Omar Blanco, do Rio de Janeiro (RJ)

A maior parte das vítimas do coronavírus, seguramente, são trabalhadores, daqueles chamados, eufemisticamente, de essenciais. Pelo menos, os números no Rio de Janeiro indicam isso. Na legislação brasileira, o acidente de trabalho é configurado quando, no desempenho da atividade, os trabalhadores perdem total, ou parcialmente, as possibilidades de realizar a atividade pela qual recebem um salário. Mas também a legislação diz que não existe nexo causal no meio da pandemia. Segundo isso, o senso comum diz, repetindo o mantra, que estamos no mesmo barco, que o inimigo comum é a Covid-19. Isso justifica o “e daí?” de Bolsonaro. Segundo os patronos e as autoridades, as centenas de milhares de vítimas são responsabilidade do vírus, não deles!

A realidade das condições materiais da disseminação da doença é acachapante. Tecnicamente, a transmissão é comunitária, isto é, nas relações sociais para produzir, para vender, para comercializar, para prestar um serviço. Até ontem (03/05), as pessoas confirmadas com a doença na cidade do Rio de Janeiro eram 10.546; os óbitos acumulam 971. Boa parte da imprensa dos ricos tem de noticiar os agravos dramáticos dos trabalhadores dos chamados serviços essenciais.

Que tipo de trabalhadores são eles?

Médicos, enfermeiros, maqueiros ficaram visíveis, porque se realiza uma campanha ambivalente de os bajular como heróis, ao mesmo tempo que são obrigados a racionar os equipamentos de segurança (EPIs) ou manter plantões extenuantes. Crivella, Witzel e o próprio Bolsonaro definem como atividade essencial a indústria. Nisso, cabe a construção civil, a siderúrgica, de gás-química, a petroquímica, a naval, automobilística e a de refino de petróleo. Essas representam 76,9% do Produto Interno Bruto (PIB) industrial no Estado. A manufatureira, a metalúrgica, audiovisual, cimenteira, alimentícia, mecânica, editorial, têxtil, gráfica, de papel e celulose representam 11% do PIB na cidade. Também são essenciais os setores de abastecimento para a indústria, alimentação, para os insumos do setor saúde, até para o sistema bancário, isto é, transportes e comercialização em geral. Não menos importante, estão os trabalhadores do sistema de saúde pública e privada.

Essas atividades essenciais listadas acima não podem ser entendidas sem o contexto do Estado, cujo centro é a cidade do Rio do Janeiro. Milhares de trabalhadores são obrigados a se deslocar pelo transporte público e privado, desde a Zona Oeste e Norte, com destino à Baixada Fluminense, ou centro da capital fluminense. Outros deslocamentos são transversais, entre periferias da Região Metropolitana. Mas é dominante o movimento pendular na região metropolitana. As atividades industriais, de abastecimentos e serviços são integradas, exigem da força de trabalho muita proximidade física. Muitas das tarefas são realizadas em locais fechados, sem arejamento adequado. Em resumo, a exposição ao Sars-CoV-2 é muito alta e, ainda que sejam usados EPIs, muitos de baixa eficiência, os casos de mortes entre moradores só crescem nos bairros com baixa renda per capita, localizados nas zonas mais precárias. Fundamentalmente, porque os trabalhadores não moram perto de seus locais de trabalho.

O Rio de Janeiro nunca parou totalmente e já estão preparando protocolos para a “nova normalidade”. Para os trabalhadores, não é uma opção ficar em casa! A prefeitura repete o mantra “fica em casa”, como se fosse opcional, como se existisse garantia trabalhista para quem quiser quarentena total. A política pública de saúde dispensaria os trabalhadores pelo alto potencial de contaminação, mas não é isso o que acontece. A coisa certa é ficar em casa, mas, quando o patrão convoca, você tem poucas opções: não ganha o dia ou o desemprego.

Sob ameaça de demissão, comerciários de Campina Grande (PB) foram obrigados a participar de protesto patronal

Violações trabalhistas

O Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu 7.565 denúncias de violações trabalhistas relacionadas à Covid-19. Foram instaurados 1.322 inquéritos civis, em todo o Brasil, para apurar as irregularidades atribuídas aos empregadores. O total de notificações, ofícios e requisições referentes ao novo coronavírus somam, atualmente, 17.345 documentos expedidos. Quanto aos despachos dos procuradores do MPT, o número pulou de 6.292 para 10.835.”

É provável que muitos trabalhadores vieram a falecer em decorrência do contágio indo ou voltando, inclusive, no local de trabalho. As atividades essenciais para a governo e os patrões estão além das atividades na saúde pública e privada e o abastecimento delas. Na realidade, o Rio de Janeiro não parou, o “lockdown” não existe. Por exemplo: a indústria mais importante quanto ao PIB estadual, a petroleira, não parou. A parcela que conseguiu ficar em casa foram os trabalhadores da gestão da produção, da gestão dos serviços à produção, os servidores públicos e terceirizados das diferentes instituições municipais, estaduais ou da União.

Mas para os que ficaram em casa, seguem sofrendo com o trabalho como antes. A patronal, seja ela do setor público ou do privado, tentam manter a produtividade como se estivéssemos numa situação normal. Para a chefia, estar em situação de teletrabalho é uma condição de certa acomodação do trabalhador; inclusive impõem, com assédio moral, maiores metas ou tarefas extras. A exemplo disso, os próprios trabalhadores da Petrobras tiveram os salários reduzidos em 25% e a jornada de trabalho flexibilizada unilateralmente pela empresa, sem negociação alguma. Também os profissionais da educação pública, eles estão sendo coagidos para fazer educação a distância (EaD)/remotas. Pareceria simples, mas não é; desconhecendo, propositalmente, a profunda desigualdade material das famílias dos estudantes, da falta ou precariedade da infraestrutura nos bairros, insistem no envio de material didático e, até, marcam nas escolas para que os estudantes peguem-nos.

Um exemplo, dramático, são os trabalhadores adoecidos e falecidos no exercício de sua atividade profissional, a categoria da saúde pública. Qual seria a tipificação dos trabalhadores que ficaram contagiados ou morreram em decorrência dos agravos da saúde no local de trabalho, ou no ir e vir de sua atividade? Segundo informações do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), são 20 vítimas, 8 médicos e 12 enfermeiros em 24 de abril. Outras categorias, ainda que não tenham informações organizadas, têm listas de trabalhadores nas mesmas circunstâncias. Por exemplo, a plataforma de exploração de petróleo P26 teve 22 trabalhadores contaminados.

O que não surpreende é que a prefeitura ou o Estado não tenham informação da situação sanitária dos locais desses trabalhadores essenciais da indústria. Tecnicamente, não existe um perfil epidemiológico completo nem da pandemia. Não realizam testes amplos para a população, nem dos trabalhadores que estão obrigados a não realizar a quarentena. O que nenhuma autoridade reconhece é que eles, obrigados pela subsistência, sabem do risco, começam a ver nos números de mortos e de infectados nomes conhecidos, o equilíbrio psíquico também fica comprometido. Para os trabalhadores que conseguem ficar em casa, não ficam em condições materiais e psíquicas satisfatórias, pois não são, como afirmou o ministro Paulo Guedes, os privilegiados nos sofás, assistindo a TV e com geladeiras cheias.

Com a tendência de crescimento dos infectados, dos mortos, do colapso da saúde pública anunciada a principal doença, além do coronavírus, aparecem os transtornos mentais na ordem do dia.

Número de mortes é maior na periferia

Nesta terceira matéria sobre a série da Covid-19 e classes sociais [primeira e segunda] mantém-se a confirmação empírica do aumento progressivo de falecimentos entre os trabalhadores com condições de moradia em bairros precários, e com renda per capita baixa para a cidade do Rio de Janeiro.

De novo, são os moradores de Campo Grande, Realengo, Bonsucesso, Olaria, Piedade, Brás Pina, Bangu, Irajá, Jacarepaguá, Gardênia Azul, Rocinha, Vigário Geral, Maré, Santa Cruz, em todos os bairros, a maioria é trabalhador, é subempregado ou desempregado.

Os nomes dos bairros só representam, na memória carioca o subúrbio, a determinação material e social na saúde dos trabalhadores, materializada no lar que, em tese, apenas lhes permite recuperar as forças para se levantar no dia seguinte e trabalhar, um e outro dia, com a Covid ou sem ela.

Determinação porque as condições de moradia facilitam a condição de exposição à infecção, também a outro tipo de endemias, como a dengue, o que confirma essa materialidade precária, que facilita a disseminação e o vetor dela. Determinação social porque essa força de trabalho é o centro das relações sociais de produção, o local de trabalho, a empresa, a residência. Nesses locais, interagem muitos fatores, ou vetores neste caso, que podem adoecer um trabalhador.

Na conjuntura, em 2019, as Normas regulamentadoras (NRs), foram redefinidas para poupar dinheiro dos empresários. Elas foram uma conquista da classe trabalhadora brasileira, e mundial, para tentar adequar e/ou diminuir a incidência dos agravos da saúde dos trabalhadores, mudando, ou tentando mudar, o local do trabalhador. Hoje, essa redefinição das NRs, a toque de caixa, pelo governo Bolsonaro limita a letalidade da Covid-19.

O discurso do governo, em todas as esferas, incentiva a volta ao trabalho, programada e/ou promovida com carreatas dos reacionários, para agitar a voltar da “normalidade”, ou da “nova normalidade”. Mas a nova normalidade já existe na exposição repetida nos transportes públicos, nos locais de trabalho, nas filas da Caixa Econômica Federal, …

As condições de saúde e comorbidades dos trabalhadores que ficam expostos ao coronavírus onde trabalham, ou onde moram, fica ainda mais agravada pela subnotificação. É que esse problema é um velho conhecido dos epidemiologistas, confirmado pela falta de sincronização de sistema de saúde na coleta de informações da linha de frente; pela falta de pessoal; pela falta de qualificação das equipes de atendimento aos infectados (quando há pessoal); pela falta de protocolos homogêneos para coleta e processamento de dados; pela falta de equipamentos.

A doença e os agravos na saúde dos trabalhadores expressam também uma questão ambiental. As tarefas de Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) são negligenciadas pelas instituições nos municípios. Pode acontecer o abandono do prontuário ou descontinuidade dele no tratamento medicamentoso, terapêutico ou na remissão para que ele siga cuidados na própria residência, cortando a linha de continuidade da informação. Também porque as características de comorbidade apresentam múltiplas combinações de coinfecção. Em qualquer outro caso, o agravamento na saúde ou óbito vai terminar registrado, caso seja, em forma diferentes, sem rigor próprio de classificações de doenças.

Em conclusão, é possível enquadrar esta situação como acidente de trabalho, pois todos os trabalhadores que, por meio do exercício de sua profissão, foram enquadrados como essenciais, foram lesados, ou seja, prefeitura e empresas provocam-lhes lesão corporal. Todos ou alguns dos sintomas da Covid-19 foram encontrados nos trabalhadores da faixa de renda per capita de R$316 a R$1.658,00 (os moradores dos bairros acima citados). Dentre os quais, houve perturbação funcional total que causou a morte de 251 trabalhadores até 27 de abril (50% do total dos óbitos registrado até aquela data). Nesse número, vale a pena lembrar que a primeira pessoa morta no Rio de Janeiro, uma mulher de grupo de risco, idosa, era trabalhadora do serviço doméstico de uma patroa da zonal sul da cidade.

As empresas, a prefeitura, o governo estadual são os responsáveis pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador. Mas, na realidade do transporte público diário urbano, do aumento progressivo do risco da operação dessas atividades essenciais, empresários e autoridades estão produzindo mais que uma contravenção penal. Isso não condiz com a robusta legislação brasileira sobre saúde pública ou trabalhista, há alguma categoria para afirmar que, pelo menos, está em andamento um acidente de trabalho em massa.

Na conjuntura atual, poder-se-ia afirmar que a situação deveria ser remediada ou trabalhadores indenizados por uma ação por dano moral coletivo. Nesse sentido, os réus são os patrões e as autoridades, que determinam quais são as atividades essenciais no Rio de Janeiro e no Brasil. Porém, existe também a categoria jurídica de genocídio, não porque os mortos sejam de uma etnia, de um partido ou um grupo, mas pela negação do direito à vida dos trabalhadores essenciais. É um crime contra a humanidade o que o patronato e as autoridades realizam para manter a economia aberta e não parar.

Mas os conceitos de justiça existem, nesta sociedade capitalista, para manter seus lucros, para manter a propriedade privada dos meios de produção em funcionamento. Hoje, como em nenhum outro momento, os acidentes de trabalho na pandemia são apenas ocorrências próprias da sociedade. Para ela, é como fala Bolsonaro, “e daí?”.

REFERÊNCIAS

[1] O Brasil dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), e dá outras providências. [Internet]. MEDIDA PROVISÓRIA No 927, DE 22 DE MARÇO DE 2020 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm

[2] Prefeitura Rio de Janeiro. Painel Rio COVID-19 [Internet]. 2020 [citado 12 de abril de 2020]. Disponível em: https://experience.arcgis.com/experience/38efc69787a346959c931568bd9e2cc4

[3] Brasil regulamenta a Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. [Internet]. DECRETO No 10.282, DE 20 DE MARÇO DE 2020 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm

[4] Confederação Nacional da Indústria (CNI). CNI – Perfil da Indústria nos Estados [Internet]. [citado 28 de abril de 2020]. Disponível em: http://perfil.portaldaindustria.com.br

[5] SEBRAE. MOBILIDADE URBANA E MERCADO DE TRABALHO NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO [Internet]. SEBRAE; 2013. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/rj?codUf=20

[6] Revista Consultor Jurídico. MPT recebe mais de 7.500 denúncias durante pandemia de Covid-19 [Internet]. Consultor Jurídico. [citado 30 de abril de 2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-14/mpt-recebe-7500-denuncias-durante-pandemia-covid-19

[7] Agência O Globo AO. Três médicos morrem no Rio após serem infectados por Covid-19 – Home – iG [Internet]. Último Segundo. 2020 [citado 27 de abril de 2020]. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/2020-04-26/tres-medicos-morrem-no-rio-apos-serem-infectados-por-covid-19.html

[8] André Lobão. Desembarques de emergência mostram o estado da calamidade petroleira nas plataformas [Internet]. Sindipetro RJ. 2020 [citado 25 de abril de 2020]. Disponível em: https://www.sindipetro.org.br/desembarques-de-emergencia-mostram-o-estado-da-calamidade-petroleira-nas-plataformas/

[9] Marina Barbosa. “‘Servidor não pode ficar em casa com a geladeira cheia, enquanto milhões perdem o emprego’”, diz Guedes – Política [Internet]. [citado 28 de abril de 2020]. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/04/27/interna_politica,848700/servidor-nao-pode-ficar-geladeira-cheia-enquanto-milhoes-perdem-empreg.shtml

[10] Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saúde. São Paulo, SP: Hucitec; 1989.

[11] Oddone I, Marri, Gastone, Gloria, Sandra, Briante, Gianni, Chiattella, Mariolina. Ambiente de trabalho a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo, SP: Hucitec; 1986.

[12] O Brasil dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. [Internet]. LEI No 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991. 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm

[13] Djamila Ribeiro. Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus – 19/03/2020 – Djamila Ribeiro – Folha [Internet]. [citado 20 de março de 2020]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml

[14] Acidentes de trabalho em massa: da responsabilidade civil do empregador na reparação do dano moral coletivo – Jus.com.br | Jus Navigandi [Internet]. [citado 1o de maio de 2020]. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81215/acidentes-de-trabalho-em-massa-responsabilidade-civil-do-empregador-na-reparacao-do-dano-moral-coletivo