No mês passado, uma delegação de três haitianos desembarcou no Brasil para exigir a retirada das tropas de ocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) do país caribenho. Os integrantes do grupo foram Carole Pierre Paul-Jacob, da Solidariedade das Mulheres Haitianas (SOFA); Frantz Dupuche, da Plataforma Haitiana em Defesa de um Desenvolvimento Alternativo (PAPDA); e Didier Dominique, da Central Sindical e Popular Batay Ouvriye. O trio se dividiu em dezenas de atividades realizadas em praticamente todas as regiões do país. A vinda da delegação coincide com um acirramento das lutas no Haiti. Nos últimos dias, manifestações foram violentamente reprimidas pelas forças da ONU e pela polícia. Para falar sobre isso, entrevistamos Didier Dominique

Por Alejandro Iturbe, da revista Marxismo Vivo, e Jeferson Choma, da redação
Opinião – Recentemente, no Haiti, houve uma série de mobilizações em defesa do salário mínimo. Como foi esse processo?

Didier Dominique – Já faz algum tempo que a Batay Ouvriye está na luta pelo salário mínimo. É uma reivindicação permanente, que pôde ser vista nas mobilizações do 1° de Maio ou em outras mobilizações de 2006. Segundo o código do trabalho haitiano, há um conselho de salário dentro do Ministério de Assuntos Sociais e do Trabalho, que todos os anos deve reajustar o salário mínimo de acordo com a inflação. Mas o último reajuste foi em 2003, quando fixaram o salário em 70 gourdes diários (1,75 dólar). Antes disso, o reajuste tinha sido realizado apenas em 1995.

Então veio uma proposta de lei do deputado Benoit de reajustar o salário mínimo para 250 gurdes diários (pouco mais de 6 dólares). O valor proposto nessa lei não respeitava a inflação real que, se calculada, reajustaria o valor para entre 450 e 500 gurdes (entre 11 e 12 dólares).

Provamos que o aumento proposto por essa lei não era suficiente em razão da subida de preços do arroz, do transporte e da cesta básica. O próprio ministério calculava a cesta básica em 300 gurdes diários. Apesar de o custo de vida continuar subindo, Benoit baixou sua proposta para 200 gurdes.

Por isso, manifestamos nossa rejeição a essa lei no último 1° de Maio, junto com outras forças que integram o coletivo para outro Primeiro de Maio. Neste coletivo estão organizações de trabalhadores públicos e estudantis, e os temas centrais foram as reivindicações por salário mínimo e a exigência do fim da ocupação militar pela ONU.

Como seguiu a luta?
Didier – Como a Câmara de Deputados votou a favor do salário mínimo de 200 gurdes e o presidente (René) Préval vetou o aumento, começamos uma mobilização junto com os estudantes, as organizações de bairros, os trabalhadores do serviço público e setores das coordenações camponesas.

O Haiti tem o salário mais baixo das Américas e um dos mais baixos do mundo. E isso é algo consciente, cuja função é atrair investimentos das fábricas têxteis nas zonas francas. É uma exploração sem limites da classe operária mais barata das Américas. Não é uma coisa casual, isso foi pensado desde a época de Reagan (ex-presidente dos EUA nos anos 80).

E a participação dos estudantes?
Didier – Os estudantes entraram em cheio nessa luta. Teve uma mobilização forte no dia 4 de junho que foi reprimida. Isso ganhou muita repercussão na imprensa. Nós levamos nosso mais firme apoio aos estudantes.

Essa é a repressão que denunciou aqui no Brasil?
Didier – Sim. Uma semana depois, nos dias 10 e 11 de junho. Depois da mobilização do dia 4 de junho, nós e os membros do coletivo somamos forças para unir todos os setores. Sofremos uma repressão realmente selvagem. Nossas marchas começavam numa faculdade. Seriam percorreridas outras e terminaria no Parlamento. Mas, dessa vez, nem o primeiro passo pudemos dar. Mal se saía de uma faculdade e já começava a repressão, que continuava dentro das faculdades e, inclusive, no hospital universitário. O gás lacrimogêneo invadiu a maternidade, intoxicando crianças e mulheres. Recolhemos mais de 300 cápsulas de bombas. Dois estudantes foram mortos e mais dois foram hospitalizados (um idoso e um menino), que morreram intoxicados.
Depois, outra pessoa foi morta pelos soldados durante o funeral de um sacerdote no Haiti, Gerard Jean-Juste.

Qual é a força que reprime?
Didier – As duas, a polícia haitiana e as forças da Minustah (missão da ONU). Isso se vê nas fotos. Há uma ação conjunta delas. Além dos policiais, se vê soldados brasileiros, jordanianos, senegaleses e paquistaneses reprimindo. Claro que o comando está nas mãos do Brasil que, nesse sentido, é o responsável principal. Reprimem para defender o salário mais baixo das Américas. Para as empresas têxteis da zona franca. É essa a razão real, a natureza da ocupação.

Como se expressa tudo isto na consciência do povo haitiano?
Didier – Desde 2005 e 2006, começou uma mudança. Foi quando supostamente estavam atacando os “bandos armados”, mas semearam o terror nos bairros populares para garantir o domínio da polícia e da Minustah. Já existe uma relação com a missão totalmente diferente daquela de aplaudir a seleção brasileira de futebol. Em 2008, durante o “levante dos famintos”, a repressão da Minustah provocou muitos mortos em Porto Príncipe e em outras cidades. Eles continuaram reprimindo várias semanas após o levante. Por isso, nas paredes de todas as cidades do país já se vê pintado: “Abaixo a Minustah” e “Fora a ocupação”.

E a relação da população com Préval?
Didier – Préval sobrevive no poder unicamente pela presença da Minustah. Mas isso acabou quando ele apoiou a repressão da missão em 2008. Aí teve uma mudança radical da relação de Préval com o povo, que cairia se não fosse o respaldo da ocupação. Como foi ele quem vetou a lei dos já miseráveis 200 gourdes para o salário, começam a aparecer em Porto Príncipe pichações de “Abaixo Préval”. Hoje, começa a existir maior unidade dos diferentes setores populares ao redor disso.

Faça um balanço da visita.
Didier – Essa visita foi muito ampla, estivemos em várias cidades. Chegamos a mais setores sociais: estivemos nas universidades, em escolas, em sindicatos e nos bairros. Inclusive fomos ao Senado e a câmaras de vereadores para denunciar a ocupação e a repressão. O interessante é que, em alguns pontos específicos, também teve uma unidade de ação e posição com setores que são do governo. Por exemplo, em Campinas teve uma mesa que incluía colegas do PT e da CUT, além, obviamente, de companheiros do PSTU, do PSOL, da Conlutas e da Intersindical, que se manifestaram claramente contra a ocupação e pela saída das tropas. Isto é uma diferença de outras visitas que fiz no Brasil. É algo que precisa ter projeção e continuidade.

Post author
Publication Date