Notas para um balanço histórico do ciclo de supremacia e crise do PT e da CUT“As revoluções proletárias(…) se criticam constantemente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante delas, recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso”

Karl Marx

O capitalismo brasileiro perdeu o impulso de crescimento em 1980. O principal fator de coesão social de uma das sociedades mais injustas do mundo se perdeu. Nos últimos vinte e cinco anos, no entanto, o Brasil só “explodiu” duas vezes: nas Diretas em 1984 e, em menor medida, no Fora Collor em 1992. Nos últimos cinco anos, Argentina, Bolívia, Equador, e Venezuela viveram situações revolucionárias, mas o Brasil não. Compreender as razões desta desigualdade de ritmos é uma das chaves de interpretação dos destinos da revolução brasileira. A hipótese central deste texto, é que a explicação última desta diferença fundamental repousa no papel da CUT, do PT e de Lula à frente da oposição aos ajustes neoliberais realizados nos dez anos anteriores.

Nas duas vezes em que milhões foram às ruas para derrubar governos, as “explosões” resultaram em vitórias usurpadas, portanto, muito parciais: as massas mobilizadas – uma aliança da classe trabalhadora urbana com a juventude, setores médios plebeus, mas com liderança direta ou indireta de dissidências burguesas – derrubaram os governos odiados, Figueiredo e Collor, mas não conquistaram eleições imediatas. A concertação burguesa conseguiu fechar as crises impondo Sarney e Itamar. Na primeira grande crise de dominação, o MDB de Ulysses foi o fiador da estabilização. Mas, na segunda, foi o PT de Lula quem assegurou que as massas voltassem para casa.

Em ambas circunstâncias, recessões severas tinham castigado nos anos anteriores um dos países de crescimento mais dinâmico no meio século que foi de 1930 a 1980. Desde 1980, os destinos político-sociais da América Latina e do Brasil estiveram estreitamente associados às flutuações dos ciclos da economia mundial. Cada um dos choques externos exigiu uma nova ofensiva sobre os poucos direitos da classe trabalhadora, e fermentou as condições objetivas para o ascenso das lutas. Na terceira recessão de impacto mais severo, a que se abriu na virada do século, agravada pelas seqüelas inflacionárias da desvalorização cambial de janeiro de 1999, o mal estar social favoreceu a eleição de Lula. A história de uma crescente influência do PT, da CUT e da UNE, assim como o lugar de Lula como principal dirigente dos trabalhadores na etapa que agora se encerra, foram indissociáveis das pulsações econômicas, e dos fluxos e refluxos da luta de classes por eles condicionados. Na previsível recessão mundial que nos espera, quando se esgotar a atual fase de crescimento com uma crise de superprodução mundial, possivelmente, mais intensa que a desaceleração anterior, quiçá já a partir do ano que vem, a esquerda brasileira estará diante de grandes desafios.

A ação política coletiva só substituiu a esperança de ascensão individual pela via da experiência de classe
A promessa de uma vida melhor através do trabalho árduo e honrado, de uma escolaridade mais elevada, de uma profissionalização mais especializada, ou seja, pela via do talento, do esforço, do sacrifício ou do mérito, não se realizou. A geração que chegou à vida adulta no final dos setenta tinha razões para estar amargurada com uma longa ditadura militar em um Brasil cruelmente desigual. Desconfiavam, crescentemente, que pela via individual pudessem melhorar de vida. A perspectiva de transformação do Brasil e de seus destinos pela ação e organização coletiva foi ganhando credibilidade. Greves defensivas contra a superinflação se legitimaram diante da maioria do povo como justas. Foi uma experiência geracional de classe que levou o Brasil a bater, nos anos oitenta, todos os recordes mundiais de número de horas de greve.

Nunca existiu na história, porém, uma correspondência entre ação política e consciência de classe. As sociedades reagem, invariavelmente, com atraso ao amadurecimento da crise. As crises se precipitam, justamente, porque transformações necessárias foram por muito tempo adiadas, e o conflito entre mudança e reação se apresenta impreterível. Se as mudanças não são possíveis pela via das reformas – ou seja, da colaboração de classes negociada de concessões – serão impostas pela via da revolução. No entanto, para os trabalhadores assalariados no mundo contemporâneo, e as classes ou frações de classe que, em cada país, poderão ser aliadas das suas lutas, a construção subjetiva é muito difícil, porque enfrentam obstáculos imensos para sua organização independente. São necessários vários anos para que a dramática percepção de que a vida não vai mudar por inércia seja assimilada por milhões. A consciência de classe evolui mais lentamente que o apodrecimento da realidade social. Um intervalo de atraso, maior ou menor, em relação à situação objetiva é inevitável. No Brasil, o passado da maioria das famílias entre as décadas de trinta e setenta era uma história de mobilidade social ascendente. As ilusões de uma vida menos insegura ou mais confortável, pelo menos para alguns, sobreviveram às condições em que isso, historicamente, tinha sido possível. As expectativas reformistas permaneceram vivas, muito depois da crise de estagnação do capitalismo brasileiro ter se aberto. Lula foi, durante os últimos vinte anos, o porta-voz dessas ilusões.

Era presumível que a maioria do povo trabalhador e das novas classes médias urbanas depositassem esperanças, depois das eleições da Constituinte de 1986, e da consolidação de um calendário eleitoral estável, com direito á alternância, no dinamismo de um país que sempre mudou muito lentamente, mas mudava para um pouquinho melhor. Uma maioria reconciliou-se com o resultado do Colégio eleitoral de 1985. Uma avalanche votou no PMDB do plano cruzado em 1986. Depois no PT, em São Paulo, com Erundina, para dizer basta a Sarney, um voto de protesto contra a superinflação, e por causa da invasão da CSN em 1988. O país se dividiu em 1989, mas, de novo, uma maioria arriscou em Collor. Confiaram em Fernando Henrique em 1994, pelo plano real, e ainda em 1998.

Não obstante a pressão de inércia reacionária de um país culturalmente muito atrasado, onde o medo de represálias sempre foi muito efetivo para neutralizar a ação coletiva, a massa do povo foi evoluindo à esquerda, moderadamente, enquanto o PT e lula giravam à direita, despudoradamente. Acabaram por se encontrar em 2002. Primeiro os setores organizados do proletariado e a juventude estudantil, mas, com o passar dos anos, também, as classes médias e as maiorias populares apostaram na mudança de suas vidas pela representação política que o PT e Lula ofereciam, por dentro do regime democrático. Uma promessa com poucos riscos de confronto.

O contraste entre a experiência dos seus pais e das últimas décadas parece, hoje, devastador. Cada geração retira conclusões refletindo comparativamente sobre um repertório de lições herdadas. A terrível, porém, inescapável lição de que a vida não vai melhorar sem luta, se abate sobre os ombros de milhões de sacrificados pelo desemprego em suas famílias, pelos salários congelados, pelo colapso da escola pública, pelo aumento da delinqüência, e pela desmoralização das organizações e descrédito dos líderes em que confiaram. A etapa de aprendizado sindical-parlamentar só se esgota, contudo, no calor de uma situação revolucionária. A colaboração de classes é um projeto que renasce uma e outra vez, enquanto os trabalhadores não ganharem suficiente confiança em si mesmos e suas lutas. As massas podem abandonar seus chefes de ontem, sem renunciar às quimeras de seus sonhos. Podem, também, se reconciliar com líderes que as decepcionaram. Os trabalhadores precisam encontrar um ponto de apoio político, uma nova direção, para substituir a anterior e sepultar suas expectativas ingênuas. As ilusões reformistas não morrem sozinhas.

A crise de confiança em Lula, no PT, na CUT e na UNE não autoriza ainda a conclusão de que o povo trabalhador tenha desistido de reformar o capitalismo brasileiro. A consciência política é um processo vivo: quando colocada diante do desmoronamento das ilusões, pode avançar ou recuar. Se não surgirem da reorganização que já começou instrumentos sindicais e políticos novos, com estratégia anti-capitalista, conclusões revolucionárias poderão ser retirados por alguns poucos, enquanto a maioria se refugiará em alguma variante eleitoral demagógica, senão no próprio PT, nos limites do reformismo, agora desesperançado. Ou, ainda pior, as massas poderão se esconder no pensamento mágico messiânico, ou nos desesperos individualistas. Uma esquerda que resgate do esquecimento a força avassaladora das Diretas e do Fora Collor, e que defenda a necessidade da mobilização coletiva e revolucionária dos milhões de explorados, é o que o Brasil precisa.

Ações radicais, programa moderado, direção conciliadora
Ocorreu nesses mais de vinte anos, claro, a experiência de milhares de greves das mais variadas categorias que revitalizaram os sindicatos. Aconteceu, também, o aprendizado superior das greves gerais dos anos oitenta. Houve os comícios imponentes de Lula em 1989. A luta dos aposentados depois do plano Zélia/Collor comoveu o país. Sem esquecer a greve histórica dos petroleiros, a marcha do MST de 1987 sobre Brasília um ano depois do massacre de Eldorado de Carajás, e tantas outras lutas populares. Mas, nesses combates parciais a classe trabalhadora brasileira sempre foi mais radical em suas ações que em suas reivindicações. Moveu montanhas, para reivindicar muito pouquinho. O horizonte de sua resistência defensiva era a defesa do salário devorado pela inflação, um pedacinho de terra para assentar famílias ou construir uma casa, ou, quando muito, mais verbas para educação e saúde.

Somente por duas vezes, nesse intervalo histórico de duas décadas de consolidação do regime democrático-burguês, as massas populares conseguiram irromper na cena política com a força de sua mobilização de ruas grandiosas contra o poder, ameaçando o governo de plantão. De resto, a massa do povo, incluindo os setores de massas mais organizados, aceitaram os limites da democracia liberal que estabelece que a mudança deve ser esperada, disciplinadamente, de dois em dois anos. Poderia ter acontecido, talvez, um grande movimento pelo Fora FHC, mas o PT, conscientemente, fez abortar uma campanha que poderia ter se massificado, canalizando o protesto para as eleições seguintes.

A grande mobilização de massas para derrubar governos odiados foi, portanto, excepcional. As massas populares e a juventude descobriram nas Diretas e no Fora Collor que sua ação era poderosa, mas, ficou claro, também, com a posse de Sarney e de Itamar, que era mais fácil se juntarem contra Figueiredo e contra Collor, do que se unirem a favor de um outro projeto. O socialismo, uma referência vaga para milhões, não era mais que uma aspiração de maior justiça, sem que o ódio ao capitalismo tivesse ainda amadurecido. Foram às ruas expressando o gigantismo de sua força, uma imensa maioria de pobres deserdados em um país enorme, urbanizado em pouquíssimas décadas, e muito jovem.

Espreguiçaram-se, e as classes dominantes tremeram, improvisando rapidamente um recuo organizado. A burguesia aceitou que a hora do fim do regime militar tinha chegado em 1984 e, depois, que Collor era um aventureiro a ser descartado. As massas fizeram muito, mas para conquistar muito pouco. Não o fizeram, contudo, de forma independente. Em 1984, o PT e Lula cumpriram um papel progressivo na co-direção da luta final contra a ditadura, mas tinham influência minoritária. Ainda assim, seus limites sociais (a tendência à submissão aos humores dos setores burgueses aliados) e políticos (um deslumbramento com as pressões democráticas da institucionalidade) já se manifestaram: vacilaram na hora decisiva – na convocação da greve geral no dia 25 de abril – quando a emenda foi a voto no Congresso, capitulando a um ultimato de Tancredo.

Em 1992, quando já possuíam influência majoritária, o lugar de Lula e do PT foi regressivo: coube a eles o papel de bombeiros assegurando a posse de Itamar – fora de Minas – um ilustre desconhecido. A CUT, a UNE, o PT e Lula se construíram e legitimaram nesse processo, mas a classe trabalhadora não estava nem social, nem politicamente à frente da maioria popular explorada. Não dirigia, foi acaudilhada. Nem as diretas, nem o Fora Collor, foram construídas com reivindicações de classe. O programa que levou milhões à luta não era senão democrático. Não surpreende que os grandes combates se deram nos limites de alianças com dissidências burguesas, como o MDB de Ulysses Guimarães e Tancredo Neves nas Diretas, e Quércia no Fora Collor.

A burguesia brasileira, admitamos, demonstrou uma impressionante capacidade de adaptação e concertação. Suas frações mais lúcidas aceitaram sem pestanejar um acordo com o MDB e Tancredo Neves, e sacrificaram Collor, bem rapidinho, engolindo Itamar. Nas duas oportunidades, antes que milhões estivessem dispostos a ir às ruas, uma recessão terrível tinha se abatido sobre a nação. As duas recessões foram precipitadas por ondas de choque externo: a moratória mexicana de 1982 e a recessão mundial do início da década dos noventa. A classe trabalhadora e a juventude não toleraram o desemprego em larga escala, e o saqueio de seu padrão de vida, já por si, historicamente, muito baixo. Não esperaram o calendário eleitoral. Obtiveram vitórias parciais. As eleições diretas não vieram em 1985, mas Figueiredo não fez seu sucessor e o ciclo militar acabou. Não conquistaram eleições gerais em 1992, mas Collor caiu.

Um longo refluxo das lutas urbanas
A grande pergunta dos últimos treze anos é porque o Brasil não voltou a “explodir”, ao contrário de outros países latino-americanos. Não aconteceu uma derrota histórica nesse intervalo. A sugestão deste artigo é que o fator diferencial foi no Brasil a existência da CUT, da UNE e do PT. A vitória de Lula em 2002 foi uma expressão do desgaste da experiência com o governo FHC e os ajustes neoliberais, mas sem que tivesse irrompido, antes das eleições, uma vaga de lutas nacional sustentada pelos grandes batalhões pesados da classe trabalhadora urbana organizada. As massas recorreram ao voto no PT para expressarem sua exasperação com o projeto tucano.

Depois de oito anos, esgotado o alívio inicial pelo fim das pressões da superinflação, o desemprego crônico e em elevação para patamares inusitados, mesmo para padrões brasileiros, os salários em queda, a crise da educação e da saúde pública, o aumento da criminalidade, o desgaste com as privatizações envolvidas em negociatas, enfim, as seqüelas que levaram alguns milhões à emigração para Portugal, Japão e EUA se manifestaram, também, no terreno eleitoral. Serra não assumiu a continuidade da linha FHC/Malan. Prometia, também, uma mudança de rumos, anunciando um choque de crescimento. A mudança, no entanto, foi feita “a frio”.

A eleição de Lula foi um processo “inferior” ao que aconteceu nas eleições na Argentina em 2001, na Venezuela no plebiscito de 2004, no Equador, com a vitória de Gutierrez, ou do que poderá se abrir na Bolívia. Inferior, porque não se abriu uma situação revolucionária antes das eleições. Tanto no Equador como na Bolívia, os primeiros anos do novo século foram um período de intensas lutas de classes, em que as massas puderam medir suas forças, comparando-as com as dos seus inimigos. Greves gerais, cortes de estradas, ocupações de prédios públicos, divisões nas instituições da dominação burguesa, crise nas polícias e até nos exércitos se incorporaram ao repertório de experiências populares. Não surpreende, portanto, que a frustração com a capitulação de Gutiérrez diante do FMI e da burguesia equatoriana tenha sido tão grande, e que tenha incendiado uma união dos setores médios com as camadas populares.

A centralidade das ilusões reformistas
No Brasil, a crise do governo Lula e do PT aberta em 2005 tem sido distinta. Em primeiro lugar, porque não ocorreu uma mudança favorável aos trabalhadores na relação social de forças, mesmo depois de três anos. A experiência das classes populares tem se desenvolvido, histórica e comparativamente, em ritmos mais lentos. Fatores objetivos e subjetivos condicionaram esta terrível lentidão. Antes de 2002, no longo intervalo do segundo mandato de FHC, o principal condicionador da estabilidade do regime, mesmo se considerarmos fenômenos novos como o fim da longa etapa de migrações internas – do nordeste para o sudeste e do sul para a nova fronteira agrícola no oeste – e a imigração de quase três milhões de jovens para o exterior, tinha sido o papel do PT. Bloqueando a unificação das mobilizações populares, e desviando o mal estar entre o povo para a expectativa da eleição de Lula, o PT foi um alicerce da governabilidade.

Depois de 2002, o governo do PT foi beneficiado, involuntariamente, por uma fase de recuperação da economia mundial que permitiu o crescimento das exportações, sobretudo de commodities que tiveram preços em alta, diminuindo o desequilíbrio do balanço de pagamentos. Mesmo com um choque fiscal duríssimo, e taxas de juros reais entre as maiores do mundo, assistimos uma redução do desemprego, ainda que modesta. Nosso lugar no contexto latino-americano atraiu investimentos de multinacionais que concentraram, por razões de escala, suas operações no Brasil com perspectiva de disputar o mercado latino-americano.

Não obstante uma tímida recuperação econômica a partir de 2004, a explicação para a relativa quietude ou paciência das classes populares é antes política que econômica. É verdade que a saída de vários milhões de jovens para o exterior – um fenômeno migratório recente – diminuiu a pressão de um desemprego ainda maior, e as remessas de cerca de US$5 bilhões por ano para suas famílias atenuou as seqüelas da queda do salário médio. Pesaram, também, como sempre, os fatores históricos – mais ou menos invariáveis – como os medos “atávicos” herdados geração após geração, e que remetem ao baixo nível de organização independente do povo brasileiro. A terrível herança da escravidão, as seqüelas de uma insegurança social crônica, o sentimento de inferioridade de uma maioria iletrada, a tradição agrária e a inércia cultural, a história de repressão implacável contra as lideranças populares, a manipulação da miséria pelo coronelismo rural e pelo clientelismo urbano, a lumpenização de massas de jovens e o crescimento da delinqüência, todos estes fatores foram e são obstáculos na via da organização da luta dos trabalhadores no campo e nas cidades. As pressões ideológicas das classes dominantes também pesam: enquanto permanecer o controle monolítico burguês sobre os meios de comunicação, sempre poderá renascer a ilusão de que existem saídas individuais para os filhos da pobreza. A ação coletiva baseada nos princípios de solidariedade de classe teve pela frente, portanto, muitos obstáculos. Mas, ainda assim, a responsabilidade do PT, da CUT e da UNE, foi incontornável para explicar a relativa passividade das massas populares antes da eleição de Lula e depois. Acentuar este papel não é um exagero, é uma condição para aprender algo da etapa que se encerra.

A superação da influência de Lula, do PT e da CUT é o maior desafio
A crise do mensalão não inverteu a relação de forças. Os setores mais organizados das massas ainda não recuperaram confiança em suas forças. Decepcionadas, estão retirando conclusões, mas ainda estão inseguras para agir. No entanto, os atos contra Lula organizados pela oposição de esquerda não foram de massas, mas foram maiores que os atos de apoio ao governo. Completados três anos do já distante outubro de 2002, a corrosão do PT na sua base tradicional avança: a maioria esmagadora que o petismo ostentava já não existe nas grandes fábricas metalúrgicas, entre os professores, petroleiros, juventude etc.. E o PT e o bloco CUT/UNE perderam o monopólio das ruas.

Algumas categorias já saíram para greves que desafiaram as políticas do Governo, como os bancários em 2004 e 2005, ou os Correios e o funcionalismo federal, ainda que em greves isoladas. Há desconfiança crescente entre os setores mais organizados do povo, porque a política econômica é reconhecida como uma continuidade da linha neoliberal do governo anterior, ou seja, porque o PT manteve o ajuste fiscal do Estado, e todas as seqüelas a ele associadas. A revelação de um fundo milionário que financiava o PT produziu suspeita tão grande que seus líderes pensam duas vezes antes de expor publicamente. Não poderão voltar a ocupar o lugar que tiveram no passado. Mas, a influência do reformismo não foi enterrada junto com Zé Dirceu.

Nem o reformismo das amplas massas foi superado com a crise do PT, nem o governo Lula acabou, só porque está enterrado num mar de lama. Lula não se apoiava somente no PT. Governos não caem de maduros, são derrubados. Washington já sinalizou que não apoiará um impeachment de Lula. Mas, não porque o imperialismo ou a burguesia brasileira tema, seriamente, uma reação popular em defesa de um “Lula vitimado”. Simplesmente, porque não será necessário, considerando-se a proximidade eleitoral de 2006. Tinham se resignado a aceitar dois mandatos de Lula, e a crise abriu a possibilidade de abreviar a presidência de Lula. A tensão nas alturas voltou a ter as proporções de um conflito cenográfico-parlamentar, com seus vibratos operísticos, seus excessos retóricos, todavia, nos limites da disputa pela sucessão eleitoral. A crise do PT será muito mais grave, por suposto, que a crise do Governo Lula. Este foi, desde o início, um governo de colaboração de classes que incorporava dentro do Ministério representantes dos setores mais influentes da burguesia nacional. A fase de crescimento do ciclo criou uma demanda mundial que beneficiou as exportações, favorecendo uma elevação da arrecadação fiscal, que tranqüilizou a burguesia brasileira de que a administração das dívidas do Estado não teria sobressaltos.

A crise do petismo se desenvolve em ritmos próprios, até vertiginosos, porém, distintos da estabilidade maior ou menor do governo Lula, que tende a flutuar até às eleições. Tem sido argumentado que o PT e seu candidato à reeleição se recuperarão com o impacto das políticas sociais compensatórias. Pode ser que essa base eleitoral – os setores mais desorganizados do povo – que foram os últimos setores sociais a se voltar para Lula em 2002, venha a referendar majoritariamente o PT em 2006, mas esse deslocamento não será suficiente para fechar a crise do petismo.

A dominação burguesa no Brasil sempre se apoiou, eleitoralmente, nos milhões de desesperados que não encontraram um ponto de apoio para se organizarem e defenderem seus interesses. Os grandes proprietários de terras dependeram, historicamente, do clientelismo rural, para assegurarem seu controle do Estado e a classe dominante contemporânea recriou o modelo com o clientelismo urbano. Que o PT tenha se transformado em uma burocracia viciada no financiamento dos monopólios, que procura base eleitoral nos marginalizados dos grotões de miséria, é um sinal de seu colapso, e não de sua recuperação. As eleições internas do PT confirmaram a força da máquina – que pode levar centenas de milhares para votar, mas não para lutar – e reelegeram a direção, confirmando que se trata de um aparelho irrecuperável.

A força do PT estava alicerçada na juventude, nos trabalhadores urbanos, na legitimidade conquistada nas cidades pelos movimentos sociais populares – como o MST – e nas classes médias assalariadas, com alta escolaridade, e salários em queda. Essas forças sociais não se reconhecem mais no Partido de Lula e Zé Dirceu. O desgaste do petismo não significou, contudo, o fim das ilusões reformistas dos setores organizados. Desejam derrotar o neoliberalismo, querem uma outra política econômica que permita um crescimento com distribuição, mais emprego e melhores salários, uma esquerda que não seja corrupta e pusilânime, mas continuam tendo como referência um projeto de reformas do capitalismo. A superioridade do socialismo, inspirada no sentimento popular de justiça e igualitarismo, foi questionada nos anos noventa e ainda não se recuperou. Por outro lado, as massas não têm ainda confiança em suas próprias forças para um enfrentamento frontal com a ordem burguesa. Quinze anos de terrorismo neoliberal – ai de nós, se desafiarmos os limites do capital, porque maldições bíblicas e cataclismos irreparáveis se abaterão sobre nossas cabeças – não passaram em vão, e os patamares de consciência coletiva recuaram. Sobreviverá um espaço eleitoral em 2006 para um programa reformista.

O papel da oposição de esquerda não deve ser o de reforçar estas ilusões. Mesmo não ocorrendo no curto prazo um aumento qualitativo da influência das idéias socialistas. Mesmo que um discurso anticapitalista possa diminuir a expectativa de votos. A tarefa de unificar os ativistas dos movimentos sociais e PSOL, PSTU, Consulta Popular e PCB nas eleições de 2006 contra Lula e contra a oposição de direita é um dos desafios da superação da direção lulista. Não será um desafio menor erguer, com a CONLUTAS, um instrumento de centralização dos movimentos populares. Enquanto os trabalhadores não recuperarem confiança em suas lutas coletivas, contudo, estas articulações serão somente iniciativas exploratórias. Sem um ascenso da luta de massas não será possível uma superação qualitativa da direção lulista. E os ascensos são condicionados por tantos e variados fatores, que seria temerária qualquer previsão. No entanto, entre eles, pesarão as condições subjetivas, e o papel da esquerda anticapitalista é um dos decisivos. Entretanto, enquanto nos preparamos, ceder à tentação eleitoralista, mimetizando e repetindo a estratégia petista, vinte e cinco anos depois, além de falta de imaginação, semeia conseqüências devastadoras. Não há atalhos por fora da experiência prática de milhões, mas o lugar dos socialistas é estimular a elevação da consciência de classe.

Uma nova situação, uma nova esquerda, uma nova estratégia
O fim da influência dirigente do PT, seja qual for o resultado das eleições de 2006, abrirá uma etapa política nova porque levará ao poder um governo mais fraco que todos os que estiveram em Brasília desde a queda de Collor. Os processos políticos no Brasil, não esqueçamos, são lentos. Mas, a possibilidade no futuro imediato, de canalizar para o calendário eleitoral o desgaste acumulado entre os setores organizados diminuirá. O regime de dominação democrático poderá, todavia, ter estabilidade social e política, se a crise enfraquecer qualitativamente a CUT, a UNE e o PT? Admitindo-se a possibilidade de um segundo mandato, quando a perspectiva de uma recessão mundial será muito plausível, Lula conseguiria manter a paz social? Um PT na oposição, após uma derrota de Lula, poderia cumprir o mesmo papel que nos anos noventa? Estas perguntas remetem á questão decisiva, ou seja, saber se estamos ou não caminhando na direção de uma situação revolucionária.

Parece uma ironia da história, mas não se pode deixar de observar que quando o capitalismo brasileiro crescia com taxas significativamente elevadas, como nos anos sessenta e setenta, a burguesia recorreu à ditadura, acossada pela onda de entusiasmo que a revolução cubana alimentou. Nas últimas décadas, que coincidem com quatro eleições presidenciais sucessivas – um recorde para padrões brasileiros – a economia capitalista brasileira perdeu seu impulso de desenvolvimento, diminuíram as concessões às massas, e não ocorreram reformas. O ano de 2005 passará para a história brasileira como o ano do colapso do PT: uma crise que se manifesta não mensalão, mas tem como pano de fundo a incapacidade de realizar reformas progressivas, mesmo se beneficiando de uma fase de crescimento mundial.

Por enquanto, a perspectiva do calendário eleitoral parece ser suficiente para enquadrar o mal-estar social. As incertezas nas pesquisas já são uma sinalização de uma margem de imprevistos maiores. Quando o humor das massas se transformará em exasperação? É importante considerar que o colapso do PT não foi detonado por uma onda de mobilizações de massas contra Lula. Mas, se é verdade que os batalhões mais organizados entre os trabalhadores não quiseram a derrubada de Lula, não é menos significativa, também, a revolução mental que muitos milhões estão realizando. Uma expectativa de um quarto de século desmoronou. A crise mortal do PT não significa, porém, que Lula não poderá ter uma votação importante no ano de 2006. Não poderá mais ser, contudo, o Partido que detinha um quase monopólio da representação política da classe trabalhadora. O fascínio que o PT despertava entre os ativistas mais corajosos ou mais capazes, e o encanto que a liderança de Lula – mesmo perdendo três eleições seguidas – alimentava no país, desapareceram. Um enorme espaço político se abriu e será duramente disputado. O PMDB foi destruído durante o governo Sarney, mas, nem por isso, deixou de existir e até de ter muitos votos. Ainda é um grande partido parlamentar, mesmo sem qualquer identidade política e com força regional residual.

No entanto, as ilusões na reforma do capitalismo só poderão ser superadas pela experiência prática da falência do reformismo, e a comprovação de que os métodos revolucionários são superiores, portanto, mais eficazes. Estas são as duas condições, e se condicionam mutuamente. Só o fracasso reformista levará a consciência a retroceder ao estágio da sobrevivência individual ou descrença na ação coletiva. A determinação revolucionária de luta só poderá se afirmar através de um grande ascenso. Um dos maiores perigos abertos pela crise do PT é cair na tentação de reeditar o projeto – seja tentando depurá-lo por dentro, ou replicá-lo por fora – mantendo o mesmo programa reformista, e conservando as mesmas táticas. Em poucas palavras, se preparar para as eleições, mesmo que dizendo o contrário, e não para as lutas que virão.

Políticas sociais compensatórias são insuficientes para manter a ordem
A priorização da ação direta só é coerente, todavia, quando se trabalha com o prognóstico de que virão grandes lutas, e se escolhe um terreno. Se a previsão é de que a economia mundial poderá ter um ciclo longo de expansão, que a demanda de exportações permitirá um crescimento do Brasil, que as políticas compensatórias manterão um apoio majoritário ao governo, seja petista ou tucano, que os setores organizados não irão além de lutas defensivas, então, a estratégia revolucionária parece catastrofismo.

A social-democratização do PT no Brasil só pode ser compreendida, plenamente, inclusive a adesão ao ajuste fiscal neoliberal e a revelação de um fundo ilegal de dezenas (ou centenas) de milhões para financiar as campanhas eleitorais de 2002 e 2004, quando inserida em uma perspectiva mais ampla. A esquerda latino americana, salvadas as exceções, rompeu com toda a tradição marxista, na verdade, rompeu até com seu passado. Podem ter sido as pressões de ascensão social, combinadas com a restauração do Leste, ou as ilusões campistas de que a URSS era uma retaguarda estratégica. O que é indissimulável é que o destino das organizações nacionalistas guerrilheiras na Nicarágua, em El Salvador ou no Uruguai não foi menos desanimador que o PT: Sandinismo, Farabundo e Tupamaros seguiram a mesma dinâmica. De pontos de apoio para a luta popular, se transformaram em “cavalos de Tróia” dentro dos movimentos sociais.

Nos anos setenta, a socialdemocratização do PCI na Itália foi a ante-sala do eurocomunismo, a primeira etapa do transformismo que culminou na adesão ao programa da Terceira Via. Um dos perigos da forma, admitamos, pitoresca ou bizarra da bancarrota do PT, desmoralizado pelo mensalão das legendas de aluguel, pelos dólares nas cuecas de assessores parlamentares, pelos brindes, como o Land Rover de seu secretário geral, pelas conexões caribenhas nos paraísos fiscais – uma máquina eleitoral que desmorona quando se comprova o seu financiamento pelos monopólios capitalistas, e sabe-se lá por quem mais – é que obscureça as lições mais estratégicas da falência do projeto que definiu como eixo político ordenador a acumulação de forças na institucionalidade, ou seja, o “método alemão”, na citação de Rosa Luxemburgo na epígrafe deste artigo.

Na América Latina, a decadência econômico-social tem dimensões continentais e um significado de conseqüências históricas, mesmo se considerarmos que o Brasil conseguiu preservar a sua condição de sub-metrópole atraindo, comparativamente, mais investimentos – e se favorecendo da desindustrialização da Argentina e região andina – sem que as condições de vida da população tenham deixado de se deteriorar, ou a desigualdade tenha diminuído. A economia capitalista mundial perdeu, há três décadas, o impulso do pós-guerra. A restauração capitalista não abriu uma etapa de prosperidade como trombetearam os entusiastas dos ajustes neoliberais. Muito ao contrário, a Rússia vive ainda hoje as seqüelas de uma contração de seu PIB, de tal proporção que a destruição só poderia ser comparada à de uma guerra.

No último ciclo de crescimento entre 1992 e 2000 – que já foi moderado quando comparado com as décadas dos anos cinqüenta e sessenta – só os EUA se beneficiaram pelo processo de acumulação do duplo déficit comercial e orçamentário, um processo somente possível em função do lugar do dólar no mercado mundial, enquanto Europa e Japão andavam de lado. 2005 ficará como o ano em o mundo viu, assombrado, Paris a arder. As políticas sociais focadas têm se revelado insuficientes para preservar, indefinidamente, a ordem do regime democrático. Talvez seja um atrevimento do nosso olhar pretender, desde o Brasil – um país da periferia – procurar uma nova explicação para um processo que foi internacional, e já tem uma dimensão histórica. Mas, por outro lado, a crise dos regimes democráticos na América Latina talvez nos ajude a ver, antecipadamente, o que pode estar se desenhando como uma tendência internacional.

O álibi da relação da forças desfavorável
Voltamos de novo ao tema da relação política e social de forças, e a projeção de que expectativas alimentamos em relação ao futuro. Instabilidade maior ou menor dos regimes democráticos nos próximos anos? A argumentação que procura justificar o fiasco do Governo Lula como produto de uma relação de forças internacional adversa, ou do refluxo no Brasil, não tem sustentação. O governo Lula sucumbiu diante do imperialismo e da burguesia brasileira como produto de uma estratégia política consciente. Não triunfou nenhuma revolução socialista no mundo, depois que os EUA foram derrotados no Vietnam, mas daí não se pode concluir que a dominação imperialista se exerce, em 2005, nas mesmas condições da situação reacionária de dez anos atrás. O foco mais agudo da resistência à dominação imperialista, nesse intervalo, foi o Médio Oriente. Mas os governos cúmplices do ajuste recolonizador na América Latina se desgastaram até o limite do desmoronamento, ao ponto de vários ex-presidentes – Salinas, Menem, Cubas, Fujimori – terem sido presos ou se encontrem foragidos.

Os marxistas polemizaram entre si até à exaustão sobre os critérios para aferição das relações sociais de forças. Existiram, grosso modo, dois grandes campos. Os que priorizavam os fatores objetivos, como o percentual de trabalhadores filiados aos sindicatos, a influência das publicações socialistas, as votações nas eleições, ou até mesmo a proporção de trabalhadores assalariados sobre o total da população economicamente ativa, e os que valorizavam os fatores subjetivos, como o nível de atividades sindical das massas, a disposição de luta para greves e manifestações.

O primeiro critério, no entanto, de apreciação da relação de forças sempre foi, inconteste para todos, a maior ou menor estabilidade do regime burguês de dominação. Se considerarmos a evolução política da América Latina, nos últimos anos, parece incontroverso que os regimes democráticos viram as suas instituições seriamente questionadas pelas mobilizações de massas em vários países. Já vimos que dez presidentes não completaram seus mandatos. A argumentação da relação de forças adversa tem sido o álibi dos que pretendem justificar as incríveis políticas reacionárias do Governo Lula – como o ajuste fiscal ainda mais severo que o dos tucanos, a liberação dos transgênicos, o envio de tropas para o Haiti, entre tantas outras – explicando que não era possível outro caminho. Já tinham explicado as espantosas alianças eleitorais porque, supostamente, não havia outro caminho. O financiamento das campanhas eleitorais pelos monopólios era necessário, também, porque, afinal, não havia outro caminho. O fatalismo se transformou em uma doutrina política.

Acrescentam os defensores de Lula que a expressão máxima da relação de forças desfavorável seria a queda do padrão de vida dos trabalhadores, mesmo nos países imperialistas. O desemprego crônico, a queda dos salários médios, a redução dos serviços públicos de educação, saúde, previdência, entre outros indicadores, seriam a demonstração da força do Capital. Entre os inúmeros critérios de medida da relação de forças, a imaginação marxista nunca tinha esgrimido o alarmante argumento do padrão de vida dos trabalhadores. Admitamos que pode ser justo acusar os marxistas “de tudo”, menos de falta de imaginação. Quando o capital foi capaz de fazer concessões aos trabalhadores afirmava a sua fortaleza, não sua fraqueza. É justamente porque a economia capitalista mundial está em crise crônica de longa duração que as margens de negociação entre os países do centro e da periferia, ou entre as classes dentro de cada país, se reduziram. A previsão de queda do padrão de vida médio das massas referenda o prognóstico de uma maior instabilidade dos regimes democráticos, quando se esgotar a atual fase de crescimento do ciclo.

As pressões que explicam a adaptação à democracia burguesa
Por último, olhemos o fundo do poço sem medo de vertigem. O calendário eleitoral do regime democrático burguês exerce, há pelo menos cem anos, uma força de pressão terrível sobre todas as organizações revolucionárias. No Brasil, de dois em dois anos há eleições, e se cria a ilusão de que se pode mudar a vida mudando o partido que está no Governo. Em maior ou menor medida, a agenda das organizações que reivindicam o projeto socialista se adaptou à preparação das eleições: adaptação às exigências jurídicas da legalização, levantamento de fundos, escolha de candidatos, utilização da televisão, formação de comitês de apoiadores, eleição de deputados, controle de gabinetes, deslocamento de quadros, e tudo o mais que vem depois com a necessidade de renovação de mandatos. São raríssimos os partidos que conseguiram sobreviver a essas pressões. Nenhuma organização, nem aquela que muitos consideram a mais revolucionária do século XX – o bolchevismo russo – passou incólume a prova da democracia burguesa, nos breves meses que separaram fevereiro de outubro em 1917. Ou sucumbiram, ou se dividiram, ou surgiram lutas políticas tremendas em seu interior.

Estas pressões são complexas. Em primeiro lugar, estão as pressões do Estado. A democracia convida os partidos a esperar sua hora de chegar ao poder acumulando votos. São os partidos que governam. Mas, a tradição marxista defende que as organizações socialistas não aspiram o poder para si. Os revolucionários se educam no desapego de todos os cargos, antes e depois da revolução. Esse foi o exemplo dos comunnards, de Lênin e de Trotsky. Sua vocação é ser instrumentos úteis de formação e centralização de lideranças para que os trabalhadores construam o poder operário e popular. São os organismos das massas que devem se preparar para a insurreição. São os trabalhadores que impõem sua vontade e devem governar, e os revolucionários defenderão suas propostas nos órgãos que as massas reconhecerem como os seus.

Depois, estão as pressões que vêm das próprias bases sociais da esquerda revolucionária. Em uma situação não revolucionária, a maioria dos trabalhadores e da juventude não deseja uma revolução. Não têm disposição para ações revolucionárias, porque estão dominadas pelo medo. A mentalidade das massas se constrói a partir de experiências defensivas, que são o terreno das lutas de classes por reformas que esperam, diminuam o seu sofrimento, sem um desafio frontal do sistema. Seu universo de referências é uma tradição política herdada e uma experiência precedente. A luta pela revolução exige, portanto, o combate às ilusões de que as reformas são possíveis. Mas, não se refutam ilusões somente com argumentos. Não há forma de superar ilusões na colaboração de classes, senão batalhando pelas reformas que serão, na melhor das hipóteses, vitórias parciais e efêmeras. Só a luta por reformas poderá provar que não são possíveis conquistas duradouras.

Os revolucionários devem lutar por reformas, muito mais seria e incansavelmente, que os reformistas, para demonstrar que não defendem outros interesses senão os das massas. Não defendem a revolução porque são exaltados ou irascíveis. A revolução é necessária porque sem a luta pelo poder, não é possível investir contra a propriedade privada. Nisso se resume o combate socialista: a luta pelo poder dos trabalhadores para destruir o capital e socializar a riqueza. No entanto, ironia da vida, estas conquistas somente transitórias e passageiras para as massas, podem permitir aos líderes importantes sucessos: posições à frente de sindicatos e cargos parlamentares que são menos provisórios. Não há reformas duradouras para as massas, mas pode haver uma vida próspera para os dirigentes.

Conter as pressões sociais e políticas que conduzem à adaptação não parece simples: intervenção permanente nas lutas e defesa incondicional da resistência proletária à exploração; rodízio de militantes que assumem as profissionalizações, inclusive dos parlamentares, liberados sindicais e permanentes mantidos pelos partidos; disposição para a ação e organização legal, semi-legal e ilegal contra o Estão burguês; compromisso internacionalista ativo; emulação coletiva pela valorização dos organismos sobre os talentos dos indivíduos; formação cultural, teórica e programática da militância para assegurar condições de controle das lideranças; rotação de quadros e de tarefas para evitar a aquisição de hábitos burocráticos; regime interno democrático com estímulo ao esclarecimento das diferenças e crítica dos acordos consensuais. A crise de estratégia da esquerda marxista contemporânea é a crise do “método alemão”, a adaptação à rotina sindical-parlamentar, portanto, aos limites da legalidade do regime.