E, ao final, encontra-se a invulgar profecia: «Um belo dia a Esquerda poderá descobrir que sua vitória parlamentar coincide com a sua verdadeira derrota.» (itálicos no original, negritos do autor)

Por Karl Heinrich Marx, “Primeiro Julgamento da Nova Gazeta Renana”, Nova Gazeta Renana (Neuen Rheinischen Zeitung), N.º 221, v.14, Fevereiro de 1849

Em um recente artigo publicado em seu blog pessoal no portal da televisão venezuelana La Nueva Televisora del Sur, ou TeleSUR – “La izquierda y el balotaje en Brasil”, Telesurtv.net, 19/10/2014 –, o cientista político argentino Atilio A. Borón busca “demonstrar o grave equívoco em que se incorreria” caso, diante de um cenário eleitoral de rezingado segundo turno no Brasil, a esquerda, ao invés de apoiar criticamente a candidatura Dilma Rousseff, reivindicasse o voto nulo. Visivelmente consternado por várias divulgações de empate técnico entre PT e PSDB por institutos de pesquisa – tais como o Ibope ou o DataFolha –, o ex-secretário-geral do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales , o Clacso, esgrime uma serie de argumentos e, sobretudo, analogias, históricas e políticas, para respaldar – de alguma forma e em alguma medida – o quê considera como necessidade férrea e, até mesmo, imperativo moral: barrar, já a todo custo, a mais remota possibilidade real de vitória eleitoral do candidato tucano, de Minas Gerais, Aécio Neves. Não fosse a autoridade intelectiva desse pensador latinoamericano, importante referência para o panorama das ciências humanas e sociais no subcontinente, nada haveria de novo sob o Sol. Mas o brado retumbante de Borón se distingue muito de versões menores do voto útil in terra brasilis. Pelo caráter teoricamente invulgar e politicamente honesto Borón convida a uma reflexão crítica, bem-vinda. Antes, porém, é preciso contextualizar in minimum quem é Boron e seu lugar de fala.

Atilio A. Borón se apresenta – em seu blog, na cadeia multiestatal de TV TeleSUR, com sede em Caracas – como, além de um PhD em Ciência Política, pela Universidade de Harvard, um: “argentino de nascença e latinoamericano por convicção.” Em verdade, é mais do que isso. Borón se tornou mais conhecido no Brasil, antes do que por seus artigos e colunas de opinião, de tom mais jornalístico, pela obra teórica nas áreas do pensamento social e político. Sobretudo sua crítica política à democracia realmente existente na America Latina, as controvérsias em que se engajou contra teóricos pós-marxistas, já fossem Laclau e Moffe ou Antonio Negri e Michael Hardt, ou mesmo os livros de divulgação – e comentário crítico –, sobre teoria social e política clássica. Para além das diversas coletâneas que organizou, suas contribuições aos periódicos de reputação internacional de esquerda, como a New Left inglesa ou a Monthly Review dos EUA e diversas outras contribuições significativas, por ora nos basta enumerar a Estado, Capitalismo y Democracia en América Latina; Tras el Búho de Minerva (mercado contra democracia en el capitalismo de fin de siglo) e Imperio & Imperialismo – una lectura crítica de Michael Hardt y Antonio Negri. As publicações de finais dos anos 90 e início do novo século constituíram-se tal uma importante referência crítico-reflexiva de círculos acadêmicos, extra-acadêmicos; marxistas, não-marxistas; mais ou menos afeitos a uma perspectiva de esquerda; já fosse socialista ou não

O intelectual acadêmico – da Universidad de Buenos Aires –, e membro pleno do Partido Comunista da Argentina, não tardou em cativar uma ampla e extensa audiência através de suas conferências, palestras e ensaios; mundo afora. Sobretudo como um analista social e político, mais atento às relações de poder e estruturas de classe movidas e moventes nas mais diferentes formações sociais da America Latina e o Caribe. E, em se tratando de America Latina e Caribe, nunca escondeu suas afeições e convicções políticas e ideológicas, não só pelos regimes políticos de Cuba e Venezuela, mas também pelos diversos governos do que se convencionou chamar por centro-esquerda, como aqueles de Bolívia e Equador ou Uruguai e, mesmo, a própria Argentina. Entusiasta crítico, com otimismo muitas vezes pouco cauteloso, Borón acabou por se deslocar de uma reflexão mais consistente – como a querela filosófica contra o conceito de Empire, de Negri, e/ou a crítica política da democracia não-substantiva, e pro-forma, realmente existente ao Sul do mundo –, contida em seus livros e periódicos de caráter acadêmico, para uma prosa mais leggera e débole, como aquela que circula nos jornais ou blogs com que colabora, já na rede ou fora dela. O exemplo da TeleSUR não poderia ser mais sintomal de um projeto, histórico-político, coletivo. Com sede em Caracas, a TV iniciou em 24 de julho de 2005 – em homenagem ao nascimento de Simón Bolívar – com as participações ativas de Argentina, Bolívia, Cuba, o Equador e o Uruguai. Com quase uma década no ar, a cadeia se propõe a fomentar certa identidade; “antiimperialista”.

Um salto de tigre para trás: do Brasil de 2014, à Alemanha de revolução e contrarrevolução
Antes que assuntar o declínio do pensamento crítico latinoamericano (Osvaldo Coggiola), o rearranjo das relações de forças em presença no subcontinente (Mabel Thwaites Rey) ou o quê se poderia arriscar alcunhar como o campo da narrativa de jornalismo político “neogovernista” nos basta, aqui e agora, apresentar o que se afigurou como a versão mais esclarecida (e já menos raivosa) do senso comum filosófico, histórico e político que embasa as mais diferentes variantes da matriz discursiva que funda às diversas correntes de opinião do voto útil pelo assim-chamado “mal menor”, em seus substratos mais graníticos. O esforço de justificação intelectual e política, empreendido por Borón no artigo supracitado, obteve eco e repercussão em centros de pesquisa e grupos de interesse, nas Americas e na Europa, facilitado pelo maior internacionalismo que lhe confere o idioma castelhano além é claro de ressonâncias e reverberações, em língua portuguesa. Vertido pelo Diario Liberdade, português, e traduzido pelo portal da Consulta Popular, brasileiro, o texto de Borón foi exposto com o título “A esquerda e o segundo turno das eleições no Brasil”. Um pouco menos pressionado pelo poder dos aparelhos e o raio de influência do apparatschik de PT ou PCdoB, Borón foi capaz de uma resposta mais ponderada (e menos instrumental) que as que assumiram a filósofa Marilena Chauí, o jornalista Breno Altman ou o atual secretário-geral do Clacso, Emir Sader. Se a filósofa pediu à militância dilmista disputar o voto nulo “pessoa por pessoa” e o jornalista afirmou que a anulação dos votos “favorece Aécio”; o sociólogo, foi longe.

Não vamos nos deter na análise da pseudopolêmica de Sader com o que ele já chamou de “ultraesquerdismo como doença infantil do comunismo”. Em texto de Alvaro Bianchi (2014) – para o companheiro-de-viagem Blog Convergencia – há material farto para demolir às sandices sociologist-in-chief. Nem pretendemos objetar as tuítadas de até 140 caracteres do agitpropper sádico que primeiro incitou a violência organizada da Gaviões da Fiel contra membros do MTST, chamando os últimos de “vira-latas”, em defesa da Arena São Paulo – vulgo Itaquerão – quando da Copa do Mundo, para depois falar que “nesta altura voto nulo é crime” (sic!). Já não é de-há pouco que Emir Sader se reconverteu naquilo que Serge Halimi nominou “novos cães de guarda” (1998). O gancho periodístico, do passo de Sader a Borón, é tão-só um ponto de contacto entre o fio argumentativo do último e os slogans internáuticos do primeiro: a comparação Aécio-Hitler. O lead publicístico, de “Aecio é (…) insignificante. Mas Hitler também era”, nas redes sociais de Sader, serviu como senha de véspera. No dia seguinte foi publicado o artigo de Borón com a ideia. Com cor sombria e textura dramática Borón pinta o retrato do fuzilamento, logo em seu primeiro parágrafo, de Ernst Thälmann – pelos fuzis das SS nazistas –, em campo de concentração do III Reich. Foi ao dia 18 de agosto de 1944, passados onze anos da conquista eleitoral de Adolf Hitler.

Questões de Tradução ou: nem o PT é a socialdemocracia, nem o PSDB é o nazismo alemão
O tom alarmista percorre os cinco parágrafos de entrada. Muito embora Atilio Borón se apresse em dizer o óbvio mais ululante – que “Aécio não é Hitler” e que o PSDB não é o Partido Nacionalsocialista Alemão dos Trabalhadores (“Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei”) –, a abertura soara forte, o bastante, como para permanecer como seu leitmotif musical de fundo. Segue a (má) tôada. Submetido a regime de “confinamento solitário, cumprindo pena que lhe foi imposta pelo imperdoável delito de ter sido fundador e dirigente máximo do Partido Comunista Alemão …Thälmann era, também, um dos líderes da III Internacional que em seu 7º Congresso – realizado na Moscou de 1928 – aprovara linha política ultraesquerdista de ‘classe contra classe’.” O que se arroga uma tradução dialética, contudo, não é mais que uma operação ideológica de prestidigitação teórica e política. A política acima, baseada em uma análise e caracterização das direções socialdemocratas como “socialfascistas” – “ala esquerda da burguesia capitalista” – foi absolutamente desastrosa para todo movimento comunista internacional sobretudo na Alemanha. A revolução socialista na Europa ocidental, em países como a Itália e o Império Austro-Húngaro, restara condenada ao isolamento da vaga revolucionária mundial com epicentro em Petrogrado. É no mínimo curioso que Borón, sem qualquer rigor teórico e sustentação política, cite au passage Antonio Gramsci e Leon Trotsky. Mais que recursos retóricos; são verdadeiros nomes-de-guerra.

A quadratura do círculo já completar-se-á com a invocação da autoridade dos argumentos de Marx e Engels, por um lado, e Vladimir Lenin e a Internacional Comunista, por outro. De Marx e Engels, Borón extrai a famigerada passagem – do Manifesto do Partido Comunista, de 1848 – donde se lê que: “os comunistas não formam partido à parte, oposto a outros partidos operários … Os comunistas só se distinguem dos demais partidos proletários quando … destacam e fazem valer os interesses comuns a todo o proletariado, independentemente da nacionalidade; e … nas diferentes fases do desenvolvimento pelas quais passam as lutas entre o proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto”. Baseados em um determinado momento do desenvolvimento histórico-político do movimento dos trabalhadores, Marx e Engels sugeriam uma série de palavras-de-ordem democrático-radicais, sobretudo para o proletariado alemão. O nexo unidade-diversidade, entre comunistas em particular e trabalhadores em geral, contudo, nem de longe era um reducionismo esquemático. Situado historicamente entre o “já-não-mais” de revoluções democráticas burguesas e o “ainda-não” de revoluções socialistas proletárias, a organização dos trabalhadores refletia suas formas de consciência social e política. Lenin, por sua vez, é evocado a partir do slogan – “Às Massas” –, que sintetiza o 3º Congresso do Komintern, e tal o estratega político da hegemonia proletária, sobre os grupos sociais subalternos.

O amálgama de ideias/programas, bem como de teorias/conceitos distintos, é igualmente catastrófico em teoria e/ou política. No caso, o que a suposta erudição marxista de Borón busca é tão-só uma coisa: fazer um sinal de igual entre a fórmula política de frente única, defendida por Lenin e Trotsky nos primeiros congressos da Internacional Comunista, e secundada por Gramsci, desde o cárcere fascista, e a “teoria dos campos” expressa na ideia-programa de frente popular, votada em 1935 – diante da “meia-noite do século” – em pleno regime stalinista. Sobre a fórmula política de frente única, em Antonio Gramsci e Leon Trotsky, duas referências bibliográficas são fundamentais: o ensaio “Estado e Revolução no Ocidente”, de Perry R. Anderson, e o livro Os Prismas de Gramsci, de Marcos T. Del Roio. Para o cotejo das formulações de Trotsky, objeto do primeiro, e Gramsci, estudo do segundo, a leitura d’O Laboratório de Gramsci: filosofia, história e política (Bianchi, 2008) é nada menos do que essencial. Como se trata de uma teoria da ação revolucionária atual e vigente – a frente única –, deixaremos a sua enunciação para o final. Mais do que letra morta, utilizada para justificar manobras históricas ou filosóficas, a fórmula política é não só necessária quanto, tanto mais, urgente para enfrentar aos dilemas das esquerdas. Em oposição diametral a isso, como a sua negação ahistórica e antidialética, figura a perspectiva política contrarrevolucionária de frente popular, síntese programática do organizador de derrotas.

De uma vez por todas ou: qual é o sentido passado e o significado presente da frente popular?
O 7º e tardio Congresso de 1935 é o qual irá adotar a ideia-programa das frentes populares. Marx já afirmou que a tradição de todas as gerações mortas oprime, “como em um pesadelo”, o cérebro dos vivos. É o que parece ocorrer com as esquerdas brasileiras. Tal qual uma maldição, o espectro do stalinismo assombra socialistas do Brasil. Livrar-se dos crimes do regime ou do culto à personalidade, tal como uma condenação moral ao fantasma de Stalin, não significou romper, politicamente, com uma ideia-programa, fundamental, de seu corpo doutrinário. A estratégia política da frente popular foi o que autolimitou à construção de uma hegemonia alternativa, obstaculizou à afirmação de uma concepção total de mundo e, ao fim e ao cabo, contribuiu para a ascensão político-ideológica da ofensiva neoliberal contra o movimento de trabalhadores no país. Na Moscou de 1935 aprovar-se-á, como sugere Borón, uma verdadeira guinada política. As teses sectárias dos anos anteriores vão ser deixadas de lado, e, da mesma forma, a identificação entre socialdemocracia e socialfascismo, o que tanto auxiliara à ascensão de Hitler. Em seu lugar aprovar-se-ão teses em que mais do quê frentes únicas proletárias, em unidade de ação com dirigentes socialdemocratas eram agora aceitas, e eram propostas frentes unitárias antifascistas. Como registra, a resolução aprovada, o oportunismo político tomará o lugar do ex-esquerdismo

 “Na medida em que o governo de frente (…) tome medidas verdadeiramente decisivas contra magnatas financeiros contrarrevolucionários e seus agentes fascistas (…) o partido comunista apoiará totalmente o governo.” (Degras, 1971) Por detrás desse verniz marxista e revolucionário deixava-se antever a proposta, propriamente stalinista, da constituição de frentes e até mesmo governos além dos limites da classe do trabalho e seus aliados histórico-políticos. A reconversão destas resoluções em política prática esclareceu o quê, histórica e concretamente, acarretou na subsunção real do movimento dos trabalhadores aos novos aliados entre a burguesia capitalista. Particularmente ilustrativo é o exemplo do Partido Comunista Francês. O PCF não mediu esforços para constituir uma frente popular com a seção francesa da Internacional Dois-e-Meio, o partido socialdemocrata de Leon Blum e o decadente Partido Radical. A vitória eleitoral do governo frentepopulista foi coetânea e coextensiva a uma magnífica onda de greves operárias que sacudiu todo o país. Com a radicalização política, um dirigente da esquerda revolucionária, Marceau Pivert, chegou a afirmar que “tudo era possível.” Mas o órgão central do PCF afirmava o contrário, isto é, “a ordem, a calma, a tranquilidade e sem precipitações [revolucionárias] completamente inúteis (…) Não! Nem tudo é possível!”. (Guitton, 1936). Nada poderia ser mais emblemático de como Borón expõe a distinção entre os PCF e Marceau Pivert de ontem e de hoje.

Para não assustar os novos aliados – leia-se: magnatas financeiros e proprietários em geral – o PCF, inexoravelmente, voltou-se, e brutalmente, contras as lutas e as manifestações. Seus líderes falavam sobre a necessidade de “conduzir bem movimentos reivindicatórios”: como sinônimo de “saber terminá-los”, e antônimo à “conquista do poder”. A gradual subordinação da frente popular às frações burguesas do bloco no poder de Estado, ao invés da acumulação de forças sociais e políticas, viu deteriorar-se sua base de apoio, afastando explorados e oprimidos. Menos de um ano após o que foi uma vitória eleitoral adveio a sua derrota real, com a derrubada do presidente Leon Blum sem nenhuma resistência extraparlamentar ao golpe de Estado imposto. A pressuposta lição histórico-política de Borón – [Adolf] Hitler e Leon Blum são diferentes – é autoevidente. Mas por trás do óbvio esconde-se o verdadeiro e valioso aprendizado: o PCF foi a antessala da reação – com Maurice Thourez – e a Gauche Révolutionnaire, de Pivert, seu oposto. “Em um caso [Hitler] tratava-se de déspota sanguinário, fervoroso anticomunista, que submeteria o país e toda a Europa a um banho de sangue; e no outro, tratava-se de um primeiro-ministro socialista, líder da Frente Popular, que acolhia alemães e italianos que fugiam do fascismo e que se opôs, sem sucesso – para a desgraça da humanidade –, aos planos de Hitler.” A comparação política proposta pelo autor – Hitler/Blum; PSDB/PT – desarma ipse literis à crítica de esquerda. Ocultar, o posicionamento da oposição de esquerda, é o mesmo que esconder, à revolução social.

Ontem e hoje consente quem cala: um belo dia a esquerda descobrirá sua verdadeira derrota
A teoria dos campos contida nessa estratégia contrarrevolucionária não tem nada de novo. Trata-se de larga e vasta tradição inserida – desde sua gênese – no movimento dos trabalhadores. A ideia-programa das frentes populares é nada mais e nada menos que legítima herdeira das mais diversas correntes de opinião tais como o possibilismo francês, o revisionismo alemão, o menchevismo russo e, por fim, o stalinismo histórico-mundial que, pela primeira vez, logrou a exposição metódica e sistemática desse acúmulo político-social, de múltiplas determinações e as mais diversas relações, intrínsecas a experiências históricas francamente contrarrevolucionárias. O stalinismo político-teórico nada mais é que a universalização-internacionalização, em termos globais, de uma impostação programática afeita a ideias tais quais a concepção de revolução “por etapas”, a teoria do “socialismo em um só país” e, ao fim do dia, o nó górdio da rationale de conciliação de classes, que é a pedra-de-toque da “frente popular”. Nesta concepção dualista da política lê-se fascismo onde antes os mencheviques russos diziam czarismo e, nas versões mais avançadas da América Latina e Caribe, lê-se antiimperialismo onde antes se lia fascismo. Mas os passos atrás foram tantos, recuo a recuo, que agora até mesmo pós-neoliberalismo, é dizer muito. A ideia-programa de frente popular fez escola no Brasil. Com fôlego extraconjuntural, para além da Segunda Guerra Mundial, o Partido Comunista Brasileiro abafou as greves durante a ditadura empresarial-militar e falava a mesma linguagem – frentepopulista clássica – já com o camarada Prestes vis-à-vis o general Dutra: “evitar provocadores”; “contra os agitadores”; “paz e ordem”.

A tradição frentepopulista foi legada do PCB ao PT, e faz parte da teoria e do programa de todas as organizações do Foro São Paulo: a Internacional espiritual da conciliação de classes na America Latina e o Caribe. É a unidade na diversidade entre castro-chavistas, grande parte de partidos socialistas e comunistas atuais do Cone Sul e a maior porção das entidades andinas e caribenhas que compõe os novos governos de centro-esquerda no tempo presente. Não é outra a razão da defesa ilustrada de Atilio A. Borón, do PCA, para o voto útil em um partido político e uma coalizão de governo que constituiu, segundo o próprio autor, “deplorável capitulação ante as classes dominantes do país, [incapacidade de] compreender a gravidade da ameaça imperialista cozida sobre o país – o mais rodeado de bases militares norteamericanas de toda a América Latina! – e abandono de seu programa original”. Pôr de pé um programa antirrevolução passiva, de uma oposição de esquerda, socialista e antifrentepopulista, tem na tática política do voto nulo em Segundo Turno não mais que um começo. O rearranjo da relação de forças no subcontinente deu lugar a deslocamentos de placas e rupturas tectônicas que nos exigem uma avaliação a sério do quadro socioeconômico e político-ideológico do Brasil e da America Latina. O que já muitos analistas estão chamado de “onda conservadora”, e Borón associa, irresponsavelmente, ao quê seria um processo histórico de fascistização politicista trata-se de um fenômeno que se pode ver em muitos países da região, com diferenças internas, por exemplo, Bolívia e a própria Argentina.

Com o fascismo não se debate, combate-se-o.” É o famoso dístico do único dirigente do movimento comunista internacional que organizou teórica e politicamente um combate coetâneo e sem quartel contra as duas maiores ameaças ao movimento dos trabalhadores que a história já nos mostrou, a saber, o stalinismo e o nazifascismo. A perspectiva política da frente única é uma necessidade histórica real onde e quando se faz preciso fazer do marxismo revolucionário e do internacionalismo proletário o vocabulário corrente do movimento dos trabalhadores de um país que assiste uma ofensiva do capital contra o trabalho; e Trotsky sabia disso. Desmascarar o que são as sucessivas capitulações de dirigentes neorreformistas e neostalinistas impõe ao conjunto do movimento não só táticas e métodos, mas estratégias e programas. Uma política profana que se disponha a refundar a existência e mudar o mundo redunda, necessariamente, em organização. E organização quer dizer a reconstrução de polo político-social – com movimentos e sindicatos, centrais e partidos, grupos/indivíduos – das classes sociais oprimidas e combatentes. O fracasso neste intento redundará, mais uma vez, em profecia cumprida: em não-tão-belo dia poder-se-á descobrir que a vitória eleitoral, da “frente popular”, condiz com a derrota real, da frente única. Contra o mal maior do fascismo mundial o PCB dos anos 40 apoiou política de unidade nacional com Getúlio Vargas. Contra o mal maior da reação política o PCB chamou o apoio político ao general Dutra. Contra o mal maior da linha dura o PCB foi contra a criação do PT e da CUT – aos gritos de ultraesquerdismo, sectarismo e divisionismo – na luta contra a ditadura brasileira. E contra o mal maior PT e PCdoB, no segundo turno, exigem um voto acrítico em Dilma Rousseff.

Enfim, uma ou duas coisas sobre tradução
O mal maior da vez é, supostamente, o neoliberalismo hardpower e a escalada direitista que, mutatis mutandis, o mesmo governo de coalizão liderado pelo Partido dos Trabalhadores afirmou e consolidou. A crise de hegemonia vivenciada nos tempos contrapostos de economia e política viu nascer as jornadas de junho, uma reorganização sindical e popular, ondas focais de greves operárias de base e diversas manifestações sociais e políticas de massas; país-afora. Um novo desafio foi lançado à esquerda política anticapitalista e aos movimentos sociais de combate. Alea jacta est: o rubicão foi cruzado. Como já disse inúmeras vezes um bom e velho camarada-em-armas; é preciso lutar, é possível vencer. O que o mouro alemão disse práxis revolucionária é a reunificação entre o fazer e o saber que só uma classe pode garantir, impulsionar e organizar. Mãos e cabeças à obra coletiva. Por fim, uma ou duas coisas sobre tradução. É de espantar que um autor de idioma castelhano escolha escrever Izquierda e não Izquierdas; pois é justamente o espanhol a língua que permite anunciar a Esquerda, no plural: Esquerdas. Os muitos significados e razões para a tal distinção política, contida em palavra já tão polissêmica/plurissígnica quanto Esquerda, ficarão para outra ocasião. Antes de terminar; uma anotação rápida. Balotaje, do Fr. Ballottage, é um galicismo que quer dizer segundo turno entre candidatos sem quantum maximus. A raiz de Ballot é itálica. Pallote/palla = Bolota/bola, referente às bolinhas usadas para se votar. A ironia é que Palloteggio/ballottage é, trocadilhando às bolas da vez, uma pelotudez de boludo! A esquerda de Balotaje – ou a esquerda de segundo turno – não logrará ousar para além das urnas.

Referências

BIANCHI, Alvaro. “Por que Emir Sader fracassou?”: <blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1904>, Blog Convergencia, 11/01/2014.

BORÓN, Atilio A. “La izquierda y el balotaje en Brasil”: <www.telesurtv.net/bloggers/La-izquierda-y-el- balotaje-en-Brasil-20141019-0002.html>, Telesurtv.net, 19/10/2014.

COGGIOLA, Osvaldo. “A agonia da tradição crítica brasileira e latinoamericana”. CM : SP, N.º20, 2005.

DEGRAS, Jane (ed.). “Extracts from the Resolution of the Seventh Comintern Congress on Fascism,  Working-Class Unity and the Tasks of the Comintern”, In: The Communist International. 1919-1943  Documents. London : Frank Cass, 1971, v.3, p.365.

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HALIMI, Serge. Os novos cães de guarda. SP : Vozes, 1998.

*MARX, ENGELS. Marx-Engels Collected Works (MECW). NY : International, 1975, v.8., p.304.

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TROTSKY, Leon. “Ernst Thälmann’s twenty-one mistakes”. The Militant, v.5, N.º39, 24/09/1932, p.4.