica localizado a duas ou três quadras da QG do próprio Syriza, que é o proprietário direto da estação. Surgida em 2008 como uma pequena antena baseada no centro de Atenas, Kókkinos é hoje uma potencia nacional na comunicação radiofônica. Em termos programáticos, o jornal I Avgi, diário do partido vendido amplamente nas bancas de jornal, é o órgão oficial do Syriza, porém, por conta de seu alcance, Kókkinos é o principal órgão de massas partidário de Tsipras.

Tendo como minha tradutora a simpática Milena, uma ativista da juventude do Syriza que trabalha na rádio, conversei aquele dia com o editor chefe do órgão, Kostas Arvanitis. Antigo jornalista de carreira da EPT, a estação pública de televisão do país, Kostas perdeu seu emprego em um famoso incidente envolvendo um caso de tortura de ativistas antifascistas praticado pela polícia.

Nikos Dendias, então ministro da Ordem Pública, havia afirmado que processaria por calúnia o jornal britânico The Guardian, que havia feito a denúncia de seu conhecimento dos fatos. A ameaça, porém, não se concretizou. Ao afirmar que o ministro não se moveu judicialmente contra os ingleses porque sabia que os mesmos tinham razão, Kostas comprou uma briga com o homem errado. O governo decidiu que queria a cabeça dele e de sua colega de programa, Marilena Katsimi. Os dois foram sumariamente demitidos da rede logo após o comentário.

Escândalo em escala europeia, o caso foi apenas um dos muitos incidentes de perseguição à imprensa oposicionista que marcaram o mandato do Nova Democracia, o tradicional partido de direita que governava a Grécia antes do Syriza. Pouco mais tarde, Samaras, o então primeiro ministro, argumentando que necessitava impor austeridade econômica nas finanças estatais, fechou a estação pública de TV da qual Kostas havia sido demitido. Curiosamente, a EPT, por conta dos anúncios de empresas privadas, era uma entidade lucrativa.

A reação dos trabalhadores à tentativa de demissão em massa deu-se na forma de uma ocupação do canal e a manutenção de sua programação pela internet e TV de satélite. A resistência à medida, que envolveu atores importantes do movimento social grego, fez da luta da EPT um dos principais símbolos de resistência dos trabalhadores aos ataques da troika. Promessa de campanha, pouco após a eleição do Syriza, ela retornou legalmente ao ar.

Desde o incidente de sua demissão, Kostas foi convidado por Tsipras a largar a EPT e assumir a direção da rádio Vermelho. A ideia era construir um aparato que disputasse, no campo das ideias, diretamente com a imprensa burguesa. “Queremos, além de ser uma rádio alternativa, um órgão de massas” afirmou-me seu diretor. “Por isto, trabalhamos para ser uma rádio não do Syriza, mais sim, de toda a esquerda”. A gestão do próprio Kostas sintetiza esta realidade. Ex-militante do KKE, ele rompeu com o partido stalinista nos anos 90 e nunca mais voltou a se organizar partidariamente. Foi exatamente por isto, afirma, que o jornalista chocou-se tanto com o convite de Tsipras para que assumisse a direção do aparato. A natureza ampla da proposta, segundo ele, fez da rádio um sucesso. “Nossa programação inclui, entre outras coisas, um programa diário de 30 minutos sobre esportes. Importante mencionar, inclusive, que a âncora do programa é uma mulher”, afirmou com orgulho.

A Kókkinos, segundo Kostas, é hoje a oitava maior estação de rádio de Atenas em um universo de mais de 50 canais. Entre os voltados à divulgação de noticias, ela é a 3ª maior estação da capital. Para um canal de apenas 7 anos de idade, os resultados são para lá de surpreendentes. “Nosso segredo foi investir para tornar nossos ativistas em verdadeiros jornalistas profissionais” me disse Kostas. Hoje superavitária, quando o atual diretor assumiu a rádio ela se encontrava com sérios problemas financeiros e um futuro incerto. Atualmente, possui 10 filiais em toda Grécia, e mais dezenas de rádios no interior do país que atuam em cooperação com ela.

A arma do microfone
Aparatos de imprensa, em momentos de revolução, são instrumentos indispensáveis. Recordo-me, no Cairo, quando conheci alguns companheiros sírios exilados por lá que tentavam organizar uma rádio antiditadura, a ANA, cujo nome significava Agencia de Noticia dos Ativistas.

A ANA não deu certo. Faltavam quadros, estrutura e dinheiro. Mais do que tudo isto, faltava-lhe público. Mas, se um projeto como aquele era de grande importância para a revolução síria, que ocorria em uma sociedade ditatorial em que quase metade da população é camponesa, na Grécia, ela ganha outra natureza. Democracia-burguesa sólida, as regras do jogo por aqui são necessariamente outras.

É certamente um consenso na esquerda revolucionária que o referendo chamado por Tsipras era uma pré-condição para a radicalização das massas. Posto o tamanho das ilusões que se tem em sociedades modernas na democracia liberal, é preciso, para antes de se insurgir contra o Estado, forçar completamente os limites de seu regime democrático-burguês. Mas o regime tem suas regras, como as que exigem o apoio de 50% mais 1 dos eleitores para vitórias eleitorais.

Na busca destes 50% mais um que aparatos como a Kókkinos tornam-se ainda mais indispensáveis. Segundo Kostas, a emissora cresceu em 40% sua audiência durante a campanha do OXI. Para derrotar a austeridade, o microfone ganha conteúdo de fuzil.

Não há nenhuma organização na esquerda brasileira, incluindo generosamente neste grupo o PT, com um aparato similar a este. Também não havia nada assim nas regiões rebeldes da Síria que visitei quando estive por lá nem na Cairo revolucionária. Não poderia deixar de observar, inclusive, que elementos como a Kókkinos revelam que, apesar da radicalidade das massas árabes, um processo político como o que ocorre aqui na Grécia, mesmo que muito mais ordeiro e menos radical em seu método, está muito mais à esquerda. Em suma, rádios como a Kókkinos são o que fazem de Atenas a capital vermelha da Europa.

Os limites da tática
O encanto com a rádio do Syriza, porém, durou pouco. Talvez, principalmente, porque seu editor reivindicou o acordo feito por Tsipras, anteontem, com os partidos da direita, incluindo o Nova Democracia. A proposta, segundo o Financial Times, serve para enfraquecer o poder de barganha da esquerda do partido caso Tsipras capitule junto à troika, pois não precisaria contar com seus votos no parlamento para aprovar a medida. Kostas defendeu a política do governo afirmando que, dentro de um regime parlamentar, é necessário dialogar com todos, algo que o governo anterior se recusava a fazer. Sua resposta que dispensa grandes comentários. Para além disto, uma rápida pesquisa na internet sobre a política da rádio levantou alguns fatos preocupantes.

Talvez, a acusação mais grave com a qual me deparei, para além de possíveis comportamentos antisindicais, foi a de que a direção da rádio possuía responsabilidade na convocação da polícia para reprimir trabalhadores do sindicato dos livreiros. O motivo foi que eles organizavam um piquete contrário a uma medida do governo Samaras que mudou a lei de descanso no domingo. Posto que a atividade da rádio na livraria ocorreria domingo, optou-se por resolver o problema na base da repressão estatal.

Como não falo grego, não posso, segundo meus próprios ouvidos, avaliar a rádio. Posso, porém, avaliar a política do partido que o dirige. Antes de fazê-lo de forma mais enfática, porém, pretendo conhecer melhor as políticas de suas alas esquerdas, principalmente a dos trotskistas. Amanhã me reunirei com Sotiris Martalis, o principal dirigente do DEA, o maior dos grupos dos seguidores de Leon Trotsky que integra o Syriza. Espero que a conversa, que reportarei aqui, traga mais entusiasmo que decepção.

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