Redação

Introdução
1. Por que a crítica teórica ao anarquismo?
2. Bakunin e a gênese do anarquismo
3. O desenvolvimento pós-bakuninista: o que não avança retrocede
4. Somente a prática é o critério da verdade
5. Conclusão
Notas

Introdução
O primeiro enunciado deste artigo deve estar dirigido para a afirmação da necessidade da crítica marxista ao anarquismo. Não se deve partir do princípio que determinado adversário está definitivamente derrotado, apenas em função do fato de suas premissas e teses apresentarem-se, para nós, como superadas ou descabidas. Com o anarquismo coloca-se a questão exatamente desta maneira. Para todo marxista realmente familiarizado com os eixos mais fundamentais do materialismo dialético e histórico, as afirmações anarquistas a respeito do Estado, das eleições, do indivíduo, da liberdade e etc., são percebidas, imediatamente, como expressões de ingenuidade filosófica, de dogmatismo moralista, ou de charlatanismo político, no entanto, para o público em geral, principalmente em um ambiente intelectual reacionário, podem parecer idéias muito sedutoras.

Diante do momento histórico que atravessa nosso país, com a crise do governo Lula e o desgaste violento da legitimidade das instituições da democracia burguesa, importantes setores de massa rompem, ainda quase que apenas pela negativa e majoritariamente no plano das idéias, com o regime. Some-se a isto a profunda desmoralização dos aparatos tradicionais de organização nacional dos trabalhadores e estudantes (CUT e UNE), em função de sua absoluta burocratização e de sua degeneração definitiva, expressa em seu ativo governismo reacionário, imobilista e traidor. Frente a este quadro se coloca a necessidade de uma árdua disputa pela inexperiente, mas combativa, vanguarda da classe trabalhadora e da juventude para as posições do marxismo revolucionário e seu partido, como forma de impulsionar um sentido verdadeiramente classista à reorganização que, de modo muito incipiente ainda, começa a se dar nos marcos do campo proletário.

As idéias anarquistas voltam a exigir com significativa atenção uma crítica franca, porém demolidora, por parte do marxismo revolucionário, em função de seu potencial de atração sobre setores da vanguarda do proletariado e da juventude que, rompendo com o regime burguês, seu parlamento e seu sistema partidário, são ainda insuficientemente experientes na luta de classes para compreender a necessidade do partido revolucionário do proletariado e sua prática política. Este potencial de atração do anarquismo e de suas derivações – tais como o “autonomismo“ argentino – tem sido demonstrado não somente nas grandes manifestações anti-imperialistas na Europa e Estados Unidos como também em processos mais agudos de luta revolucionária, como o “argentinaço“. Em todos estes casos, as idéias anarquistas ou neo-anarquistas passam a adquirir uma existência expressiva no seio da vanguarda anteriormente citada.

Para entender as razões deste possível “revival“ do anarquismo, não podemos nos deter aos aspectos puramente ideais da questão. É preciso buscar os fundamentos materiais que possam nos fornecer a chave explicativa para o determinado processo ideológico que traz novamente o anarquismo à superfície do debate político no campo da esquerda. A década de 1990, diante da restauração capitalista nos países do Leste Europeu e na ex-União Soviética, foi o palco de uma poderosa ofensiva ideológica – fundada nesta citada ofensiva material – da burguesia imperialista contra o socialismo, em geral, o marxismo, em particular, e o bolchevismo, no âmago específico da discussão. Esta ofensiva foi profundamente destrutiva e, entre outros fenômenos, gerou aquilo que Martin Hernandez chama de “vendaval oportunista“, com a adesão de grande parte das organizações e partidos anteriormente revolucionários à ordem burguesa.

Como afirma Trotsky em relação aos períodos históricos nos quais a correlação de forças sociais tende mais favoravelmente à burguesia, eles “não só debilitam e desintegram a classe operária isolando-a de sua vanguarda, mas também rebaixam o nível ideológico geral do movimento, fazendo recuar o pensamento político até etapas já superadas desde há muito tempo“.[1] Neste contexto, no qual predominou a ofensiva francamente reacionária e pró-imperialista contra o marxismo, cujo exemplo mais significativo é a decretação do “fim da história“ por parte do ideólogo neoliberal Francis Fukuyama, onde se consagra a economia capitalista e a democracia burguesa como pontos culminantes do desenvolvimento histórico da humanidade, podemos também presenciar, no interior do campo da esquerda intelectual e política, alguns efeitos secundários deste recuo do pensamento político e deste rebaixamento do nível ideológico apontados por Trotsky. Aqui já não se trata de uma defesa ideológica necessariamente consciente do sistema capitalista e da burguesia, mas sim da inconsciente – ou disfarçada – adesão a pressupostos filosóficos e teóricos reacionários na ânsia do combate ao marxismo. É neste âmbito que deve ser compreendida a retomada do anarquismo no plano do debate político.

Desde 1994, o movimento zapatista mexicano vem, direta ou indiretamente, servindo de suporte ao desenvolvimento de uma perspectiva anarquista, neo-anarquista ou semi-anarquista na esfera política e intelectual de oposição ao neoliberalismo e à ofensiva do grande capital. Sua manifestação de rebeldia armada frente à ordem neoliberal aliada à sua crítica ao marxismo e sua afirmação de pressupostos políticos como a democracia comunitária, deu ânimo às novas tendências anarquistas e anarcófilas que se desenvolviam principalmente entre estudantes e entre alguns intelectuais, principalmente aqueles carentes de uma solução “nova“ como resposta a suas “antigas“ desilusões políticas e ideológicas. Na esteira do êxito midiático dos zapatistas, ganha novas forças a presença de antigos intelectuais assumidamente anarquistas como o lingüista estadunidense Noam Chomsky, e mais recentemente, os anarcófilos John Holloway – com sua mudança do mundo “sem tomar o poder“ -, Michael Hardt e Toni Negri – com sua “multidão“ para combater o “império“. Cito estes como aqueles que, entre os anarquistas ou neo-anarquistas, vem adquirindo maior destaque e influência.

A inicial e “empolgante“ rebeldia destas referências na década de 90, vem se apagando com o acirramento da luta anti-burguesa e anti-imperialista em escala global neste início de século XXI. As mais recentes declarações dos zapatistas em favor da união das esquerdas mexicanas em torno da rebaixada bandeira de reforma constitucional, o posicionamento de Chomsky a favor do democrata John Kerry nas últimas eleições presidenciais nos EUA, e a contínua louvação do contra-revolucionário Fórum Social Mundial por parte de Hardt e Negri, são, imediatamente e de conjunto, a explicitação da incapacidade prática deste neo-anarquismo em dar uma resposta coerente e consistente à classe trabalhadora e aos povos oprimidos do mundo em sua luta contra a burguesia imperialista e seu sistema econômico e social.

Podemos também, frente a estes fatos concretos, perceber qual é, em última instância, o conteúdo social das críticas ao suposto “dogmatismo“ e “autoritarismo“ do marxismo lançadas pelos anarcófilos acima mencionados e a razão da coincidência de muitos de seus pontos de vista com aqueles dos representantes francamente pró-imperialistas do anti-marxismo.
No entanto, entende-se aqui que uma crítica aos mais badalados neo-anarquistas ou semi-anarquistas da atualidade não responderia à necessidade de uma crítica marxista ao anarquismo como um todo, desde sua origem histórica, enquanto teoria e prática, e por outro lado, entende-se que esta crítica global, por sua vez, dá resposta à necessidade de refutar os contemporâneos anarcófilos. Desvelar as contradições e limitações intrínsecas do pensamento anarquista nestes quase 150 anos em que se opõe ao marxismo, e revelar as relações entre estas contradições e suas conseqüências práticas na história é um passo necessário para consolidar a afirmação, uma vez mais e de uma vez por todas, de que a única, coerente e consistente alternativa filosófica, teórica e prática para a superação do capitalismo e construção de uma sociedade sem a dominação e sem a exploração do homem pelo homem se encontra na perspectiva apresentada pelo materialismo histórico e dialético e pelo socialismo científico tal qual apresentado originalmente por Marx e Engels e desenvolvido posteriormente por Lênin e Trotsky.


1. Por que a crítica teórica ao anarquismo?
O anarquismo deve ser encarado como, além de um movimento político, uma corrente ideológica. Deste ponto de vista, por trás das atividades práticas dos anarquistas na história, se encontra uma determinada perspectiva ideológica fundada em uma fracamente sistematizada, porém presente, teoria. Já afirma Lênin em 1902 que “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário“[2], e, conseqüentemente, que “só um partido guiado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda“[3]. O que pode conter a afirmação de Lênin que seja do interesse da crítica marxista ao anarquismo? Bem, para afirmar ou negar, em absoluto ou em parte, o caráter revolucionário de um determinado movimento político e de uma determinada corrente ideológica, é necessário conhecer o caráter da teoria que embasa sua ação e sua formulação. O aspecto propriamente teórico da ação política de um determinado movimento deve ser profundamente levado em consideração porque, como argumenta Engels, “tudo aquilo que impulsiona os homens tem, necessariamente, de passar por suas mentes“[4].

O modo pelo qual os homens entendem o mundo e explicam, eles mesmos, sua ação neste mundo, não pode, isoladamente, explicar o significado mais geral desta sua ação, no entanto, pode determinar, com bastante força, os contornos e as formas de sua ação concreta. Assim sendo, a concepção teórica de um determinado movimento político, ou seja, sua forma de entender o mundo e de orientar sua ação neste mundo, é de fundamental importância para nos dar a conhecer, não somente seu programa, sua estratégia e sua tática, como também, seu sentido histórico-social. Os limites e contradições práticas do anarquismo enquanto movimento político e sua incapacidade histórica de se colocar na direção conseqüente do proletariado, suas lutas e seus interesses de classe, guardam uma relação direta com os aspectos principais da teoria que está na base de sua perspectiva ideológica.

Desta forma, o processo de desenvolvimento especificamente teórico do anarquismo, em sua relação com a concretude do meio social onde se insere e da disputa com o marxismo, é tomado em consideração como aspecto central a ser observado pela crítica que se propõe a lançar contra o anarquismo neste breve artigo. Antes, porém, de proceder à crítica propriamente dita ao anarquismo, é importante ressaltar o valor e o mérito de milhares de militantes e combatentes anarquistas que, ao longo da história da luta dos trabalhadores contra a burguesia, entregaram seus maiores esforços e, mesmo, suas vidas por um futuro mais digno e justo para a humanidade. A discordância em relação à ideologia anarquista não significa aqui ignorar tais méritos e nem rechaçar a aproximação, na luta concreta, com aqueles anarquistas que se colocam diretamente na luta dos trabalhadores e da juventude contra a exploração capitalista. Ao contrário, entende-se aqui que a unidade de todos aqueles dispostos a combater a burguesia no campo da luta de classe do proletariado e através de seus métodos é um princípio valioso, e, como tal, é sustentado aqui bem alto.


2. Bakunin e a gênese do anarquismo
O anarquismo enquanto movimento político, enquanto corrente específica do movimento operário, tem sua origem diretamente relacionada a toda a tradição do chamado socialismo pré-científico francês, mais especificamente à doutrina de Pierre-Joseph Proudhon. Este pensador e militante francês foi o primeiro na história da luta do movimento operário a reivindicar positivamente para si e para seu programa político a definição de anarquista. O termo, oriundo do grego anarchos (algo próximo a “negação do poder“), passava a significar, em Proudhon, a defesa de um modelo de organização social baseado na ausência do Estado e na propriedade mutualista dos meios de produção. Uma de suas obras principais, “A filosofia da miséria“, foi duramente criticada por Marx em “A miséria da filosofia“, no qual é explicitado o caráter idealista e anti-dialético de seu sistema de idéias. Proudhon, no entanto, se destacará como uma das principais referências do movimento operário francês desde os acontecimentos revolucionários de 1848 até o início da década de 1860, e será o responsável pela conversão de Bakunin à perspectiva socialista.

O russo Mikhail Alexandrovitch Bakunin pode ser, tranqüilamente, considerado como o fundador do anarquismo enquanto movimento político, dado que será através de sua atividade de agitador, propagandista e organizador que será construída, pela primeira vez, uma estrutura organizativa especificamente orientada por uma perspectiva anarquista. Nascido em 1814 em uma família aristocrática da Rússia, Bakunin vai estar vinculado entre os anos de 1834 e 1840 aos círculos intelectuais clandestinos de Moscou, onde vai tomar contato com as obras dos diversos filósofos mais influentes no período, como Schelling, Kant, Fichte e Hegel. Ao sair da Rússia e radicar-se na Alemanha no início da década de 1840, Bakunin vai dar início à sua atividade política como revolucionário republicano, democrata e pan-eslavista. Ao longo de toda a década de 40 do século XIX desenvolve uma febril atividade revolucionária em vários países europeus, até ser preso na Alemanha e extraditado para a Rússia onde cumpre prisão até o início dos anos 60, quando então foge do desterro siberiano para o Japão, Estados Unidos e volta, finalmente, à Europa, onde então toma contato com Proudhon – pouco antes da morte deste – e inicia sua fase propriamente anarquista [5].

Bakunin, em 1864, declina do convite feito por Marx para que ingressasse na recém-fundada Associação Internacional dos Trabalhadores e dedica-se à articulação de sua organização secreta na Itália que vai ficar conhecida como a “Fraternidade Internacional’. É deste período que data seu importante texto “Catecismo Revolucionário“ onde fica exposto o essencial de seu programa político. Em 1867, participa do congresso de fundação da Liga da Paz e da Liberdade, organismo que buscava representar o conjunto dos setores direcionados politicamente no sentido republicano e democrático na Europa. Bakunin aí intervém, com sua organização secreta, até convencer-se que a Liga é um instrumento inútil para propagar sua perspectiva revolucionária, quando ingressa – no ano de 1868 – na AIT e passa a desenvolver a disputa política pela direção da Internacional contra Marx, Engels e os comunistas[6]. Bakunin produz a maior parte de sua obra teórico-política neste contexto de enfrentamento com Marx na AIT até sua morte em 1876. Esta obra consiste fundamentalmente nos livros “O império cnuto-germânico e a revolução social“ (1871) e “Estatismo e anarquia“ (1873), além de “Federalismo, socialismo e anti-teologismo“ escrito na época de sua participação na Liga da Paz e da Liberdade.

O pensamento de Bakunin, é sem dúvida muito mais profundo e desenvolvido que o de qualquer outro pensador anarquista posterior. Em função dos limites de espaço próprios a este pequeno artigo, e também ao objetivo do mesmo, que é apenas o de expor os elementos principais da doutrina anarquista a uma crítica marxista, as formulações de Bakunin serão apresentadas aqui de maneira bastante resumida. Do ponto de vista filosófico, buscará reivindicar-se do campo do materialismo, fazendo, no entanto questão de diferenciar-se da perspectiva materialista tal como defendida por Marx e Engels.

“Sem dúvida alguma os idealistas se enganam e/ou os materialistas têm razão. Sim, os fatos existem antes que as idéias; o ideal, como disse Proudhon, não é mais que uma flor da qual são raízes as condições materiais de existência. (…) Nossos primeiros antepassados, nossos Adãos e vossas Evas, foram, se não gorilas, ao menos primos muito próximos ao gorila, onívoros, animais inteligentes e ferozes, dotados, em um grau infinitamente maior que os animais de todas as outras espécies, de duas faculdades preciosas: a faculdade de pensar e a faculdade, a necessidade de rebelar-se. Estas duas faculdades, combinando sua ação progressiva na história, representam propriamente o `fator´, o aspecto, a potência negativa no desenvolvimento positivo da animalidade humana, e criam, por conseguinte, tudo o que constitui a humanidade nos homens“.[7].

O pensamento de Bakunin se constrói no interior da mesma corrente fecunda de onde emerge o materialismo dialético e histórico marxista, ou seja, o campo da reflexão impulsionada pela filosofia de Hegel. No entanto, esta filiação filosófica original comum, bem como a comum inserção no movimento da classe trabalhadora, não foi o suficiente para que o anarquista russo fosse capaz de romper completamente, tanto do ponto de vista teórico como do político-social, com sua origem democrático-republicana. Como fica demonstrado na passagem acima citada, no momento mesmo em que se esforça para colocar-se firmemente na defesa do materialismo, Bakunin, desliza flagrante e contraditoriamente para o leito comum idealista dos revolucionários pré-proletários da Revolução Francesa. Ao desconhecer o desenvolvimento das forças produtivas materiais como o fator de desenvolvimento histórico das sociedades humanas, colocando em seu lugar uma, agora abstrata, faculdade de pensar e de rebelar-se, Bakunin pensa a história da humanidade avançando a partir do desenvolvimento do pensamento humano, das idéias, e não, como em Marx e Engels, do desenvolvimento das forças produtivas materiais, das relações sociais de produção e dos antagonismos de classe aí engendrados. Bakunin, desta forma, cai objetivamente no idealismo filosófico, apesar de sua defesa subjetiva do materialismo.

Podemos nos perguntar, então, porque o anarquista russo, bom conhecedor da filosofia clássica alemã, de Kant a Hegel, apesar de desejar fundar sua teoria em um solo materialista, acaba por ter de, em explícita contradição, conferir a ela uma concepção de mundo e da história que é, indubitavelmente, idealista.? A resposta está no fato de que são as condições sociais concretas e as tarefas colocadas pelos embates práticos no campo social e político que determinam o conteúdo de qualquer sistema filosófico ou ideológico. Diante de Bakunin estava colocada uma dupla necessidade: opôr-se simultaneamente à ideologia liberal burguesa e ao marxismo. Seu projeto era, como ainda é o projeto de todos os anarquistas, construir uma corrente política que, negando o marxismo, possa afirmar a luta contra a burguesia e o capitalismo. Esta tarefa prática que se coloca para o russo deixa-o em um grave problema filosófico: como negar o idealismo burguês sem aprofundar às suas últimas conseqüências o materialismo, que o levaria a aderir a Marx e Engels? A resposta dada pelo anarquista, situando-se no meio do caminho, mergulha sua concepção filosófica em graves e definitivas contradições.

Da contradição e da confusão filosófica a que chega Bakunin, entre uma adesão subjetiva ao materialismo e uma adesão prática – objetiva – ao idealismo, decorre necessariamente mais confusão no âmbito da práxis política. Se o desenvolvimento histórico está condicionado ao avanço das idéias e ao ímpeto da vontade, descolados de qualquer base material concreta, Bakunin pode afirmar que a revolução socialista, e o socialismo mesmo, independem de qualquer condição objetiva para sua realização. Qualquer sociedade em qualquer tempo histórico pode ser o palco de uma revolução socialista, da implantação do socialismo e da abolição do Estado se os revolucionários souberem “despertar os instintos populares“[8] levando as massas mais empobrecidas e oprimidas da população à luta revolucionária. O trecho abaixo dá importantes orientações a respeito desta concepção.

“Pela flor do proletariado, eu entendo sobretudo esta grande massa, estes milhões de não-civilizados, de deserdados, de miseráveis e de analfabetos que o Sr Engels e o Sr Marx pretendem submeter ao regime paternal de um governo muito forte… Por flor do proletariado, eu entendo esta carne para governo, esta grande canalha popular que, estando quase virgem de toda civilização burguesa, traz no seu seio, nas suas paixões, nos seus instintos, nas suas aspirações, em todas as necessidades e misérias da sua posição coletiva, todos os germes do socialismo futuro, e que só ela é suficientemente forte para inaugurar e para fazer triunfar a Revolução Social“.[9]

Ora, se a revolução proletária e o comunismo não estão relacionados com o desenvolvimento das forças produtivas e com a superação do capitalismo baseada nas condições objetivas colocadas na história por este próprio capitalismo, se a realização da “anarquia“ depende, fundamentalmente de elementos subjetivos, ou seja, da vontade, é necessário, então a Bakunin, lançando-se contra Marx e Engels, definir quem é o sujeito de sua revolução anarquista. O anarquista russo vai afirmar como único sujeito de sua revolução o que ele chama de “flor do proletariado“. É importante, no entanto, ter claro que o conceito de proletariado em Bakunin reúne todos os trabalhadores, assalariados ou não, na indústria e no campo. Esta “flor do proletariado“ se colocaria como o sujeito da revolução socialista em função de “sua miséria coletiva“, “seus instintos“, “suas paixões“ e não, como o proletariado em Marx, em função de uma determinada posição na estrutura produtiva e nas relações de produção. Esta “flor do proletariado“ seria algo como uma versão modernizada do “bom selvagem“ de Rousseau, uma forma mítica e idealizada da relação entre miséria, revolução e socialismo.

Para o anarquista o que importa e é decisivo são as paixões, instintos e vontades, o “socialismo futuro“, bem como a revolução, encontra aí seu fundamento. Em Bakunin o que existe escrito a respeito da ordem pós-revolucionária, ou socialista, é basicamente um conjunto de determinações políticas e jurídicas do seu “Catecismo Revolucionário“ como “a unidade básica de toda organização política em cada país deve ser a comuna completamente autônoma“ ou “a defesa militar de cada país deve ser organizada localmente, pela comuna, ou provincialmente, como as milícias na Suíça ou nos Estados Unidos da América“[10]. Os problemas econômicos da transição ao socialismo, as questões da gestão de uma economia planificada entre outras de igual magnitude são ignoradas, o que resta é apenas uma afirmação genérica sobre a necessidade da imediata abolição do Estado e da incondicional e imediata supressão de toda a propriedade privada.

Aquilo que podemos chamar de uma “teoria da revolução“ ou uma “teoria do socialismo“ no pensamento de Bakunin está profundamente afetado pela terrível contradição que, conforme vimos anteriormente, dilacera o arcabouço filosófico do russo: a permanente tensão entre defesa subjetiva do materialismo e objetiva formulação idealista. Em seu último livro, “Estatismo e Anarquia“, Bakunin busca desenvolver uma crítica definitiva ao marxismo e garantir a fundamentação teórica necessária para sua concepção política e ideológica do “socialismo revolucionário“. Aqui o velho anarquista tece um agressivo ataque ao conceito de Ditadura do Proletariado confundindo-o, por má-fé ou ignorância do tema, com a bandeira de “Estado Popular“ levantada pelo reformista Lassale, bandeira denunciada como reacionária pelo próprio Marx em sua “Crítica do programa de Gotha“. Afirma Bakunin:

“O ponto central deste programa [ditadura do proletariado] é que o Estado deve libertar o proletariado. Para alcançar isto, o Estado deve concordar em libertar o proletariado da opressão do capitalismo burguês. Como é possível atribuir tal vontade ao Estado?O proletariado deve tomar posse do Estado através da revolução – um feito heróico. Mas uma vez que o proletariado se apossasse do Estado, ele deveria de uma vez abolir imediatamente esta eterna prisão do povo. Porém, de acordo com o Sr. Marx o povo não apenas não deveria abolir o Estado, como, ao contrário, eles deveriam fortalecê-lo e aumentá-lo e colocá-lo à completa disposição de seus benfeitores, guardiães e professores – os líderes do partido Comunista, ou seja, o sr. Marx e seus amigos – que o libertaria (ao povo) de seu próprio modo. Eles iriam concentrar todo o poder administrativo em suas mãos fortes, porque o povo ignorante necessitaria de um poderoso guardião; e criariam um banco central estatal, que controlaria também todo o comércio, agricultura, indústria e até a ciência. As massas do povo seriam divididas em dois grandes exércitos, o agrícola e o industrial, sob o comando direto dos engenheiros do Estado, que constituiriam a nova classe político-científica privilegiada“.[11]

Esta longa citação tem a vantagem de expor ao mesmo tempo o eixo central da crítica de Bakunin ao marxismo e a maior parte de seus erros. Muitos escritores anti-marxistas, ao longo das décadas, se impressionaram com o suposto caráter profético de Bakunin em relação ao stalinismo na URSS. Estes escritores diziam que o anarquista teve razão ao demonstrar que o marxismo levaria inevitavelmente ao totalitarismo burocrático. No entanto, Trotsky já pôde rebater o simplismo desta tese argumentando, em um artigo de 1937, que “buscar a origem do Stalinismo no bolchevismo ou no marxismo, é exatamente a mesma coisa, em um sentido mais geral, que querer buscar a origem da contra-revolução na revolução“[12]. Deixando o suposto profecismo bakuninista de lado, voltemos às questões centrais. A raiz da negativa do anarquista russo em relação à ditadura do proletariado, que tem de assumir inevitavelmente a forma estatal, se encontra firmada sobre dois pilares. Em primeiro lugar, em uma consideração abstrata e metafísica sobre a questão do Estado. E em segundo, no desprezo do aspecto propriamente econômico da construção socialista . O Estado em Bakunin é praticamente isolado do contexto econômico e social mais amplo no qual se insere e do qual emerge. O Estado possui aqui um sentido e uma dinâmica histórica própria, independente da classe social cujos interesses expressa ou do sistema social que o engendra. O Estado, para Bakunin, é natural e simplesmente um instrumento coercitivo em favor de minorias privilegiadas sobre maiorias oprimidas.

A maneira específica como Bakunin concebe o Estado, não um Estado específico em um contexto específico, mas o Estado em geral, abstrato, está conectada diretamente à experiência da Revolução Francesa de 1789-93. Se por um lado podemos afirmar que todo o socialismo, incluindo o socialismo científico de Marx e Engels, é herdeiro desta experiência revolucionária, por outro, podemos dizer que Marx e Engels souberam depurar esta herança do que ela continha de particularmente equivocado, ou mais precisamente, de superado. O sentido histórico fundamental da Revolução Francesa está profundamente ligado à burguesia e a seus interesses, em seu momento mais radical, esta revolução não pôde ultrapassar os limites da perspectiva pequeno-burguesa. Sendo assim, toda concepção filosófica, ideológica e política que pretenda expressar os interesses de classe do proletariado necessita, inapelavelmente, superar dialeticamente os marcos de classe da Revolução Francesa e sua expressão ideal. Limitando-se aos marcos burgueses e pequeno-burgueses, a luta revolucionária identificou na França do final do século XVIII seu sujeito no “povo“ e seu inimigo no “Estado“, que por mais que fosse apresentado em alguns momentos como o Estado em geral, era na prática combatido como o Estado específico e real da aristocracia reacionária. A “teoria do Estado“ de Bakunin, transporta para as condições da luta do proletariado contra a burguesia e seu específico Estado capitalista da segunda metade do século XIX, os conceitos e as categorias pré-proletárias, e portanto, pequeno-burguesas, de “povo“ em geral e “Estado“ em geral de sua formação democrático-republicana anterior.

No que diz respeito especificamente à crítica bakuninista à Ditadura do Proletariado, soma-se à sua concepção metafísica do Estado em geral, a sua particular consideração sobre a economia, a revolução social e o socialismo. Neste âmbito Bakunin tem a oferecer uma perspectiva jurídica da revolução em relação à propriedade privada que se transforma ao longo do tempo. Em um primeiro momento, Bakunin entende como tarefa imediata da revolução, no que diz respeito à propriedade privada, a abolição do direito de herança, posteriormente, a posição de Bakunin guia-se para a expropriação imediata da propriedade privada pelas massas revolucionárias. Tanto em um momento como no outro, Bakunin nunca avançou para além desta argumentação juridicista no que diz respeito à relação entre a revolução social e a economia, o que nos dá toda a tranqüilidade para afirmar que Bakunin nunca se ocupou, de fato, da problemática econômica da construção do socialismo. O que se pode deduzir do programa bakuninista para a revolução social relativamente à propriedade dos meios de produção?

Em seu primeiro momento, quando defende a abolição do direito de herança, o que espera é expropriar pacificamente a burguesia no prazo de uma geração através desta medida jurídica. O anarquista, ignorando completamente a necessidade de exercer o controle e a direção proletária sobre a dinâmica da economia para criar as condições necessárias para a expropriação e a conseguinte gestão estatal do conjunto dos meios de produção, vai descartar mecanicamente o Estado e ao mesmo tempo, como conseqüência, confiar a direção da economia ao grande capital. Em seu segundo momento, Bakunin vai defender a perspectiva de uma revolução que imediatamente expropria o conjunto da burguesia, sem perceber, que encarrega, desta forma, a jovem revolução recém-nascida de garantir não somente a direção, mas a gestão direta de toda a complexa economia industrial moderna, e seu funcionamento harmônico, de um dia para o outro. Nesta concepção, já não há mais burguesia e, portanto, contradições de classe, no dia seguinte à revolução, e por isso, qualquer Estado em geral, ou ditadura de qualquer tipo, podem ser encarados não como estágio de transição ao socialismo, mas, como “despotismo irracional“ destinado a satisfazer apenas a “sede de poder“ de “líderes ambiciosos“.

A “teoria política e revolucionária“ de Bakunin é lógica mas, no entanto, completamente dissociada da realidade da dinâmica social e econômica concreta. Baseia-se em julgamentos morais sobre as instituições da sociedade capitalista e formula um programa que somente precisa opor-se, ponto por ponto, a estas instituições, tais como o Estado, a propriedade privada e etc. A incapacidade bakuninista de pensar conseqüentemente a partir do materialismo e da dialética – incapacidade esta independente de suas qualidades intelectuais, mas determinada por seu posicionamento particular no enfrentamento político contra Marx e Engels – o conduz a partir de um pressuposto extremamente “otimista“, e portanto, idealista, em relação à revolução social e ao socialismo. Considerando que o pensamento e a rebeldia são os fatores dinâmicos a impulsionar o desenvolvimento histórico, e considerando que as massas empobrecidas seriam portadoras inatas de um a-histórico “instinto“ socialista, Bakunin atribui como tarefa aos revolucionários despertar estes “instintos“ e “paixões“ e orientar – por meio de uma reduzida organização secreta – a sublevação popular no sentido da destruição do Estado burguês, da oposição à construção de um organismo estatal pós-revolucionário e à expropriação imediata de toda a propriedade privada.

A defesa da revolução, a gestão da economia coletivizada, a resolução dos conflitos políticos e sociais pós-revolucionários, tudo isto, absolutamente tudo, seria solucionado de maneira natural, espontânea e descentralizada pelas massas agora libertas das únicas barreiras a impedir o fluxo de seu desenvolvimento socialista e anarquista natural: o Estado em geral e o capitalismo. O simplismo desta forma de conceber a revolução social e o socialismo é explícito e inquestionável, insere-se nos marcos de uma herança do romantismo literário e filosófico da formação bakuninista. Pode-se compreendê-lo como a expressão de uma visão idealizada a respeito da classe trabalhadora e suas lutas, uma visão sobre o proletariado construída a partir de uma perspectiva filosófica pré-proletária, pequeno-burguesa.


3. O desenvolvimento pós-bakuninista: o que não avança retrocede
A morte do velho Mikhail Bakunin, pai fundador do anarquismo, em 1876, marcou o início de um processo em que o desenvolvimento anarquista foi distanciando-se cada vez mais da orientação política por ele construída. Enquanto esteve vivo e ativo, Bakunin pôde exercer uma liderança, ainda que não absoluta, certamente hegemônica no campo do anarquismo europeu. Após sua morte, a dinâmica específica do movimento anarquista, progressivamente envolvido em uma cada vez mais agressiva luta contra o marxismo, encaminhou-se no sentido de possibilitar o pleno desenvolvimento de suas tendências pequeno-burguesas, chegando a limites que envergonhariam profundamente o velho russo. A partir da década de 1880, as lideranças anarquistas que vão se consolidar a nível internacional serão, em primeiro lugar, o russo Piotr Kropotkin e o italiano Errico Malatesta. Este último, ainda que tentando, subjetivamente, se manter em um referencial revolucionário nunca opôs uma luta de fato contra o primeiro, que realmente tornou-se a principal influência no anarquismo internacional pós-bakuninista, desenvolvendo uma perspectiva teórica ultra-idealista e uma orientação política oportunista.

Não é proposta deste trabalho realizar uma análise pormenorizada e em profundidade a respeito das concepções filosóficas e teóricas de Kropotkin e Malatesta, e sim, compreender neste momento, de que maneira a base da “teoria política“ e da “teoria da revolução“ legada por Bakunin, foi desenvolvida em um sentido ainda mais atrasado por estes dois anarquistas, e de que forma este desenvolvimento contribuiu para disseminar equívocos graves no que diz respeito à luta da classe proletária. As concepções destes dois escritores diferem em relação à concepção de Bakunin e em relação à concepção um do outro em aspectos secundários, coincidindo, porém, naquilo que tem de fundamental para a discussão a respeito da construção do socialismo. Kropotkin entende o estabelecimento de uma sociedade sem Estado e sem propriedade privada, baseada na cooperação e na ajuda mútua entre os seres humanos como fruto de um processo de evolução biológica inelutável da espécie humana. Malatesta, por sua vez, descola completamente a construção do socialismo de sua base material, no entanto em um sentido mais especificamente idealista afirmando que “queremos que o novo modo de vida social saia das entranhas do povo e corresponda ao grau de desenvolvimento atingido pelos homens e possa progredir à medida que os homens avançam “[13].

O “grau de desenvolvimento“ ao qual se refere o italiano se refere ao desenvolvimento moral e intelectual, da mesma forma como o “avanço“ dos homens por ele citado é o avanço nestas mesmas esferas ideais. Do mesmo modo como aparece no pensamento de Bakunin, aqui também com Kropotkin e Malatesta, as tarefas práticas no que diz respeito ao plano político e econômico da construção do socialismo são completamente desnecessárias, pois o socialismo deve se realizar como expressão imediata e inevitável do processo evolutivo da espécie (Kropotkin) ou do avanço moral e intelectual dos homens (Malatesta).

Algumas diferenças políticas práticas importantes vão separar o anarquista italiano Errico Malatesta do russo Kropotkin. Enquanto o primeiro afirmava a revolução baseada na propaganda dos ideais anarquistas como único meio para atingir a sociedade libertária, o segundo admitia a possibilidade, mesmo que muito remota, de uma evolução mais ou menos pacífica resultante daquela mesma propaganda ideológica. Enquanto este segundo apoiou a Rússia czarista na I Guerra Mundial, o primeiro a ela se opôs em uma perspectiva internacionalista. Ambos, porém, se irmanam na concepção de uma derrubada do poder burguês que instantaneamente “abole“ o Estado e expropria completamente a burguesia. Uma primeira síntese é aqui necessária. É preciso ter clareza que o fundamento da intransigência anarquista em relação à negação da construção da Ditadura do Proletariado, que adquire necessariamente um caráter estatal, é o mais absoluto desprezo do anarquismo – em suas mais distintas correntes – pelo tema da gestão econômica pós-revolucionária e da transição ao socialismo. Para além de taxativas condenações da propriedade privada e de descrições utópicas de uma futura sociedade comunista, não se pode encontrar uma linha sequer dos clássicos anarquistas relativas ao tema de como gerir, efetivamente, a economia no momento posterior à derrubada do poder burguês. As categóricas e enérgicas afirmações anarquistas a respeito da necessidade da imediata abolição do Estado e da imediata expropriação de toda a burguesia somente são possíveis porque, fugindo da realidade social e sua dinâmica histórica concreta, vão basear-se em míticos “instintos socialistas“ das massas, em fantasiosos processos de evolução biológica pró-socialista da humanidade, ou na supressão da problemática econômica pela elevação moral e intelectual dos indivíduos, pura e simplesmente.

Uma das máximas mais corretas baseadas na compreensão dialética da história da humanidade afirma que aquilo que não avança, tende necessariamente a retroceder. Esta máxima aplica-se, sem a menor sombra de dúvida, à história das idéias anarquistas. O aprofundamento das tendências filosófico-teóricas pequeno-burguesas já presentes em Bakunin, vai, em função do acirramento da luta contra o marxismo, conduzir às posições e teorias políticas anti-partido que caracterizam atualmente os anarquistas, neo-anarquistas e semi-anarquistas de toda a espécie. Para além da negação da Ditadura do Proletariado, e da negação dogmática à participação eleitoral e à tática parlamentar – presentes em Bakunin. Agora com Malatesta, relativamente, e com Kropotkin, absolutamente, se erige a negação à organização política dos revolucionários e do proletariado. O eixo desta negação se baseia no fato de que ambos entendem que a tarefa dos revolucionários é, em essência, propagandear o ideal anarquista aos homens, em especial, aos operários. Em Kropotkin esta negação é radical pois afirma que qualquer organização política específica de anarquista tenderia a sufocar a espontaneidade das massas e, primordialmente, do indivíduo, que aqui adquire estatuto de centralidade. Malatesta, por sua vez, admite e defende que os anarquistas se organizem, no entanto, esta organização precisa estruturar-se de uma maneira bem particular. Em primeiro lugar, pode ser interessante compreender de que maneira argumenta Kropotkin em favor de sua concepção política anti-partido. A citação abaixo é extraída de um texto seu em que realiza uma análise sobre a Revolução Russa, ainda no ano de 1919.

“A revolução que nós atravessamos é a soma total, não de esforços de indivíduos separados, mas um fenômeno natural, independente da vontade humana, um fenômeno natural similar a um tufão como os que surgem repentinamente nas costas orientais da Ásia. Milhares de causas aí atuam [no processo revolucionário] tornando o trabalho de indivíduos separados e até de partidos em nada mais que grãos de areia“.[14]

Kropotkin considera que a participação do partido bolchevique no desenrolar da Revolução Russa não foi mais que um grão de areia. Esta afirmação, por si só, deveria identificar o anarquista russo como daqueles escritores mais profundamente desinformados – ou mal-intencionados – no que diz respeito ao processo histórico real que conduziu à instauração do poder soviético na Rússia, bem como às suas determinações concretas. É absolutamente reconhecido, mesmo pela mais reacionária das vertentes historiográficas, que os bolcheviques desempenharam um papel fundamental não somente na preparação do processo revolucionário como para seu desenrolar concreto após a vitória dos soviets. A negação deste reconhecimento por parte de Kropotkin deve-se possivelmente ao fato de que, mesmo diante da derrubada do poder burguês, o anarquista manteve-se por algum tempo alinhado aos mencheviques em torno de um programa político democrático-burguês. Malatesta, por sua vez, vai estabelecer as bases de uma organização política de anarquistas que possa, acima de tudo, resguardar a “liberdade individual“ de seus membros. Apesar de bastante longa, a citação abaixo é, no entanto, bastante esclarecedora a respeito do pensamento político do anarquista italiano.

“Assim, se os anarquistas negam, à maioria, o direito de governar a sociedade humana geral, onde o indivíduo é, todavia, obrigado a aceitar certas restrições, visto que não pode isolar-se sem renunciar às condições da vida humana, se querem que tudo se faça pelo livre acordo entre todos, como é possível que adotem o governo da maioria em suas associações essencialmente livres e voluntárias e que comecem por declarar que se submetem às decisões da maioria, antes mesmo de saber quais elas serão? (…) Os Congressos, em uma organização anarquista, ainda que sofrendo, enquanto corpos representativos, de todas as imperfeições que assinalei, estão isentos de todo autoritarismo porque não fazem a lei, não impõem aos outros suas próprias deliberações. Servem para manter e ampliar as relações pessoais entre os camaradas mais ativos, para resumir e provocar o estudo de programas sobre formas e meios de ação, mostrar a todos a situação das diversas regiões e a ação mais urgente em cada uma delas, para formular as diversas opiniões existentes entre os anarquistas e delas fazer um tipo de estatística. Suas decisões não são regras obrigatórias, mas sugestões, conselhos, proposições a submeter a todos os interessados; elas só se tornam obrigatórias e executivas para aqueles que as aceitam, e só até o ponto em que as aceitam. Os órgãos administrativos que eles nomeiam – Comissão de correspondência etc. – não têm nenhum poder de direção, só tomam iniciativas, não possuem nenhuma autoridade para impor seus próprios pontos de vista, que podem seguramente sustentar e propagar enquanto grupos de camaradas, mas que não podem apresentar como opinião oficial da organização. Publicam as resoluções dos Congressos, as opiniões e as proposições que grupos e indivíduos lhes comunicam; são úteis a quem quiser deles se servir para estabelecer relações mais fáceis entre os grupos e para a cooperação entre aqueles que estão em concordância em diversas iniciativas, mas todos livres para se corresponderem com quem bem entendam ou se servirem de outros comitês nomeados por agrupamentos especiais. Numa organização anarquista, cada membro pode professar todas as opiniões e empregar todas as táticas que não estejam em contradição com os princípios aceitos e não prejudiquem a atividade dos outros“.[15]

Será a partir da consolidação de Kropotkin e Malatesta como lideranças mais influentes no anarquismo europeu e internacional que esta corrente ideológica vai incorporar como elementos centrais de sua teoria política a defesa radical e intransigente da “liberdade individual“ e da concepção política anti-partido, ausentes, ambos, no pensamento de Bakunin. Na verdade, o velho fundador do anarquismo combatia o individualismo teórico dos liberais e era defensor intransigente do método político da organização centralizada dos revolucionários. Anteriormente afirmou-se que Malatesta defende uma concepção política relativamente anti-partido. No que consiste, de fato, este “relativamente“? O italiano posiciona-se a favor da organização dos anarquistas em um corpo distinto, diferente da organização sindical da classe operária. De que maneira, então, se pode afirmar que Malatesta é relativamente anti-partido? A organização política concebida pelo anarquista é de tal forma frouxa e fluida, em função da necessidade de preservar a “liberdade individual“ de seus membros, que é absolutamente incapaz de atuar e intervir na realidade enquanto partido. Não há, nesta concepção organizativa, o menor acordo comum e a menor unidade de ação. Não passa, então, de um aglomerado disforme de pessoas tornado completamente incapaz de influir na vida social e na luta política da classe trabalhadora de maneira positiva para além da propaganda.

Toda forma de organização política que se baseie na unidade de ação, na implementação coletiva de uma estratégia e de uma tática comum, é considerada por Malatesta como autoritária e, portanto, inimiga da liberdade. Assim sendo, podemos afirmar o caráter anti-partido da sua concepção política, salvo se considerarmos como partidos, as pequenas legendas de aluguel, a serviço do mais venal fisiologismo, presentes no sistema político burguês em nosso país, onde a unidade de ação é um princípio tão mais descartável quanto mais alto se paga pela utilização de sua sigla . No entanto, como não é disto que se trata, mas de organismos políticos capazes de expressar os interesses de determinadas classes ou grupos sociais, a afirmação anterior se mantém. No contexto da discussão a respeito dos modelos de organização política legítimos perante os “princípios anarquistas“, sobressai um elemento filosófico e político de profunda relevância para a compreensão do pensamento de Malatesta e, de resto, do pensamento anarquista posterior a Bakunin em seu conjunto. Este elemento é a relação entre “governo da maioria“ e indivíduo na política. Ao rechaçar o princípio do “governo da maioria“ na sociedade, o anarquista italiano termina por levar às últimas conseqüências o individualismo liberal-burguês livrando-o de sua contradição interna. Se a concepção genuinamente liberal se encontra enredada na contradição de, por um lado, defender o indivíduo – abstratamente considerado – e sua “vontade“ como princípio e fim da política, por outro, precisa submeter este indivíduo à vontade da maioria dos indivíduos constituintes da cidadania, expressa no governo representativo. O pensamento anarquista, a partir de Malatesta e também de Kropotkin, vai libertar este mesmo indivíduo – abstratamente considerado também – da necessidade de submeter-se à maioria, apontando esta submissão como opressiva e autoritária, portanto, ilegítima. A negação dogmática de Bakunin à tática eleitoral e parlamentar, fundada em um equivocado mas decidido critério de classe, passa, com Malatesta e Kropotkin, a basear-se no critério da, igualmente dogmática, defesa da “liberdade individual“ abstrata e genérica.

A contradição presente no pensamento político liberal entre o individualismo e o governo representativo da maioria, ainda que mascarando o caráter de dominação classista do governo representativo no Estado burguês, expressa a contradição entre as demandas democráticas anti-absolutistas da burguesia revolucionária do século XVIII, base da sua hegemonia sobre o campesinato, a pequena burguesia, e o incipiente operariado, e seus interesses específicos de classe capitalista. No caso do pensamento anarquista, a ausência do método materialista histórico e dialético de análise o conduz a tomar o individualismo como fundamento teórico, chegando, no entanto, a uma conclusão que nega o princípio do “governo da maioria“ como forma de livrar-se da contradição presente no pensamento liberal. Esta negação do princípio do “governo da maioria“, por mais que esteja sendo esgrimida por Malatesta, e pelas gerações posteriores de anarquistas, subjetivamente na defesa da liberdade dos homens, objetivamente, é um pressuposto filosófico reacionário que vai se encontrar desde as aristocráticas reações à Revolução Francesa até o ultra-neoliberalismo que se lança agressivamente contra as legislações e direitos sociais em nossos dias. A perspectiva materialista histórica e dialética do marxismo, compreende a sociedade a partir de sua totalidade e de seu desenvolvimento real na história. Aqui o indivíduo não é tomado em abstrato, mas, como indica Marx, no interior das relações reais que desenvolve com o meio e com os outros homens, primordialmente em função da produção e da reprodução material da própria sociedade. Estas relações sociais, nas quais o indivíduo se insere, já estão dadas em seu sentido e em sua forma antes de seu nascimento, e são estas relações, onde este indivíduo age sobre os outros e sofre a ação dos outros, que vão constituir o que este indivíduo é.

Na realidade social não existe o indivíduo em geral, existe o indivíduo negro ou branco, homem ou mulher, jovem ou velho, burguês ou proletário. O indivíduo é sempre uma pessoa real inserida em um contexto social e histórico concreto, este contexto determina necessidades e interesses específicos e particulares, necessidades e interesses estes distintos ou mesmo opostos aos de outros indivíduos inseridos em outros contextos. O dado real a partir do qual se deve partir é a sociedade como base natural da existência humana e como realidade total constituinte da própria individualidade dos indivíduos, ao se partir do indivíduo, parte-se da abstração, pois o indivíduo somente existe no interior de uma teia de relações sociais dialética e historicamente constituídas no processo de desenvolvimento global da sociedade. Em uma sociedade dividida em classes, onde uma minoria de grandes proprietários explora e oprime uma crescente maioria de trabalhadores desprovidos do fruto de seu trabalho, a elevação da “liberdade“ do indivíduo em geral como objetivo último da política, voltada contra o “governo da maioria“ não pode assumir um caráter que não seja reacionário. Se por um lado busca expressar a oposição intransigente à hipocrisia institucionalizada do regime político representativo burguês, por outro, não dá conta de compreender a realidade social em sua concretude, não parte da realidade efetiva das classes, e não percebe que este regime não é o governo da maioria, e sim, o governo da minoria burguesa, e que um governo efetivamente da maioria seria necessariamente um governo dos trabalhadores, expressão de seus interesses e necessidades históricas, condição para o desenvolvimento social no sentido da realização da efetiva liberdade humana. A negação absoluta do princípio da maioria na política leva ainda à mais completa esterilidade no que diz respeito à proposta anarquista de organização dos revolucionários pois, aqui, a preocupação não é com os fins a serem alcançados pela luta revolucionária., mas sim, com a absoluta “liberdade individual“ dos membros da organização, supostamente ameaçada pela unidade de ação e pelos planos coletivos de trabalho político partidário.

É importante perceber como as exigências colocadas para o pensamento político anarquista pelo enfrentamento contra o marxismo ao longo da história, o conduziu a uma ruptura com os aspectos mais progressistas do pensamento de Bakunin. São as efetivas lutas políticas, e o caráter do adversário, aquilo que determina o conteúdo, o tom e a forma de determinada corrente do pensamento político, bem como, da filosofia em geral. Á medida que o marxismo se firmava como teoria hegemônica no interior da luta de classe do proletariado, à medida que o anarquismo isolava-se – realidade esta que atinge seu ápice com a vitória da Revolução Russa – a necessidade anarquista de opor-se ponto por ponto ao pensamento marxista vai conduzí-lo inevitavelmente a uma progressiva aproximação teórica – e às vezes prática – com o pensamento burguês reacionário. A ruptura com os aspectos mais progressistas concretos do pensamento e da prática de Bakunin, como sua subjetiva adesão ao materialismo, é assumida claramente pelos anarquistas posteriores restando apenas um culto à figura mítica do velho russo.

“Tal foi, antes de mais nada, o grande valor de Bakunin: dar fé, dar febre de ação e de sacrifício a todos aqueles que tinham a felicidade de se aproximarem dele. Ele próprio tinha o hábito de dizer que ‘preciso ter “o diabo no corpo“. E ele realmente tinha, no corpo e no espírito, o Satã rebelde da mitologia, que não conhece deus, que não conhece senhores, e que nunca pára na luta contra tudo o que entrava o pensamento e a ação. Eu fui bakuniniano, como todos os camaradas de minha geração, infelizmente já distante no tempo. Hoje, depois de longos anos, não me considero mais como tal. Minhas idéias se desenvolveram e evoluíram. Hoje, penso que Bakunin foi muito marxista na economia política e na interpretação histórica“.[16]

A ruptura explícita que Malatesta assume neste trecho, retirado de uma homenagem à Bakunin por ele escrita, resume com absoluta clareza, o sentido de um maior retrocesso filosófico-teórico do anarquismo, mesmo em relação à já atrasada concepção de Bakunin, retrocesso este movido – como aparece no texto – em função da oposição ao marxismo, em função da oposição ao materialismo e à dialética, o que significa, inevitavelmente, adesão franca ao idealismo burguês. É neste contexto que Kropotkin repudia a experiência histórica da Comuna de Paris como apenas “mais um governo representativo“ e se torna “anarco-chauvinista“ diante da eclosão da I Guerra Mundial.


4. Somente a prática é o critério da verdade
A primeira parte deste artigo esteve voltada a uma análise mais detida do aspecto propriamente teórico do desenvolvimento do anarquismo, agora, a proposta é analisar duas situações históricas concretas nas quais, durante o século XX, o anarquismo pôde no contexto de crises revolucionárias desempenhar uma participação relevante: a primeira é a experiência do Makhnovismo durante a Revolução Russa e a segunda é a experiência dos anarquistas da CNT-FAI durante a Guerra Civil Espanhola entre 1936 e 1939. Ambas as experiências vêm confirmar a afirmação de Lênin segundo a qual um pequeno erro em teoria leva a grandes erros na prática. No entanto, no caso do anarquismo, expressos nestas duas experiências, podemos ver que grandes erros na teoria são ainda mais responsáveis por imensas tragédias na prática.

O Makhnovismo foi um movimento político-militar desenvolvido no sul da Ucrânia no contexto da Revolução Russa de 1917 a 1921. O Makhnovismo foi um movimento de ampla base camponesa agrupado em torno da liderança do anarquista Nestor Makhno, este movimento surge a princípio como expressão revolucionária da luta dos camponeses pobres do sul da Ucrânia contra os latifundiários da região e que se transforma em um exército guerrilheiro quando da invasão da Ucrânia pelas tropas intervencionistas do Imperialismo e da contra-revolução. O Makhnovismo acaba por confrontar-se militarmente com o poder soviético, apesar de por momentos haver se fundido com o Exército Vermelho no combate à reação, fundamentalmente por opor-se à construção do Estado Soviético. O Makhnovismo estabeleceu como seu objetivo político fundar uma “república“ anarquista no sul da Ucrânia a partir da destruição de todo organismo estatal, da expropriação completa da burguesia, e da transformação imediata dos soviets em “um sistema federalista de organizações de produção e consumo“[17].

Makhno partia da concepção, corrente entre os anarquistas, segundo a qual a sociedade socialista tenderia a nascer espontaneamente a partir do momento em que as instituições estatais são destruídas, e que a propriedade burguesa é expropriada. Os homens, segundo Makhno, tendo o anarquismo como algo que lhe é “naturalmente inerente“[18], deveriam se preocupar em bloquear todas as possibilidades de construção do Estado Soviético após a vitória revolucionária, e para tal, transformar os soviets, de órgãos políticos deste Estado, em organizações econômicas de produção e consumo comunista.

“Os anarquistas consideram o Estado como seu principal obstáculo, usurpando os direitos das massas e apropriando-se de todas as funções da vida econômica e social. O Estado deve perecer, não “um dia“, na sociedade futura, mas agora. Ele deve ser destruído no primeiro dia da vitória dos trabalhadores, e não deve ser reconstituído de forma alguma“.[19].

O choque militar entre o Estado Soviético, construindo a centralização política da guerra revolucionária e da gestão econômica nacional, e o exército makhnovista, bloqueando esta centralização, seria, como foi, inevitável. Os evidentes erros teóricos do anarquismo conduziram, no contexto concreto da Revolução Russa, a uma guerra civil dentro da guerra civil que custou a vida de centenas de milhares de pessoas. Os pressupostos filosófico-políticos equivocados do anarquismo puderam manifestar na prática dos makhnovistas todas as suas negativas conseqüências para a luta revolucionária dos trabalhadores, em um sentido genuinamente ultra-esquerdista. Em um contexto em que o país se encontrava arrasado pela ofensiva militar contra-revolucionária interna e externa, com a economia em colapso, com as cidades desabastecidas sendo palco da fome generalizada, a consolidação do jovem Estado Soviético era a única maneira de conduzir a guerra com um comando centralizado para todas as frentes, e era a única maneira, também, de organizar a gestão da economia a nível nacional de maneira que o desabastecimento fosse combatido e superado. Independentemente de qual fosse a motivação subjetiva dos anarquistas makhnovistas, sua oposição militar à consecução destes fins, contribuindo para o enfraquecimento do poder soviético os lançou objetivamente naquilo que pode ser definido como o campo ultra-esquerdista da contra-revolução.

É importante distinguir a perspectiva e a ação concreta dos makhnovistas daquilo que poderia ser compreendido como uma luta contra as deformações burocráticas do Estado Soviético, já denunciadas por Lênin neste período. A luta anti-burocrática teria de estar situada forçosamente no campo da Ditadura do Proletariado, com base na defesa do fortalecimento do novo regime político-social dos soviets enquanto organismos políticos de base do novo Estado. A oposição à Ditadura do Proletariado enquanto tal, como empreendiam os makhnovistas, longe de contribuir para o combate às deformações burocráticas do Estado, reforçava aquilo que era seu fundamento, o enrijecimento do regime em função das circunstâncias da guerra civil.

Ao fim e ao cabo o Exército Vermelho acabou por se impor em 1921 e Makhno fugiu para a França. De lá, juntamente com outros exilados anarquistas russos, Makhno, a partir de sua experiência político-militar na Ucrânia e da observação do método bolchevique do centralismo democrático, lançou um programa para a reorganização política dos anarquistas em torno de uma “União Geral“ internacional que centralizasse e organizasse os anarquistas para a luta revolucionária por seus objetivos: a destruição do Estado e a expropriação da burguesia. Este programa, a chamada “Plataforma organizacional dos comunistas libertários“, escrita em 1927, encontrou no ambiente anarquista europeu e estadunidense, o mais amplo repúdio, sendo rechaçado como demasiadamente autoritário e “bolchevique“ por ameaçar a “liberdade individual“ dos membros com a proposta de unidade teórica e tática para a ação e com a instituição de um comitê executivo na estrutura organizativa de tal União. Por si só, isto é revelador do nível político geral do anarquismo desde então, absolutamente mergulhado na esterilidade política e no individualismo burguês. A oposição ao marxismo em geral, agora se expressava primordialmente na oposição à União Soviética. Neste momento vai se consolidando cada vez mais a aproximação filosófico-teórica do anarquismo com o pensamento burguês liberal, constituindo-se firmemente a chamada corrente anarquista individualista, baseada no pensamento do idealista alemão Max Stirner e de liberais estadunidenses como Benjamin Tucker. De acordo com o historiador austríaco Max Nettlau, autor da importante obre de referência “La anarquia através de los tiempos“[20], este período na história do anarquismo foi marcado pela dualidade entre uma concepção francamente individualista, de corte liberal e, mais ou menos afeita ao terrorismo, e uma concepção anarco-sindicalista ou “sindicalista revolucionária“, baseada na espontaneidade do movimento operário e na perspectiva anti-partido. Em muitos momentos e situações ambas as correntes conviviam e se encontravam como se pode ver na história da CNT-FAI espanhola.

A segunda experiência prática do anarquismo no interior de uma situação revolucionária a ser aqui analisada é a experiência da Confederação Nacional do Trabalho – Federação Anarquista Ibérica no contexto da Guerra Civil Espanhola. Se a experiência do Makhnovismo expressa a possibilidade de desenvolvimento ultra-esquerdista da política anarquista em uma situação revolucionária, com todas as suas conseqüências negativas e seu sentido objetivamente contra-revolucionário, a experiência da CNT-FAI no processo revolucionário espanhol da década de 1930, expressa a variante oportunista do desenvolvimento do anarquismo diante da explosão revolucionária das massas. Havendo lutado durante mais de duas décadas contra a patronal através dos meios mais enérgicos e decididos da luta de classes, e sendo a expressão dos setores mais combativos do proletariado espanhol, a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), fundada em 1911, era hegemonizada pelos anarquistas. Desde 1927 havia se fundado em seu interior, uma organização especificamente anarquista, nos moldes concebidos por Malatesta, chamada Federação Anarquista Ibérica (FAI), constituída na prática como uma grande frente de anarquistas contra as expressões reformistas que surgiam no interior da CNT. Estas duas organizações haviam participado de maneira decisiva de todos os acontecimentos políticos mais importantes do país.

Em 1931, cai a monarquia e inicia-se um turbulento período republicano que assiste o governo ser alternado entre os partidos reformistas oportunistas e a direita francamente reacionária. Em 1934, diante da chegada ao governo das direitas unificadas, o proletariado e o campesinato se lançaram à ação revolucionária. Dirigidos pelos faístas[21] da CNT, operários e camponeses de diversas regiões do país lançaram insurreições localizadas em pequenas cidades e povoados proclamando o “comunismo libertário“. A reação governamental foi imediata e o saldo resultante destas jornadas foi uma profunda derrota do proletariado com milhares de mortos e encarcerados. Em 1936, diante das eleições parlamentares, constitui-se uma Frente Popular composta pelos partidos republicanos burgueses, pelos socialistas, pelos stalinistas e pelo POUM. Os anarquistas da CNT e da FAI, de acordo com sua dogmática concepção em relação à participação na política eleitoral, publicamente viram às costas ao processo eleitoral, mas discretamente orientam suas bases a votar pela Frente Popular que levantava a bandeira da anistia aos presos de 1934. A Frente Popular se elege, mas em julho deste ano a burguesia, os latifundiários, a alta oficialidade militar e o fascismo se levantam em armas contra o governo republicano, exigindo a restauração da monarquia. Diante do levante, as massas na maior parte do país saem às ruas de armas em punho bloqueando o golpe. A CNT e a FAI haviam sido a vanguarda da preparação e da condução da resistência ao golpe reacionário, no entanto quando, em algumas regiões, como na Catalunha – principal concentração industrial e proletária do país – as massas armadas nas ruas transformam, de fato, o poder do Estado burguês em pó, os anarquistas se encontram diante de um impasse para o qual não saberão dar a resposta adequada.

Como relatam em sua já consagarada obra sobre o tema, os historiadores Pierre Broué e Emile Termine[22], diante da escalada revolucionária das massas catalãs, os anarquistas da CNT, mesmo sendo a força indiscutivelmente hegemônica no movimento operário da região, trabalharam pela recomposição do poder do Estado burguês, já pulverizado de fato, incorporando-se ao aparato governamental da burguesia republicana como sua ala esquerda, defendendo a tese frente populista de “vencer a guerra primeiro, fazer a revolução depois“ – que significava a subordinação do proletariado e do campesinato ao Estado burguês – e obstaculizando a tomada de poder pela classe trabalhadora. Diante das “jornadas de maio“[23] de 1937 em Barcelona, a CNT-FAI no governo desmobiliza sua base na classe operária abrindo caminho para a contra-revolução triunfante na retaguarda republicana dirigida pelo stalinismo. A absoluta degeneração oportunista do anarquismo espanhol, apesar das efêmeras e contraditórias dissidências de esquerda surgidas no interior da CNT-FAI, como o grupo dos “Amigos de Durruti“, diante do processo revolucionário impulsionado pelo proletariado espanhol, culminou com a participação da CNT-FAI no golpe de Estado[24] destinado a promover conversações de paz com Franco e os fascistas, impulsionado por altos oficiais republicanos contra o governo liderado pelo Partido Comunista em 1939.

O rumo tomado pelo desenvolvimento específico da política dos anarquistas espanhóis demonstra como a ausência de uma clara perspectiva teórica e programática relativa ao poder e relativa à construção do socialismo, os conduziu, enredados como estavam em uma vasta teia de preconceitos liberais burgueses a seguir atrelados ao carro contra-revolucionário do stalinismo e da burguesia republicana, no momento mesmo em que a solução revolucionária da questão do poder se colocava para o proletariado de maneira direta e inequívoca. As conseqüências destes equívocos não foram sentidas apenas, e nem principalmente, pelos anarquistas espanhóis, mas sim, pela classe trabalhadora deste país oprimida pelo terror fascista por mais de quarenta anos após a vitória de Franco.

A conclusão geral que pode ser tirada desta breve análise é que o anarquismo, na direção de importantes setores de massa, no contexto da eclosão de situações revolucionárias, historicamente desenvolveu sua política em uma orientação ultra-esquerdista ou francamente oportunista. Longe de ser fruto do acaso, ou das “circunstâncias“, estas duas possibilidades de desenvolvimento são as únicas que podem ser oferecidas pelo anarquismo enquanto corrente do movimento dos trabalhadores, podendo inclusive alternarem-se em uma mesma situação. Dependendo das condições dadas – caráter de classe de suas bases, caráter dos dirigentes e da organização, profundidade da crise revolucionária e etc – os anarquistas, como demonstra a história, podem, diante de uma situação revolucionária, conduzir uma política que busca imediatamente “abolir“ o Estado, genérica e abstratamente considerado, e impedir a reconstrução de qualquer organização estatal, capitalista ou socialista, burguesa ou proletária, e ao mesmo tempo expropriar o conjunto da burguesia, esperando que o ordenamento econômico socialista pós-revolucionário nasça dos “instintos“ naturalmente anarquistas da massa trabalhadora. Por outro lado, a política implementada pelos anarquistas, pode subordinar-se docilmente ao discurso democrático-burguês do setor oportunista da contra-revolução, diante da incapacidade de oferecer respostas próprias à questão do poder que vão além da simples “abolição do Estado“. O fundamental é que, tanto em um caso como no outro, o caminho possível a ser adotado pelos anarquistas, enquanto anarquistas, diante da abertura de uma situação revolucionária em que estes dirijam um setor de massas, é um caminho necessária e objetivamente contra-revolucionário em função de sua incapacidade de guiar-se por uma política conseqüentemente revolucionária, incapacidade esta determinada por sua base filosófico-teórica reacionária. O afastamento do método materialista histórico e dialético torna os anarquistas incapazes de compreender o processo histórico real em sua concretude e daí os torna incapazes de compreender a dinâmica político-econômica da construção do socialismo. Desconhecendo a natureza e o significado sócio-histórico das classes sociais, os anarquistas substituem as necessidades e os interesses impostos pela realidade social objetiva e seu desenvolvimento por seu desejo e sua vontade subjetiva, incapacitando-se para o exercício da direção revolucionária do proletariado e das demais classes oprimidas pelo capitalismo no sentido da construção de uma sociedade baseada, de fato, na liberdade e na igualdade entre os homens.


5. Conclusão
A primeira conclusão que se pode tirar a partir da análise realizada neste breve artigo é que existe uma efetiva necessidade de aprofundar-se uma crítica marxista ao anarquismo, crítica esta para a qual este artigo é uma modesta contribuição no sentido de propor alguns caminhos de investigação e de método. Diante da atual conjuntura que atravessa a luta de classes em nosso país, com a desmoralização imposta pela traição petista ao conjunto dos partidos de esquerda diante dos trabalhadores e da juventude, somada com a agressiva ofensiva ideológica anti-marxista impulsionada desde as cátedras universitárias e desde à imprensa reacionária, faz-se urgente “cerrar as portas“ do movimento operário e popular e de sua vanguarda às incursões das velhas novidades anarquistas, tão negativas para o avanço e para a possibilidade de vitória da classe trabalhadora e do socialismo. A maneira realmente eficaz de conseguir tal objetivo é exercer uma contundente e vigorosa crítica ao anarquismo, sua teoria e sua prática.

Em momentos de confusão e desorientação da classe como o atual, onde a crise do regime soma-se com a desmoralização da maior parte da velha vanguarda proletária, educada majoritariamente nos marcos do reformismo e com a inexperiência da jovem vanguarda nutrida de um forte sentimento anti-partido. O marxismo revolucionário deve disputar a direção política dos trabalhadores afirmando-se como a concepção política, teórica e filosófica efetivamente vinculada aos interesses históricos da classe e do desenvolvimento progressista da humanidade, impondo, simultaneamente, severa crítica ao reformismo e às múltiplas variantes anarquistas, neo-anarquistas e semi-anarquistas.

As idéias diretamente anarquistas ou mais ou menos anarcófilas têm invadido as livrarias, as bancas de revistas, as salas de aula e os programas de TV. Através das figuras de reconhecidos intelectuais como os citados no início deste artigo, tais idéias têm exercido alguma influência sobre o movimento organizado dos trabalhadores e, principalmente, da juventude, no Brasil, América Latina, Europa e Estados Unidos. As universais e inflexíveis afirmações dogmáticas simplistas como “não aos partidos“ ou “não às eleições“ confortavelmente substituem, na mente dos ativistas pouco dispostos à atividade intelectual, o exercício da reflexão dialética necessária à especificidade de cada situação histórica e social concreta. Apesar de sedutoras, estas afirmações são radicalmente falsas e imprestáveis para o desenvolvimento da luta socialista revolucionária. Os anarquistas espanhóis não tinham um partido, os bolcheviques russos sim, os anarquistas espanhóis não participavam das eleições, os bolcheviques russos sim, no entanto, foram os segundos, e não os primeiros, que conduziram um processo revolucionário que levou à destruição do Estado burguês, à organização do poder proletário com base nos organismos democráticos das massas e à expropriação da burguesia, por outro lado, foram os primeiros que capitularam diante de burguesia e colaboraram no esmagamento das massas revolucionárias.

A crítica histórica baseada na concretude do desenvolvimento real é a melhor arma contra os mitos e preconceitos irracionalistas do anarquismo em suas diversas variantes.

Somente um partido, democraticamente centralizado, constituído por militantes forjados na luta real, fundado sobre uma clara concepção teórica marxista revolucionária é capaz de dirigir o proletariado no sentido de construir a hegemonia sobre os demais setores oprimidos da sociedade para a derrubada revolucionária do poder burguês e a construção do socialismo. Somente uma militância preparada para a compreensão efetiva da dinâmica real do processo sócio-histórico, para a compreensão da relação entre as classes e entre estas e o Estado, e para a compreensão das efetivas tarefas necessárias à transição socialista pode, somando a isto, disposição combativa e paciente perseverança, conduzir tal partido no sentido do cumprimento de sua tarefa histórica. Quanto aos setores de vanguarda que se encontram lado a lado com os marxistas revolucionários na luta efetiva contra a burguesia, mas se acham identificados politicamente com o anarquismo ou suas variantes, é necessária toda a paciente explicação de nossos pontos de vista, do modo como recomenda Lênin. É também preciso não esquecer que “um lutador anarquista vale mais do que cem mencheviques titubeantes“[25], como faz questão de ressaltar Trotsky citando Lênin em carta a um companheiro revolucionário espanhol durante a guerra civil.

Todo sectarismo ou pedantismo é contraproducente no que diz respeito à crítica que o marxismo revolucionário deve impor ao anarquismo e suas falsas concepções. É chegado o momento de – diante da crise que enfrenta o Imperialismo no mundo e o regime burguês em nosso país – resgatar para o marxismo o papel dirigente que deve exercer, abrindo caminho por entre o emaranhado de falsas concepções que aprisionam a mentalidade popular nos marcos da alienação e do irracionalismo.


Notas
[1] León Trotsky: “Bolchevismo y Stalinismo: sobre la cuestión de las raíces teóricas e históricas de la IV Internacional“. 1937. In: http://www.marxists.org./espanol/trotsky/1930s/
[2] Vladimir Ilitch Lênin. “Que fazer?“ In: “Obras completas“. 3ª Edição. São Paulo. Ed. Alfa e Omega. 1986. p. 96
[3] Idem. Ibidem. P.97
[4] Friedrich Engels: “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã“. São Paulo. Editora Fulgor. 1962. p: 125
[5] Demetrio Velasco: “Etica y Poder Político en M. Bakunin“. In: <http://ateneovirtual.alasbarricadas.org/historia/index.php?page=Mijail Bakunin>
[6] Max Nettlau: “La anarquía atraves de los tiempos“. Cuarta edición cibernetica. 2003. <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/anarquia_tiempos/nettlau_indice.html>
[7] Mikhail Bakunin: “Dios y el estado“. In: http://www.marxists.org/espanol/bakunin/dyes1.htm
[8] Mikhail Bakunin: Obras, IV, 413-414, 72
[9] Idem
[10] Mikhail Bakunin: “Catecismo Revolucionário“. In: http://www.marxists.org/reference/archive/bakunin/works/1866/catechism.htm
[11] Mikhail Bakunin: “Estatismo e Anarquia“ In: http://www.marxists.org/reference/archive/bakunin/works/1873/statism-anarchy.htm
[12] León Trotsky: “Bolchevismo y Stalinismo: sobre las cuestión de las raízes teóricas y historicas de la IV Internacional“. In: Marxists.Org. http://www.marxists.org./espanol/trotsky/1930s/
[13] Errico Malatesta: “Escritos Revolucionários“ In: http://www.culturabrasil.pro.br/malatesta.htm
[14] Piotr Kropotkin: “The russian revolution and the soviet government“ In: http://www.marxists.org/reference/archive/kropotkin-peter/1910s/19_04_28.htm
[15] Errico Malatesta: “Escritos Revolucionários“ In: http://www.culturabrasil.pro.br/malatesta.htm
[16] Errico Malatesta: “Escritos Revolucionários“ In: http://www.culturabrasil.pro.br/malatesta.htm
[17] Nestor Makhno et alii: “Plataforma organizacional dos comunistas libertários“ In: http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/org/01plataforma.htm
[18] Nestor Makhno: “El anarchismo y nuestros tiempos“ In: http://www.nestormakhno.info/spanish/tiempo.htm
[19] Nestor Makhno et alii: “Plataforma organizacional dos comunistas libertários“ In: http://www.nodo50.org/insurgentes/textos/org/01plataforma.htm
[20] Max Nettlau: “La anarquía atraves de los tiempos“. Cuarta edición cibernetica. In: <http://www.antorcha.net/biblioteca_virtual/historia/anarquia_tiempos/nettlau_indice.html>
[21] Membros da FAI.
[22] Pierre Broué et Emile Termine: “La Revolución y la Guerra de España“. II parte. Terceira Edição. Fondo de Cultura Económica. 1971. México D.F.
[23] As “Jornadas de Maio“ de 1937 é a forma como se denomina o conflito que foi detonado, em Barcelona, pela tentativa de guardas da força pública da Generalitat (governo autônomo catalão) de invadir o prédio da empresa Telephonica no centro da cidade, que se encontrava – desde os primeiros dias da contra-ofensiva popular ao levante militar, sob controle de um comitê da CNT. Em verdade, esta tentativa de retomar o prédio por parte dos órgãos da força pública do governo catalão – completamente sob controle do stalinista Partido Socialista Unificado Catalão (PSUC) – fazia parte da ofensiva dos setores contra-revolucionários do “campo republicano“ (com os stalinistas à cabeça) no sentido de restabelecer o poder estatal e defender a propriedade privada, o primeiro completamente pulverizado em julho de 1936 e a outra seriamente ameaçada pela disposição revolucionária dos trabalhadores mobilizados em armas. À tentativa de tomada do prédio da Telephonica, uma multidão de trabalhadores armados – a maioria filiada à CNT – montou barricadas por toda a cidade e combateu por três dias contra os guardas da Generalitat, miltantes do PSUC, da Esquerra Republicana de Catalunya (Esquerda Republicana da Catalunha ou ERC), e do Estat Catalá (partido burguês nacionalista catalão). Ao final, após os líderes da CNT-FAI terem conseguido desmobilizar os milicianos em nome da unidade da Frente Popular, desencadeou-se uma forte repressão contra os trabalhadores que defendiam as “conquistas revolucionárias“, como as coletividades produtivas rurais e urbanas, os corpos armados sob controle popular e a imprensa de oposição revolucionária. A partir deste momento, o governo catalão impôs uma forte disciplina ditatorial contra-revolucionária na “retaguarda“, com prisões em massa, censura, torturas e assassinatos. cf. Pierre Broué. “The ‘ May Days’ of 1937 in Barcelona“. In Revolutionary History magazine, Vol.1 No.2, Summer 1988. London.
[24] Em 1939, o Komintern havia dado clara orientação no sentido de o governo da Frente Popular dirigido por Juan Negrín, a esta altura completamente controlado pelo Partido Comunista, resistir a Franco no sentido de ganhar tempo até que a iminente conflagração européia tivesse início envolvendo a Espanha, o que poderia forçar os governos da França e Grã-Bretanha a necessitar de uma Espanha anti-fascista e colocar-se ao lado do governo da Frente Popular, abandonando a neutralidade. No entanto, esta orientação não encontrou uma boa recepção por parte dos outros partidos e sindicatos da Frente Popular, que organizaram um golpe de Estado derrubando Negrín e o PC da cúpula governamental com o objetivo de negociar a “paz“ com Franco. O golpe foi respondido militarmente por vários destacamentos do Exército republicano e da polícia controlados pelo Partido Comunista, o choque resultou em aproximadamente dois mil combatentes mortos e a consolidação da queda do Partido Comunista, o que não foi suficiente para que Franco se mostrasse disposto a negociar condições para uma vitória que se encontrava tão próxima. Cf. Pierre Broué et Emile Termine: “La Revolución y la Guerra de España“. Terceira Edição. II parte.1971. Fondo de Cultura Económica. México D.F. pp: 264-272
[25] León Trotsky: “Carta a Jean Rous“. 1936. In: http://www.marxists.org/archive/trotsky/index.htm.