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“Ainda não entendemos por que a votação com os pés, em massa, se tornou parte tão mais significativa da política nas últimas décadas do século. Uma das razões deve ser que, nesse período, o fosso entre governantes e governados se alargou em quase toda parte(…) Foi uma demonstração didática da máxima de Lênin, de que a votação com os pés dos cidadãos podia ser mais eficaz do que a votação em eleições”
Eric Hobsbawm, Era dos extremos

Iniciamos o século XXI sem que exista, atualmente, um só país em que possamos reconhecer um processo de transição ao socialismo. Entretanto, a crise do capitalismo se agrava em graus inéditos, se comparados com o período de meio século que nos separa do final da Segunda Guerra Mundial. Uma nova geração de trabalhadores e jovens se une à causa do socialismo, sem poder apoiar a sua luta na referência de um país onde exista uma experiência em curso de passagem a uma sociedade sem exploração. Nunca existiu na história, paradoxalmente, uma época tão revolucionária como foi o século XX.

Um tal panorama pareceria contrariar todos prognósticos do marxismo sobre a crise do capitalismo. O olhar de Marx, quando se atreveu – de forma contida, por prudência diante das ironias da história, e por respeito ao rigor teórico – a fazer vaticínios sobre os vastos horizontes das longas durações, reconhecia as enormes margens de erro das previsões, limitadas pelas imensas distâncias, mesmo quando não duvidava da justeza de suas premissas.

Ainda que se queira argumentar que a restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu – um processo devastador de destruição de forças produtivas, em uma escala só comparável a guerras de extermínio – tenha sido uma regressão qualitativamente mais brutal do que vem ocorrendo na China, desde que, no final dos anos setenta, se implantou o programa das “quatro modernizações”, parece, no mínimo, pouco razoável aceitar que uma “NEP de cem anos”, nas condições atuais de acumulação capitalista primitiva, seja uma passagem para uma sociedade mais igualitária.

O acordo estratégico da “nova direção” chinesa com as condições dos investimentos capitalistas da diáspora burguesa sinaliza a adesão a um processo que tem permitido, sem dúvida, taxas de crescimento econômico muito elevadas. Tem estimulado, também, contudo, e em uma intensidade ainda maior, o crescimento da desigualdade. Uma transição ao socialismo deveria ser, antes de tudo o inverso, ou seja, menos injustiça que no passado. O contorcionismo teórico que defende como plausível uma primeira transição imediata ao capitalismo, como tática de uma estratégia para uma segunda transição anticapitalista é uma política demasiado sinuosa para ser seriamente considerada.

Embora seja um tema controverso, não parece difícil aceitar a previsão de que a China poderá, ainda que com dificuldades imprevisíveis, preservar a independência relativa do seu Estado no Sistema Mundial. Talvez seja, no entanto, ainda muito cedo para uma avaliação conclusiva se a re-colonização será ou não evitada. Seja qual for a dinâmica desta transição, no entanto, as complexas relações da economia chinesa com o mercado mundial capitalista não a conduz a uma sociedade sequer remotamente aparentada à idéia do socialismo. A situação em Cuba deve ser considerada, por enquanto, mais desanimadora. A ilha das esperanças de, pelo menos, duas gerações de socialistas latino-americanos, dificilmente escapará sequer à semicolonização.

A força das cinco vagas da revolução mundial no século XX, contudo, chegou a atingir tal extensão que, em meados dos anos setenta – apesar de incontáveis heroísmos e, também, trágicas derrotas – um em cada três seres humanos viviam em sociedades em que o capital tinha sido expropriado. As revoluções do século XX foram objetivamente anticapitalistas, mesmo quando as suas tarefas de primeira hora foram democráticas, os seus sujeitos sociais foram outras classes que não o proletariado, suas direções foram outras que os partidos marxistas, e seus resultados se limitaram aquém do socialismo.

Escrevendo no início do novo século, o balanço dos últimos trinta anos poderia parecer desolador, mas não deve obscurecer o mais importante. Revoluções continuaram acontecendo. Milhões de seres humanos recorreram ao método revolucionário da ação direta para alterar os seus destinos. Se os resultados não corresponderam às expectativas nelas empenhadas, o desafio histórico e teórico permanece intacto: compreender como e porquê a força da contra-revolução permitiu preservar o capitalismo.

Uma nova etapa ou uma nova época histórica?
A maioria dos historiadores marxistas sublinha que a revolução de Outubro esteve entre os principais acontecimentos históricos, senão o principal, do século XX, e abriu uma época de revolução mundial. A restauração capitalista na ex-URSS e no Leste Europeu nos anos noventa, no entanto, favoreceu uma perspectiva de análise, em grande medida, oposta, mesmo na opinião genericamente de esquerda. Ainda quando necessária, a reinterpretação da história pode chegar, às vezes, a conclusões estarrecedoras. A desqualificação de Outubro como um acidente histórico voltou a ser corriqueira.

Nenhum debate histórico está imune de controvérsias ideológicas. Associada à diminuição do lugar de Outubro está a intenção de desvalorizar o projeto da revolução anticapitalista. Um dos traços que caracterizaram os últimos doze anos foi a consolidação da liderança dos EUA no Sistema Mundial de Estados. As idéias reacionárias mais primitivas – a retomada de um programa ultra-liberal – foram assumidas pelas frações majoritárias da burguesia em todo o mundo. A História não pode ser escrita senão por homens e mulheres que olham o passado com os filtros da pressão dominante no seu tempo presente. Quando essas forças são obscurantistas, e não são equilibradas por contra-pressões, um novo olhar pode mais ocultar do que iluminar.

Muitos historiadores concordaram com a apreciação céptica apresentada por Hobsbawm em A Era dos Extremos sentenciando que a época aberta pela revolução russa teria se fechado em 1989/91. Parece muito razoável admitir que a restauração capitalista no Leste europeu e, sobretudo, na Rússia significou uma dramática mudança histórica, mas daí a concluir que teria sido uma mudança de época revelou-se apressado e impressionista. Na primeira metade dos anos noventa, todavia, o cenário internacional parecia desolador.

Uma etapa histórica, de fato, se encerrou com o colapso da URSS. Ela não tinha se iniciado, todavia, em 1917, mas no final da Segunda Guerra Mundial. Como três gerações de socialistas, em sua maioria, se educaram na esperança de que a derrota do capitalismo em uma região do mundo que correspondia a um terço da humanidade, mesmo se as mudanças na sociedade tivessem sido bloqueadas nos limites de um estreito nacionalismo e em uma degeneração burocrática que perpetuou desigualdades, correspondia a um processo de transição ao socialismo – ainda quando admitissem que existiam deformações – a queda do estalinismo foi percebida como o fim de uma era, a época da revolução mundial. Os últimos dez anos, contudo, demonstraram que estavam errados.

É certo que a primeira metade dos anos noventa se caracterizou por um ataque impiedoso do capital contra a classe operária dos países imperialistas e os povos dos países da periferia. O neoliberalismo conquistou a opinião burguesa mundial e passou a ser o programa internacional dos partidos do capital. O “não há alternativa” de Thatcher foi o senso comum, e grande parte da esquerda organizada acabou sucumbido à pressão, e se adaptando.

Mas, depois da crise mexicana, uma nova situação foi aberta à escala internacional. Revoluções insistiram em continuar acontecendo e derrubando regimes monstruosos: o apartheid foi derrubado na África do Sul e Mobutu no Zaire; na América Latina caíram Carlos Andrés Perez na Venezuela, Collor no Brasil, Fujimori no Peru, Mauad no Equador e De La Rua na Argentina, na seqüência de gigantescas mobilizações de milhões; na Ásia caiu a ditadura sanguinária de Suharto. No centro do sistema, surgiu um movimento anti-globalização com a capacidade de organizar uma mobilização internacional contra a guerra no Iraque superior ao que foi a solidariedade ao Vietnam no final dos anos sessenta.

A derrota do estalinismo levou a maioria dos estalinistas – embora, justiça se faça, não todos – a renunciar ao socialismo, e a aderir à democracia. Alguns o fizeram passando-se diretamente para o programa da ala direita da socialdemocracia internacional – lide rado pelo social-liberalismo da Terceira Viana de Blair – enquanto outros aderiram a versões mais recicladas de neokeynesianismo saudoso da socialdemocracia de “esquerda”.

Os últimos doze anos, porém, não foram marcados somente pela ofensiva neoliberal contra as conquistas dos trabalhadores. Ou, sequer, pela intervenção norte-americana no sentido da consolidação de uma nova ordem mundial. Embora a destruição dos direitos do trabalho tenha desfigurado o que foi proclamado pela socialdemocracia, solenemente, a partir de meados dos anos setenta, como “Estado de Bem Estar Social”, seria no mínimo precipitado concluir que o proletariado dos países centrais, em especial na Europa, mas também no Japão e nos EUA foi derrotado.

A ofensiva mundial do capital – recolonizadora sobre a periferia, restauracionista sobre a China e Cuba, e histericamente anti-operária nos países centrais revelou, em primeiro lugar, que a crise da economia capitalista exige um novo padrão de relações sociais e internacionais, ainda mais bárbaro. De toda forma, doze anos não são o bastante para determinar o sentido de uma etapa. A perspectiva histórica recomenda prudência e, comparativamente, sugere que a reação dos trabalhadores será proporcional à nova violência da agressão que os vitima. A última palavra ainda não foi dada.

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