Surgem com uma nova etapa

O conteúdo contra-revolucionário

Diferentes formas

Nenhuma incompatibilidade com o regime

Forma e conteúdo

Ante-sala do bonapartismo e do fascismo

A chave da Frente Popular


Apresentação

O texto que publicamos neste encarte trata-se, na verdade, da primeira parte do “O Governo Mitterrand, suas perspectivas e nossa política”, escrito em 1981, por Nahuel Moreno, sob o pseudônimo de Miguel Capa.
Esta primeira parte trata, essencialmente, do caráter de classe e da análise histórico-social da Frente Popular. A segunda parte, que será publicada posteriormente, tratará da análise e caracterização do governo Mitterrand e da política proposta por Moreno para os trotskistas franceses.

Esperamos que o presente trabalho sirva para que nossos simpatizantes e leitores identifiquem e compreendam as bases teóricas que fundamentam nossa análise, caracterização e política diante do governo Lula.

 


No movimento trotskista mundial, preocupados em capitalizar as grandes possibilidades revolucionárias existentes na França, todos concordamos em definir o governo Mitterrand como uma Frente Popular. Quer dizer, um governo no qual os partidos operários colaboracionistas de classe ocupam ministérios e um lugar predominante. Neste caso a presidência e a maioria das pastas ministeriais.

Trotsky escreveu centenas de páginas sobre estes governos. Analisou-os inclusive em países cujo caráter semicolonial impunha algumas modificações nos tipos historicamente surgidos nas nações avançadas e imperialistas.
Concedeu tanta importância ao tema que alertou: “Na realidade, na nossa época, a Frente Popular é a questão principal da estratégia da classe proletária” (1).

Recordar os ensinamentos do trotskismo sobre a Frente Popular é então fundamental. É o que dará coerência a um debate sobre Mitterrand.

Esquematizamos em sete pontos o pensamento de Trotsky sobre o assunto:

  • O governo frente-populista sempre coincide com urna etapa superior da luta de classes.
  • É um tipo diferente de governo burguês.
  • Tem um claro conteúdo contra-revolucionário.
  • Apoiado nas organizações operarias conciliadoras, pode adotar distintas formas e dentro de certos limites, responder a diferentes circunstâncias da luta de classes.
  • Não tem, por si mesmo, nenhuma incompatibilidade com o regime capitalista-imperialista.
  • Seu propósito é desmoralizar e desmobilizar os trabalhadores, conduzindo-os a maiores sofrimentos ou a derrotas históricas.
  • É um produto objetivo da crise de direção revolucionaria do movimento operário, mas oferece ao trotskismo a maior, talvez a única, oportunidade para superá-la.


    Surgem com uma nova etapa

    Os governos frente-populistas são conseqüência de uma vitória eleitoral ou revolucionária das massas e implicam em uma derrota equivalente da burguesia e de seus partidos mais representativos.
    Aquela vitória e esta derrota inauguram na luta de classes uma nova etapa, superior à “normal” anterior. Ela tenderá a ser pré-revolucionária, se a vitória foi meramente eleitoral, ou evolucionária, se existirem grandes greves, ocupações de fábricas, e mobilizações de massas nas ruas.
    Em qualquer caso, a nova etapa coloca perspectivas de fortes embates, insurreições e a conquista operária do poder assim como o seu contrário: guerra civil e golpes bonapartistas ou fascistas.

    Numa situação “normal” – por exemplo, na França antes de Mitterrand subir ao poder – o governo é exercido pelos partidos burgueses, enquanto que as organizações que se reivindicam da classe operária, apesar de serem agentes dos exploradores, permanecem fora do governo, atuando na oposição.
    Mas o triunfo operário e a derrota burguesa debilitam ou provocam diretamente a crise do regime. Os exploradores vêem-se obrigados, então, a integrar no governo os seus agentes contra-revolucionários, especialmente os dirigentes social-democratas e stalinistas que “normalmente” estão fora do aparato governamental.
    Em primeiro lugar, isto é possível porque, obviamente, as direções traidoras compartilham da mesma preocupação e objetivo da burguesia: desviar o ascenso operário, agora a partir do governo. E também porque têm o apoio e a confiança das massas, o que lhes permite serem úteis na sua nova posição.
    Isto origina um tipo de governo burguês, frente-populista ou operário-capitalista, que estabelece uma relação completamente diferente, “anômala”, com a consciência, tanto das massas trabalhadoras como dos capitalistas. Antes, os trabalhadores odiavam o governo – o governo Giscard d’Estaing, por exemplo. Agora consideram o de Mitterrand seu próprio governo. Do mesmo modo, a burguesia, que considerava o governo de Giscard “seu” governo, agora encara Mitterrand como seu “adversário” ou “inimigo”.



    O conteúdo contra-revolucionário

    A Frente Popular coloca em prática uma política contra-revolucionária que, quase sempre, possui três facetas: a desmobilização dos trabalhadores, o apoio ao seu próprio imperialismo (nos países metropolitanos) e a defesa do Estado burguês,de sua burocracia e especialmente da sua coluna vertebral: a hierarquia reacionária das Forças Armadas.
    Sobre o primeiro governo frente-populista que apareceu na história, o de Kerensky, Lênin disse o seguinte: “Precisamente, o que é verdadeiramente contra revolucionário é o Governo provisório, que os defensistas querem defender”(2). E o Programa de Transição sublinha que os governos frente-populistas e fascistas são os “últimos recursos” do imperialismo “na luta contra a revolução proletária”(3).
    A desmobilização operária realiza-se mediante a confusão e o engano sistemático, a um nível que não está ao alcance de um governo burguês “normal”. A Frente Popular tenta fazer com que as conquistas arrancadas pareçam concessões gratuitas ou iniciativas do próprio governo. Os ministros fazem-nas parecer realizações programáticas das operárias, concretizadas sem necessidade de lutar. Quando não querem concedê-las, culpam algum funcionário do governo anterior e pedem às massas que tenham “paciência”.
    O apoio ao seu próprio imperialismo tem uma razão social: defender encarniçadamente as migalhas da exploração colonial e semicolonial, de que se alimentam a aristocracia operária e a pequena-burguesia. Daí que os governos frente-populistas tenham sido os campeões da exploração e repressão das colônias e semicolônias cio seu imperialismo.
    Sobre o governo de Kerensky, Lênin dizia: “… está atado de pés e mãos ao capital imperialista, à política imperialista de guerra e de rapina”(4). E nos mesmos termos, Trotsky cansou-se de denunciar os governos de Blum e Largo Caballero-Negrín.
    Nos países atrasados, esta característica pode mudar. Refletindo as burguesias nacionalistas, surgem em certas circunstancias combinações frente-populistas com traços anti-imperialistas. Salvador Allende foi um exemplo. Mas também aqui se confirma a lei geral de que a Frente Popular é um “ultimo recurso” contra a revolução proletária, que pode preparar, como no Chile, a vitória cio fascismo.
    O que sintetiza a substância contra-revolucionária de todos os governos frente-populistas é a sua atitude perante o aparato de Estado burguês, as Forças Armadas e a burocracia estatal.
    Precisamente quando o regime começa a se quebrar e a se enfraquecer, e as hipóteses sobre enfrentamentos decisivos, golpes contra-revolucionários e guerras civis fazem arte da análise de todos os setores, eles defendem sistematicamente a casta de oficiais e a estrutura burguesa e imperialista das Forças Armadas.
    Trotsky dizia:
    “…o governo de Frente Popular quer dizer, o governo de coligação dos operários com a burguesia é, na sua própria essência, o governo de capitulação ante a burocracia e os oficiais. Esta é a grande lição sobre o que aconteceu na Espanha, paga hoje, por milhares de vidas humanas”(5).
    E, também, a trágica lição de Salvador Allende, que garantia o “profissionalismo” dos militares e tirava fotos ao lado rio Pinochet, para convencer as massas a confiarem nos oficiais.

    Diferentes formas

    Os governos frente-populistas são formados por uma aliança das organizações operárias contra-revolucionárias e um setor da burguesia.
    A partir desta definição geral abre-se um leque de combinações que determinam diferentes formas de frentes populares. nas quais se mantém a essência contra-revolucionária, respondendo, como veremos, a diferentes situações sociais.
    Se fizéssemos um resumo histórico da Frente Popular desde o começo da revolução socialista internacional, cm 1917, poderíamos apreciar essa diversidade de tipos e circunstâncias.

    No inicio dos anos 20, a Terceira Internacional de Lênin e Trotsky considerou-os, em bloco, kerenskistas, burgueses, contra-revolucionários e, definidos pela participação da social-democracia, acompanhada ou não no governo pela burguesia.
    Em 1935, o stalinismo introduz um elemento decisivo nesta história, quando impõe como estratégia mundial de todos os partidos comunistas uma “nova” política, batizada com o nome de Frente Popular. Trata-se de toda uma teoria para impedir que surjam governos operários de ruptura com. a burguesia. Junto com a teoria do “socialismo num só país”, que o stalinismo tinha “inventado” antes, são as duas teorias políticas mais contra-revo1ucionárias da nossa época, formuladas em nome do movimento operário.

    Até então, a Frente Popular ainda não tivera nome próprio. Existia como prática empírica, em escala nacional, e reservada para situações excepcionais – guerra e revolução – dos partidos social-democratas. Não tinha sido generalizada e nem elevada à condição de estratégia geral por nenhum desses partidos e nem pela Segunda Internacional. Com toda sua podridão oportunista, eles recolhiam votos e tentavam chegar sós ao governo, resistindo durante anos a efetuar, como político sistemática, alianças governamentais com a burguesia. Foi o stalinismo quem institucionalizou o principio sagrado de que um partido operário não deve governar sem a burguesia, convertendo a social-democracia, neste nefasto terreno, em discípula sua.
    Como conseqüência, ampliaram-se os tipos e circunstâncias em que apareceram os governos de colaboração de classes.

    Desde então a variante “clássica” mais conhecida é a que inclui no governo os partidos operários, stalinistas e ou social-democratas, em maioria ou minoria, cm relação ao setor burguês. Quando o stalinismo participou com ministros, os governo sempre foram extremamente instáveis, críticos e de curta duração.
    Mas Trotsky estudou outras formas de Frente Populares. Há uma na qual os organismos operários participam no governo indiretamente, através de partidos únicos, como na Primeira etapa de Chian-Kai-Shek na China, e nos de Plutarco Elias Calles e Lazaro Cárdenas, no México. A estes podemos acrescentar o de Perón na Argentina. São a “Frente Popular em forma de partido”(6).

    Estes governos frente-populistas conseguiram estabilizar-se durante períodos mais ou menos longos. Nos casos do México e da Argentina, houve ascensos de massas muito fortes, que colocaram a Possibilidade da revolução proletária, mas sem o marco de uma crise crônica generalizada nem crise econômica aguda, o que lhes permitiu manterem-se várias décadas no México e mais de cinco anos na Argentina.
    Outros dois tipos de governos de colaboração de classes escapam à definição estrita de Frente Popular, mas num sentido mais amplo – como o que aplicaram Lênin e Trotsky – deve-se reconhecer que funcionam como tais. São variantes que alcançaram, em vários casos, uma estabilidade relativa muito acentuada. Uma dessas variantes é a dos governos burgueses que não incorporam as organizações operárias no gabinete ministerial, mas subsistem graças a sua colaboração por meio de pactos frente-populistas. Foi o caso do governo Roosevelt, nos Estados Unidos. com seu “New Deal”, e o do “Compromisso Histórico” do Partido Comunista Italiano, para sustentar a Democracia Cristã no poder.

    A outra é a dos governos de partidos operários sem participação burguesa, como vimos na Inglaterra. Áustria, Austrália, países nórdicos, Portugal, etc.

    Mais recentemente apareceu uma nova modalidade de governo operário-burguês. Referimo-nos ao estabelecido em países coloniais como Angola e Moçambique. Onde a guerra de guerrilhas pela libertação nacional desmantelou o Estado burguês, sem que o imperialismo pudesse restaurá-lo, pela ausência de uma burguesia sólida que lhe servisse de intermediária. Nos casos mencionados, o stalinismo aproveitando-se do seu relativo peso econômico no mercado mundial e aplicando sua política de ganhar a confiança do imperialismo — tomou a seu cargo a tarefa de restaurar o Estado e assegurar as relações de produção capitalistas. Apareceu assim, por esta via, um governo stalinista-burguês. O imperialismo é beligerante frente a eles, mas não lhes declarou uma guerra de extermínio. No caso, teve que aceitar sua própria impotência e reconhecer que o stalinismo ou o castrismo “é um fator de ordem”.

    Este Fenômeno, de recente aparição, deve fazer-nos relativizar ou ser cuidadosos com o manejo da lei geral, verificada até hoje, pela qual a presença stalinista num governo burguês provoca imediatamente a fúria do imperialismo.

    Nas formas “clássicas” da Frente Popular participa uma ala burguesa (não toda a burguesia, já que não é um governo de unidade nacional). O resto da burguesia permanece fora: beligerante, tolerante ou, muitas vezes, cúmplice e na expectativa.
    O partido ou frente burguesa da Frente Popular pode ser importante, como o Radical no governo de Blum, ou ser aparentemente insignificante, a “sombra” da burguesia, como nos governos republicanos da Guerra Civil Espanhola e no de Mitterrand.
    Neste caso, os capituladores da Frente Popular defendem que não é necessário agitar a tradicional palavra-de-ordem trotskista Fora ministros burgueses, já que estes não têm nenhum peso.

    Trotsky respondeu que em todo acordo sempre predomina o mais reacionário, fora do âmbito ou ação da sua força e número. A aliança mantém-se porque é feito o que ele exige, sob pena de romper o acordo.

    Por isso, os Largo Caballero, Negrín e Mitterrand incluem esses ministros para poder dizer às massas e às alas esquerdas dos seus partidos: não podemos adotar tal medida progressiva porque eles se opõem e, se romperem, perdemos a unidade com a classe média.

    Uma expressão particular da profundidade ela crise da burguesia francesa é que Mitterrand teria muitas dificuldades para utilizar este argumento, já que o PS tem nas suas mãos os poderes da presidência e junto com o PC, sem seus aliados burgueses, uma maioria absoluta.


    Nenhuma incompatibilidade com o regime

    Por si mesmos, os governos frente-populistas ou operário-capitalistas social-democratas não são, de modo nenhum, incompatíveis com o regime capitalista-imperialista. A coligação social-democrata liberal que governa há tempos a Alemanha ou a repetida alternância dos trabalhistas ou social-democratas nos governos da Inglaterra, Austrália e países nórdicos, são prova concludente disso.

    A burguesia utiliza e aceita o incômodo dos governos social-democratas e de frente popular (assim como do bonapartismo e do fascismo), sempre que lhe assegurem a continuidade da exploração e acumulação capitalistas. Também é necessário recordam aqui, para depois nos referirmos especialmente a isso, que a presença do PC no governo quase sempre foi um elemento agudo de crise.

    A última coisa que é verdadeiramente incompatível com o capitalismo é a aparição impalpável, quase volátil, situação de duplo poder. Esta não pode ser tolerada nem um minuto pela burguesia. Decreta a morte de qualquer forma de governo burguês – frente-populista, operário-capitalista, democrático-parlamentar, bonapartista ou fascista – que seja incapaz de controlar, com seus diferentes métodos, o poder operário. Foi o que ocorreu com salvador Allende quando no Chile surgiram os cordões industriais e os primeiros movimentos de soldados e sob-oficiais contrários à hierarquia das Forças Armadas.

    Quando a burguesia e sua casta militar se decidem e podem desencadear o golpe contra–revolucionário, arrasam o duplo poder, a classe operária e os governos frente-populistas ou operários burgueses.

    Isto confunde muitos marxistas, que julgam que a incompatibilidade está entre a forma frente-populista do governo e o regime burguês ou imperialista. Na realidade, o que os capitalistas não podem digerir é o ascenso revolucionário do proletariado e seus órgãos de poder, que geralmente se intensificam sob aquelas formas de governo.
    Julgamos que alguns teóricos marxistas, dignos do maior respeito, se enganam ao estudar o conteúdo das Frentes Populares, acreditando que sempre estão determinadas por uma crise aguda, inclusive revolucionária. Defendem que sempre seriam instáveis e que sua única finalidade seria a de atuar como “último recurso” contra uma revolução operária presente. Com esta linha de argumentação, tentam demonstrar que o governo frente-populista é, em curto prazo, sempre incompatível com o capitalismo e com seus regimes relativamente estáveis, o democrático-burguês e o bonapartista com formas parlamentares.
    No entanto, esta posição teórica reconhece que os governos operários-capitalistas da Alemanha, de certos países nórdicos, da Austrália e da Inglaterra comportam-se de outra forma: são relativamente estáveis, ainda que em certas circunstâncias sejam também um “último recurso” contra a revolução. Afirmam que cada forma de governo sempre reflete relações especificas entre as classes (forma = Frente Popular; conteúdo = crise revolucionária), como se isto fosse uma verdade eterna, metafísica.
    No entanto, logo têm que negar essa lei, que pretendem universalmente válida, quando falam dos governos operários-capitalistas tipo Inglaterra, Alemanha, etc. Aqui admitem que a lei não se cumpre. Com efeito, eles mesmos dizem que às vezes esses governos refletem situações de estabilidade burguesa e outras vezes, uma revolução operária em ação. Dito de outro modo, uma mesma forma de governo (operário-capitalista, social-democrata ou trabalhista) não corresponderia a uma relação especifica entre as classes, podendo refletir diferentes circunstâncias. Diferentes e até opostas, como são a estabilidade social e a revolução.
    Como sempre, o pensamento mecânico leva a um beco sem saída.

    Forma e conteúdo

    Em primeiro lugar, devemos dizer que as formas, as superestruturas dos fenômenos sociais, existem com uma relativa autonomia das relações de classe que lhes deram origem. Aquelas, geralmente, subsistem com conteúdos diversos. Outras vezes acontece o contrário: as formas superestruturais adiantam-se às relações sociais, jogando um papel preventivo.
    A relação entre a forma ou superestrutura e o conteúdo ou relação entre as classes, apresenta deste modo, contradições agudas.
    Devemos esclarecer que estamos nos referindo às relações a médio ou curto prazo (vinte, dez ou menos anos), não às que se estabelecem no longo tempo de urna época histórica. O estancamento das forças produtivas, a crise capitalista e a revolução socialista originam a crise de todos os sistemas de dominação burguesa e burocrática, sem exceção, e são a causa determinante e absoluta.
    Mas aqui estamos considerando as coisas em outra escala, não histórica e sim política. E nesta dimensão, as relações entre forma e conteúdo aparecem extraordinariamente complicadas.
    Podemos dizer que uma das características do período revolucionário é a contradição e crise permanente entre formas e conteúdos. Longe de apresentar-se uma correspondência unívoca entre cada forma de governo (e, em geral, das superestruturas) com urna situação específica da luta de classes, ocorre o oposto: um complexo e mutável calidoscópio no qual, de uma forma desigual no qual, de uma forma desigual e combinada, se estabelece uma dialética de forma e conteúdo, altamente contraditória.
    Existem infinidades de exemplos. O Partido Bolchevique, como forma partido, perdeu todo o conteúdo revolucionário leninista e encheu-se de um conteúdo contra-revolucionário stalinista. Quer dizer, não refletiu sempre a mesma relação específica entre as classes. A forma superestrutural do proletariado de Outubro conservou-se, mas passou a albergar a nova burocracia.
    De igual modo, um governo bonapartista é a forma nela qual a burocracia estatal capitalista se eleva acima da sociedade. No entanto, pode observar-se também em sociedades de conteúdo tão diferente como a escravista ou a operária burocratizada (Trotsky definiu o cesarismo como o bonapartismo da Antigüidade e caracterizou o stalinismo como bonapartismo operário degenerado).
    Um exemplo particularmente notável é o já citado, dos governos operário-capitalistas especialmente o da social-democracia alemã: a mesma forma correspondeu a relações de classe radicalmente diferentes. Em 1918, desempenhou o papel de “último recurso” contra-revolucionário, enquanto que hoje, e já há vários anos, governa com uma situação relativamente estável.
    Poderíamos prosseguir longamente. Por exemplo, um mesmo sindicato pode ser revolucionário numa etapa e contra-revolucionário em outra.
    Dentro deste jogo infernal e contraditório das superestruturas e das relações de classe, existem, evidentemente, certas leis:
    Todo o regime pode prolongar-se muito mais que as relações de classe ou as circunstâncias que o originaram. Os regimes são mais resistentes que os governos, e estes, mais resistentes que as mudanças nas relações entre as classes.
    Enquanto que os regimes – estrutura das instituições do Estado – se mantêm seus governos – partidos e líderes que manejam essas estruturas – podem mudar. Assim, a V República revelou-se muito mais resistente que o governo De Gaulle e este, por sua vez, mais resistente que a brusca modificação nas relações de classe que provocou a grande mobilização de 1968.
    De igual modo, o regime franquista sobrevive na monarquia de Juan Carlos. enquanto que as circunstâncias da luta de classes que o originaram, mudaram completamente.
    Claro que estas mudanças não deixaram os regimes imunes: estes entram em crise. Assim, o regime franquista, para sobreviver, tem de conviver apelando à colaboração de classes com os partidos operários traidores, sob a monarquia.
    Por isso, em primeira instância, definir um governo é definir uma forma. uma relação política. O frente-populismo é a forma em que co-governam os aparatos contra-revolucionários com um setor político da burguesia. Do mesmo modo, a forma operário-capitalista pode ter diferentes conteúdos, abrangendo distintas relações entre as classes.
    Geralmente é uma forma relacionada com uma crise revolucionária, como “último recurso” contra ela. Mas o seu espectro é muito mais amplo, da mesma maneira que a estreptomicina – “último recurso” contra a tuberculose aguda – nem sempre é utilizada contra esta moléstia. Muitas vezes é utilizada contra formas não agudas da mesma doença e também em outras infecções.
    A presença dos partidos comunistas nestes governos sempre provocou grandes contradições com a burguesia e o imperialismo. Isto se deve a que o stalinismo não está organicamente ligado ao imperialismo (como a social-democracia) ou às burguesias nacionais (como as burocracias sindicais). Os partidos comunistas são agentes diretos do Kremlin e só indireta e historicamente do imperialismo e das burguesias. Por isso mesmo, são servidores instáveis e condicionais: sua atitude depende da relação que os exploradores mantenham com a URSS.
    O imperialismo norte-americano, à escala mundial, e as burguesias, em cada país, os admitem em seus governos só em situações muito críticas ou consideradas como tais, e tratam de se desembaraçar rapidamente de sua presença. Querem que eles colaborem de fora.
    Provavelmente, enquanto os partidos comunistas continuarem sendo agentes do Kremlin, os governos frente-populistas que eles integram continuarão sendo altamente críticos, instáveis.
    Não acontece o mesmo quando a Frente Popular é impulsionada e integrada pelos partidos social-democratas e ou as burocracias sindicais. Surgem, então, governos relativamente estáveis, como o da Alemanha, o da Itália (composto pela Democracia Cristã e pelos socialistas), o do México e vários outros social-democratas puros.
    Particularmente, os governos da social-democracia gozam da confiança da burguesia e do imperialismo. Trotsky já tinha antecipado isto:
    “A origem da força dos partidos social-patriotas ou mais exatamente social-imperialistas reside na proteção da burguesia que, através do parlamento, da imprensa, do exército e da polícia, protege e defende a social-democracia contra todo tipo de movimento revolucionário, inclusive contra a crítica revolucionária. Na futura guerra, por causa da agudização das contradições nacionais ou internacionais, esta ligação orgânica entre a burocracia e a burguesia, revelar-se-á de uma forma ainda mais aberta e cínica”(7).
    Resumindo as nossas conclusões: a formação do governo frente-populista ou operário-capitalista social-democrata na apresenta por si mesma qualquer incompatibilidade com o capitalismo. Desde 1917, vimos múltiplos governos destes tipos em circunstâncias que abarcaram desde guerras civis e crises revolucionárias, até situações de estabilidade. Dentro desta variedade, os casos em que a Frente Popular é impulsionada e logo integrada pelos partidos comunistas dão origem a situações instáveis, pela rejeição que a presença dos agentes do Kremlin provoca na burguesia. Mas a única coisa verdadeiramente incompatível e intolerável para o capital são as situações de crise revolucionária e de desenvolvimento do poder dual. Nestes casos, inexoravelmente, ele preparara e tentará desencadear um golpe bonapartista ou fascista, liquidando o duplo poder, esmagando o movimento operário, suas organizações e o governo frente-populista.


    Ante-sala do bonapartismo e do fascismo

    Se a Frente Popular não é derrubada pelo ascenso revolucionário dirigido por um partido como o bolchevique, conduzirá a uma maior exploração e miséria, ou, pior ainda, ao golpe fascista ou bonapartista.
    Trotsky explicou:
    “Ao adormecer os operários com ilusões parlamentares que paralisam a sua vontade de luta, cria as condições favoráveis para a vitória do fascismo. A política de aliança com a burguesia deve ser paga pela classe operária com anos de sofrimentos e sacrifícios, quando não com dezenas de anos de terror fascista”(8).
    Se, na falta de um partido revolucionário, as massas não derem ouvidos à Frente Popular, resistirem à ofensiva burguesa e enfrentarem o governo, as suas lutas também não têm maiores perspectivas. Com a falta de um estado-maior revolucionário, elas não poderão centralizar o combate nem dotá-lo de objetivos políticos claros. Mais cedo ou mais tarde acabarão sendo derrotados. Chegará então a hora dos golpes bonapartistas ou fascistas, do esmagamento sem misericórdia da classe operária e todas as suas organizações, inclusive as que formam a Frente Popular.
    A inexistência ou debilidade do partido trotskista facilita a vitória contra-revolucionária. Mas nunca devemos esquecer que são os partidos traidores que estão no governo que a possibilita, ao desmobilizar e confundir as massas e defender a casta de oficiais do exército burguês.

    A chave da Frente Popular

    O fator objetivo que determina a aparição da Frente Popular é o elemento mais subjetivo do movimento operário, o de sua crise de direção revolucionária.
    O stalinismo, a social-democracia e as burocracias sindicais desenvolvem toda sua dimensão e importância objetivas quando constituem um governo de colaboração de classes, numa etapa revolucionária ou pré-revolucionária. Convertem-se, então, em protagonistas históricos de primeira grandeza, não deixando o sistema capitalista ser varrido pelo movimento operário.
    Mas, contraditoriamente, a etapa da Frente Popular é talvez a única em que se dão todas as condições para superar a crise de direção revolucionária, pois é somente nela que o papel das direções traidoras se torna plenamente visível para as massas.
    A classe vê-se obrigada a enfrentar um governo burguês, formado por suas direções tradicionais. A luta contra a burguesia tem que se chocar inevitavelmente, de forma direta ou indireta, com esse governo. E, mais cedo ou mais tarde, os partidos tradicionais desmascaram-se como inimigos declarados das massas exploradas.
    Trotsky assinalou, desde os anos 20, as grandes oportunidades que o surgimento destes governos oferecem aos partidos revolucionários:
    “O aparecimento da classe operária no poder colocará toda a responsabilidade pelas ações do governo no Partido Trabalhista e dará lugar a uma época de Kerenskismo inglês na era do parlamentarismo, oferecendo um meio favorável, nunca visto antes, para o trabalho no Partido Comunista”(9).
    Da mesma forma, Trotsky apreciou, para a época, na França:
    “Se se materializa um Bloco de Esquerda, já que a antiga carcaça do Bloco Nacional está decrépita, o Partido Comunista surgiria como o único partido de oposição e, em conseqüência, esta mudança seria altamente vantajosa para nós”(10).
    Nunca, como na época da Frente Popular, o trotskismo e as correntes centristas revolucionárias, geradas pelo ascenso revolucionário, têm uma oportunidade maior de superar a crise de direção e organizar um partido revolucionário, com influência de massas. Para conseguir isso, é condição indispensável a vontade revolucionária trotskista de manter-se firme perante as massas como oposição, sistemática. irreconciliável, diária, ao governo frente-populista e seus partidos traidores.


    Notas

    1 Trotsky, Oeuvres, Juin/Juillet, 1936, p. 248. Voltar

    2 Lênin, “Informe sobre uma conspiração“, 1/8/1917. Obras Completas. Tomo XXVI, p. 330. Voltar

    3 Trotsky, Programa de Transição, Ed. Pluma, Bogotá, p.10. Voltar

    4 Lênin, “Primeira Carta à Distância“, In: OP. Cit. Tomo XXIV, p. 343. Voltar

    5 Trotsky, “Premeras Leciones sobre España“, In: La Revolución Española, Ed. Fontamara, 1977, p.57. Voltar

    6 Trotsky, L. – Escritos, Tomo X, Vol. I, p. 95, Ed. Pluma, Bogotá. Voltar

    7 Trotsky, L. – Escritos, Tomo X, Vol. I, p. 65, Ed. Pluma, Bogotá. Voltar

    8 Trotsky, L. – Oeuvres, Juin/Juillet, 1936, p. 277. Voltar

    9 Trotsky, L. – The First Five Years Of The Comunist International, Monad Press, 1972, Tomo II, p. 211. Voltar

    10 Trotsky, L. – The First Five Years Of The Comunist International, Monad Press, 1972, Tomo II, p. 212. Voltar

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