Apesar de suas irregularidades, o filme de Carlos Reichenbach é importante por tocar em temas raros no cinema, como o machismo e o racismo no cotidiano da classe operáriaIrregular e contraditório são termos que podem ser utilizados para se falar de Garotas do ABC, o último filme de Carlos Reichenbach – diretor dos ótimos Anjos do Arrabalde (1987) e Alma Corsária (1994).

As contradições, a princípio, soam propositais num filme cujo título original seria Aurélia Schwarzenega e que tem como abertura a cena de uma negra dançando nua, ao som de soul music, cercada por pôsteres de homens negros, do Rambo e do ultra-conservador “Exterminador do Futuro”, ídolo absoluto da operária Aurélia (Michelle Vale).

Uma cena que serve de síntese para a história que o diretor se propôs a contar: um retrato do universo feminino, em uma fábrica e no dia-a-dia de São Bernardo do Campo, que tem como protagonista uma tecelã negra que – cúmulo dos paradoxos – namora um sujeito em crise e membro de um grupo neofascista, dirigido pelo advogado Salesiano de Carvalho (Selton Mello).

Uma história que, certamente, poderia resultar em um excelente e complexo filme, mas que, lamentavelmente, tropeça, em suas muitas irregularidades (da direção à interpretação), em metáforas fáceis e uns tantos outros problemas.

O que não significa, no entanto, que o filme não mereça ser visto. Em meio a uma produção em que são exatamente os Schwarzeneger e outros lixos que imperam, a existência de filmes como Garotas do ABC chega a ser um oásis, que, contudo, precisa ser observado com um certo cuidado.

Estereótipos

Entre as colegas de Aurélia, há uma espécie de retrato multifacetado do universo do operariado feminino: a jovem grávida, a líder do setor, a operária que também se prostitui, a mulher mais velha que precisa entrar no mercado de trabalho, a chefete que atazana a vida das demais etc. O problema é que todas elas parecem sofrer do mesmo mal: são representadas com um alto teor de estereótipo e sob um “olhar” ostensivamente masculino.

Algo que fica evidente na figura de Aurélia. Seu atrevimento e liberdade sexual são mostrados com uma câmera que a transforma mais em objeto do desejo do que em senhora de sua vida. O que acaba dando origem a uma cena em que a tecelã se deixa levar por um quase estupro em meio à podridão e à miséria. Já suas contraditórias opções parecem ser fruto unicamente de uma rebeldia sem causa contra o rígido controle paterno.

No bando fascista, a maioria é formada por idiotas patéticos que vociferam contra negros, homossexuais e nordestinos. E o líder Salesiano parece um alucinado movido por uma mescla de cocaína, discursos de Plínio Salgado – líder do movimento integralista, na década de 1930 – e a música de Wagner, o compositor favorito de Hitler.

Cabe ainda citar as figuras do jornalista “anarquista”, que investiga os neofascistas, e de um sindicalista intelectualizado que tem o machismo como marca-registrada: ao fazer uma panfletagem, o sujeito emenda a convocação “vá à assembléia-geral” com a frase “lá em casa”, sussurrada no ouvido das operárias. Situação que, apesar de lamentavelmente baseada na realidade, perde totalmente sua força ao cair na quase comédia.

Há ainda que se destacar o complicado discurso racial que atravessa o filme. A última frase que vemos na tela é “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, que surge após a aproximação de Aurélia de um personagem oriental. Uma forma simplista e totalmente equivocada de responder à pregação nazi-fascista, particularmente porque, ao invés de apontar para as reais diferenças raciais existentes no país, baseia-se numa absurda versão da farsa da democracia racial.

Um reducionismo que parece estar na origem do porquê o filme deixa a sensação de que o diretor acabou desperdiçando uma ótima oportunidade de oferecer uma reflexão mais profunda sobre temas fundamentais de nossa sociedade.
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