Mulheres se destacam e viram símbolo de resistência
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A absurda e trágica agonia de Neda Agha Soltan, de 27 anos, numa rua de Teerã na semana passada foi um símbolo da selvagem repressão que vem se abatendo sobre o povo no Irã. Ela foi atingida por uma bala no peito disparada por um basiji (paramilitares voluntários de extrema direita). Mas também foi a sinalização de que algo muito mais profundo vem se movendo sob os nossos pés.

Por baixo dos véus e das espadas da lei islâmica que pendem sobre suas cabeças, as mulheres iranianas vêm tendo um papel fundamental nas lutas democráticas contra a ditadura dos aiatolás. Temos de valorizar esse fato em sua devida importância. As mulheres estão desafiando uma repressão violenta. E rompendo amarras seculares.

Se um homem sai à rua e protesta, comemoramos. Se uma mulher faz isso, além de comemorar, devemos refletir sobre a real profundidade desse movimento. Porque indica que algo mais estrutural está sendo rompido, questionado, estraçalhado. E a classe trabalhadora mundial deve estar mais atenta a essa revolução, porque talvez não se limite a exigências por liberdades democráticas, o que já seria fundamental num Estado teocrático, mas uma revolução muito mais profunda.

No Irã, as mulheres são as maiores vítimas do fundamentalismo religioso. Todas elas. Mas para as mais pobres, opressão é algo muito diferente. As retrógradas leis religiosas se combinam, no caso das mulheres pobres, com a miséria, o desemprego e todo tipo de dificuldade para poder estudar e trabalhar. Isso é simplesmente a porta trancada. Estudar e trabalhar são as duas únicas formas possíveis de poder, ao menos, sonhar com algum nível de emancipação numa sociedade capitalista e retrógrada como a do Irã, sufocada pela ditadura dos aiatolás.

Onde a vida não vale nada
O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Teerã, dirigido pela vencedora do prêmio Nobel da Paz Shirin Ebadi, informa que no Irã a vida de uma mulher vale legalmente a metade que a de um homem. Isso no texto da lei. Porque na realidade concreta e humana, não vale nada. Assim como seu testemunho perante um juiz sobre qualquer assunto. Uma vida pela metade é o mesmo que uma vida que não vale nada.

No Irã vigora ainda o preço do sangue: quem mata uma pessoa, além de cumprir pena, tem que pagar uma quantidade em dinheiro aos parentes da vítima. “Matar uma mulher custa a metade do preço”, explicam os advogados do Centro.

Segundo as leis no Irã, um homem pode se divorciar quando quiser sem nenhuma explicação, mas uma mulher só pode pedir o divórcio se o marido a abandonou, se ele for viciado em drogas ou sofrer de impotência sexual. Caso contrário, deverá suportá-lo pelo resto da vida, mesmo que ele mantenha relações sexuais com outras mulheres ou a espanque todos os dias. Mas se o marido encontrar a sua mulher tendo relações sexuais com outro homem, tem direito a matar os dois; e toda mulher acusada de adúltera pode ser apedrejada até a morte.

Durante o apedrejamento, ela é enterrada até o tronco e sua cabeça é tapada com um saco feito de tela, enquanto os habitantes da localidade a apedrejam. Se sobreviver, ela estará livre. O Centro de Direitos Humanos tem conseguido, com muito custo, salvar algumas mulheres desse apedrejamento, mas não vencendo as leis, e sim escondendo as mulheres em lugares onde não podem ser encontradas. Uma solução, claro, totalmente provisória e instável.

Os homens também podem ser condenados por adultério, mas têm direito ao chamado “casamento temporário”, que lhes permite casar com várias mulheres, inclusive, durante só algumas horas, para poder ter relações sexuais com elas.

Quanto ao comparecimento perante um julgamento por qualquer assunto, uma mulher sozinha não pode testemunhar. Além disso, as mulheres devem testemunhar em dupla para que sua palavra tenha valor jurídico. A maioridade para ser condenado e executado também apresenta consideráveis diferenças legais para os sexos segundo o Centro de Direitos Humanos. Os homens têm de ser maiores de 18 anos para poderem ser executados, enquanto basta que as meninas tenham completado nove anos.

Essa diferença de tratamento não está na lei. As fatwas (decretos religiosos), ditadas pelos aiatolás, têm um valor legal superior às leis escritas, e podem permitir executar meninas com essa idade. Existem cerca de 700 aiatolás em todo o país com autoridade para promulgar fatwas sobre qualquer assunto. O aiatolá Khamenei, atual líder supremo do país, se preocupou sobretudo em implantar novas unidades paramilitares basiji, com soldados recrutados justamente entre a população mais pobre e mais dependente de ajuda do governo. Logo, mais submissos e obedientes.

Esses basiji são alguns dos guardiões do templo que se ocupam da repressão às manifestações e também em aplicar as fatwas contra as mulheres. Quando encontram uma delas protestando contra o governo, viram leões. Foi um deles que disparou contra Neda. Temos aqui um depoimento de uma manifestante, dado à rede americana de TV CNN: “De repente, cerca de 500 pessoas com garrotes surgiram de uma mesquita próxima (os tais milicianos basiji), encheram as ruas e começaram a atacar a todos; foi um massacre. Bateram numa mulher tão selvagemente que ela ficou empapada de sangue, e seu marido, que via a cena, desmaiou”.

Apesar da repressão, que deixou centenas de feridos e mortos nas últimas semanas, muitas mulheres continuaram participando das manifestações. “Estou tão orgulhosa das mulheres iranianas, presentes nos protestos”, disse uma manifestante, confirmando que elas foram brutalmente golpeadas com bastões pelas forças de segurança.

As leis retrógradas contra as mulheres estão sendo desafiadas pela grande presença feminina nas lutas. Todas as disposições legais são aplicadas de maneira mais ou menos estrita dependendo da evolução do regime. E por isso, quanto mais avançar a luta, melhor. Segundo os advogados do Centro de Shirin Ebadi, desde a vitória de Mahmoud Ahmadinejad nas eleições presidenciais de junho de 2005, “voltou-se aos primeiros anos da revolução islâmica”. As milícias de extrema direita recuperaram credibilidade e poder, além dos Guardiões da Revolução e os militares, que agora estão à frente da maioria dos ministérios e dos postos-chave do governo iraniano.

Segundo os representantes do Centro, é muito difícil que ocorra uma mudança no Ir㠓porque o povo tem medo, e prefere manter o que tem a colocar em risco sua vida e a de suas famílias. O medo é muito maior do que qualquer um possa imaginar”, garantem os advogados. Mas parece que o medo não é o que está predominando, e sim a revolta, a raiva, o desejo de liberdade. Por isso também é tão valiosa a participação das mulheres nas revoltas.

É uma luta democrática, pelos direitos básicos das mulheres, que vêm subvertendo os alicerces do despótico regime iraniano. As tênues promessas de abertura democrática feitas por Moussavi na campanha eleitoral, frustradas pela manutenção de Armadinejad, fizeram com que milhões de mulheres saíssem às ruas exigindo não apenas essas tênues promessas, mas tudo o que elas têm direito. Os véus começaram a cair. Simples véus, mas que trazem em si uma lista imensa de fatwas de apedrejamento, violência e selvageria secular contra as mulheres.

A bandeira democrática de libertação e emancipação das mulheres, bem como de todos os oprimidos, só se tornará verdadeiramente democrática se estiver nas mãos da classe trabalhadora e, sobretudo, das próprias mulheres trabalhadoras. Nas fotos publicadas nos jornais, vemos milhares de mulheres iranianas gritando e protestando nas ruas. Na cabeça, o véu islâmico, um véu que naquele momento não parece fazer daquela mulher uma pessoa submissa, um “nada”. No Irã, os véus hoje são verdes, a cor da revolta. Mais que véus, são bandeiras da revolução contra a ditadura, contra a miséria, contra a opressão.

Para milhões de mulheres, a revolta significa o direito a uma existência melhor, o direito à vida, o direito de estudar e trabalhar, o direito de se ver livre das fatwas, assim como o de preservar o corpo das pedras que lhes atiram. Nesse sentido, ocorre nas ruas o despertar da personalidade. E é com ela que o véu virá abaixo. Ele será arrancado de suas cabeças por suas próprias mãos, ou não será arrancado.

Porque com o véu deve vir abaixo o regime teocrático dos aiatolás, dos magnatas do petróleo, da burguesia iraniana. E assim será, porque pese o medo, pese a sangrenta repressão dos criminosos basiji, pese as odiosas fatwas, as mulheres iranianas estão ocupando o seu devido lugar: as ruas de Teerã.