A Assembleia Nacional de Cuba anunciou o novo projeto de Constituição para o país. O fato que mais chama a atenção é justamente a abolição do termo comunismo.

D., do POI-Rússia

A Assembleia Nacional de Cuba anunciou o novo projeto de Constituição para o país. O fato que mais chama a atenção é justamente a abolição do termo comunismo. A modificação do artigo 5 da Carta substitui os “altos fins da construção do socialismo e o avanço até a sociedade comunista” por “a construção da sociedade socialista”.

As interpretações se dividem. A burguesia mundial está em festa, pois vê finalmente a formalização da restauração do capitalismo, acompanhada de maiores facilidades para os investidores externos, com mais garantias constitucionais ao direito de propriedade. De quebra, para dourar a pílula, apresenta o relaxamento da repressão contra a população LGBT expresso no projeto como exemplo da suposta liberdade que acompanharia o “abandono do comunismo”. Propagandeiam a mentira de que a restauração do capitalismo trará finalmente a tão desejada liberdade ao povo cubano. Se calam sobre o fato de que a restauração do capitalismo trouxe de volta à ilha somente a liberdade para o capital, ou seja, a exploração, miséria, degradação dos serviços públicos, prostituição e todos os males do capitalismo.

Os estalinistas/castristas e seus satélites, por sua vez, teimam em afirmar que tudo não passa de uma “adaptação léxica” aos “novos tempos”, às transformações que já vem acontecendo na sociedade cubana há vários anos, mas que estas mudanças “estão encaminhadas a preservar a vigência da Revolução”. Usam também o relaxamento da repressão aos LGBTs como mostra do “avanço ao socialismo”. Tentam esconder que no novo Artigo 5, a tal “construção da sociedade socialista” se refere ao “socialismo chinês”, ou seja, com mercado e propriedade privada, e portanto com sua irmã gêmea, a exploração. O que não é socialismo coisa nenhuma, é somente uma definição propositadamente confusa da cúpula castrista para turvar o debate. O mesmo que Gorbachev fazia ao restaurar o capitalismo na ex-URSS, dizendo que o fazia para defender o socialismo e os ensinamentos de Lenin. Ou que faz o PC Chinês com o tal “modelo chinês de socialismo”, ou o que já fazia Tito ainda nos anos 70 na antiga Iugoslávia. Escondem também que no auge do estalinismo, quando este reinava absoluto em um terço da humanidade, a comunidade LGBT, como todas as minorias e dissidências, sofriam duríssima repressão, sendo enviadas a campos de concentração ou assassinados. Quando os estalinistas falam em “preservar a vigência da Revolução” se referem exclusivamente a preservar os seus privilégios, ou seja, à manutenção da ditadura do PC Cubano, dirigindo uma Cuba já capitalista.

Miguel Díaz-Canel, atual Presidente cubano, com Raúl Castro, ex-Presidente e líder do Partido Comunista

Mentiras e confusão, é tudo o que se poderia esperar dos estalinistas, responsáveis diretos pela restauração do capitalismo em todos os países em que um dia se havia desapropriado a burguesia e realizado um primeiro movimento no sentido de contruir um novo mundo, sem exploração, e por isso mesmo sem mercado nem propriedade privada. São os velhos burocratas dos PCs que se tornaram os oligarcas e governantes russos e do leste europeu. São os ditadores e bilionários chineses que impõem o maior indice de exploração do mundo sobre as costas da classe operária chinesa, que produz por salários de fome para as grandes coorporações capitalistas multinacionais instaladas no país, garantindo seus lucros enormes. São os que mentem descaradamente sobre as revoluções síria e ucraniana, justificando a repressão e o seu afogamento em sangue. São os que defendem a repressão de Nicolás Maduro e Daniel Ortega contra os povos venezuelanos e nicaraguenses, cujo único pecado é lutarem por melhores condições de vida. E são, afinal, os que restauraram o capitalismo em Cuba.

A esquerda que vai a reboque

Infelizmente, da parte daquela esquerda que, pelo menos em palavras, não poderia ser chamada de estalinista, a reação tem sido seguir a reboque, mais ou menos envergonhado, da mesma interpretação. De que “o governo cubano faz tudo o que está ao seu alcance no marco de uma situação difícil” com a tal “onda reacionária” que percorre o mundo; que “é só uma mudança de termos e que segue a defesa do socialismo na Carta”. Outros dizem que sem dúvida é um retrocesso, mas que “não está colocada no horizonte a restauração total do capitalismo na ilha”. E os mais envergonhados simplesmente… silenciam! Como se o tema fosse incômodo! Será porque dizer a verdade, ou seja, que o estalinismo é inimigo da classe operária, agente da restauração capitalista em todos os Estados onde governou, sem nenhuma exceção, atrapalha sua tática/estratégia de “unir a esquerda”?

Estalinismo

Pois estalinismo é sim sinônimo de restauração do capitalismo. Surge ainda nos anos 1920 do século passado como produto da morte da vanguarda operária russa no front e o cansaço dos trabalhadores após os efeitos devastadores combinados da 1ª Guerra Mundial, ocupação estrangeira e Guerra Civil, todas voltadas a afogar em sangue a jovem república soviética nascida da Revolução Russa. Essa grave situação interna se combinou com a derrota da revolução na Alemanha e demais países europeus, isolando a Rússia revolucionária, o que permitiu a consolidação da burocracia estalinista. Assim que levantou a cabeça, essa burocracia começou sua tarefa de desgaste, isolamento e enfraquecimento do jovem estado operário, reprimindo cada vez mais o debate político no interior do país, desmoralizando a revolução e os revolucionários e desmobilizando os trabalhadores. Ao ganhar força, já nos anos 1930 perseguia e assassinava os revolucionários que denunciavam suas traições. No início da 2ª Guerra Mundial fechou acordo com Hitler e ao final desta mesma guerra dividiu o mundo com os imperialismos americano e inglês, garantindo assim a estabilidade capitalista do pós guerra. Já nas décadas de 50, 60 e 70 atuaram contra as revoluções chinesa, iugoslava, cubana, salvadorenha, nicaraguense, angolana, moçambicana, entre outras. Nas últimas quatro conseguiu deter o movimento antes de que as burguesias destes países fossem desapropriadas, salvando o estado burguês. Nas três primeiras foi diretamente contra o movimento revolucionário, que só chegou a desapropriar as burguesias de seus países e avançar à construção de estados operários por se negarem a seguir as orientações do Kremlin. O que não impede estes campeões do engano e da mentira de falsificarem a história e se apresentarem como os líderes e heróis destas revoluções. E finalmente chegaram aos planos diretamente restauracionistas com Tito no início dos anos 1970, Mao Tse Tung no final dos anos 1970, Gorbachev nos anos 1980 e os Castro no início da década de 90.

Fim das ilusões

A atual alteração da Constituição Cubana somente coroa este processo e joga por terra as ilusões daqueles que consideravam que em Cuba poderia ser diferente. Não, não poderia. Trotski já alertava nos anos 1930 que só havia duas possibilidades: ou a classe operária realizava uma nova revolução que derrubasse a burocracia mesquinha e contrarrevolucionária, devolvendo o poder para as mãos dos trabalhadores e dando novo fôlego à luta pela revolução mundial e destruição do imperialismo, ou a burocracia estalinista necessariamente seguiria corroendo as bases dos Estados operários, cedendo mais e mais ao imperialismo, até chegar a restauração capitalista, como forma de preservar e ampliar os seus privilégios. A única chance portanto de que a história cubana fosse diferente da que se deu na URSS e na China seria se os trabalhadores e o povo cubano se livrassem da burocracia castrista com todos os seus privilégios, realizando para isso uma verdadeira revolução, tomando em suas mãos o poder e o usando a seu serviço e não a serviço dos interesses mesquinhos de uma casta privilegiada que há muito vive de parasitar a revolução cubana.

Muitos ativistas honestos de esquerda seguem se aferrando em defender que Cuba (ou a Coreia do Norte) se mantém, apesar de tudo, como um estado operário. Que no Leste Europeu o capitalismo sim foi restaurado, na Rússia também, mas com várias contradições e conquistas do povo que se mantém, que na China o processo é mais contraditório, que em Cuba há elementos de restauração mas segue sendo um estado operário e que na Coreia do Norte sequer processo de restauração houve. Alertamos que o empirismo é um mau guia. Não é com contabilidade de empresas públicas e privadas que se “calcula” se o capitalismo já foi restaurado ou não. O processo de restauração foi um processo global.

As razões profundas para a restauração capitalista residem na impossibilidade de construir o “socialismo num só país”, quando o imperialismo tem ao seu dispor as forças produtivas de todo o planeta. Residem na existência de uma burocracia parasitária a frente destes Estados, interessada somente em aumentar mais e mais seus privilégios, tendendo por isso à colaboração com o imperialismo. Residem no isolamento destes estados devido a mesma estratégia reacionária de “socialismo num só país”. Se em Estados fortes e ricos como a ex-URSS e a China a restauração era inevitável sem uma revolução política que destronasse a burocracia, origem de todas estas contradições e problemas, porque acreditar que em Estados muito mais débeis e atrasados, como Cuba e Coreia do Norte, poderia ser diferente?

A empresa Aéroports de Paris (ADP) vai operar o aeroporto internacional José Martí, em Havana, recentemente privatizado.

A atual modificação da constituição tampouco é “um passo mais em direção à restauração”, como se esta ainda não tivesse ocorrido. Em Cuba, desde os anos 1990 se acabou com a propriedade coletiva de tudo o que pudesse ser lucrativo, como o turismo, a indústria do tabaco, do rum e do açúcar. Seguiu estatal o que não interessava, serviços de saúde e educação, que já foram orgulhos da revolução cubana, hoje totalmente sucateados. Desde os anos 1990 se legalizou o investimento estrangeiro, a liberalização da importação e exportação, abrindo as portas à reentrada do capital imperialista em Cuba para fazer o que bem entendesse, como em qualquer outro país latinoamericano.

Diferenças no processo de restauração

Há sim duas diferenças importantes entre a restauração capitalista em Cuba e nos demais ex-Estado operários que às vezes confundem o debate. Uma que em Cuba seguem as contradições (cada vez menores, é verdade) com uma parte da burguesia americana, a ex-burguesia cubana exilada em Miami. Esta não quer simplesmente a restauração do capitalismo, que de fato já ocorreu. Quer também de volta suas propriedades expropriadas pela revolução. Coisa que a burocracia/burguesia castrista obviamente não está disposta a fazer. É uma disputa entre duas burguesias pela propriedade que um dia os cubanos julgaram que seria sua. É o que explica o bloqueio (criminoso e reacionário) americano à ilha. Mas que não impede os negócios com as burguesias do resto do mundo, especialmente as canadense e espanhola (muitas vezes como testas de ferro de capital americano). Um relaxamento relativo do bloqueio vem sendo negociado, pois os EUA, apesar dos gusanos de Miami, não querem ficar de fora deste bom negócio.

A outra diferença é menos discutida. Em Cuba, ao contrário da Rússia por exemplo, se mantiveram uma série de restrições à formação de uma nova burguesia cubana autóctone, independente em algum grau do controle do PC. A burocracia castrista não quer disputar o poder na ilha com “oligarcas a la Rússia” e prefere manter todos os grandes negócios em suas mãos, ou associada diretamente ao capital internacional. Por isso não há restrições a entrada de capitais externos na ilha, onde espanhóis e canadenses fazem a festa, assim como os altos burocratas do estado a eles associados. Mas aqueles cubanos que tentam um negócio próprio, os chamados “cuentapropristas”, sofrem sérias restrições aos seus negócios. É toda uma política do estado para impedir a formação de uma burguesia autóctone independente do PC Cubano, que pudesse desenvolver ambições políticas.

Esse processo se explica por duas razões: pelos interesses da burguesia de estado surgida das entranhas da burocracia castrista que não quer dividir seus ganhos e poder com uma burguesia nacional “independente”, e porque em Cuba o processo de restauração do capitalismo se deu combinado com outro processo, o de recolonização do país pelo capital externo. O processo de restauração do capitalismo em Cuba é tão covarde que sequer permite a formação de uma burguesia própria, a não ser que associada desde o nascimento ao capital imperialista externo. Neste sentido, Cuba não só se converteu num novo país capitalista, a exemplo da Rússia e China, mas desde o início num novo país capitalista colonial, ao qual é negado até mesmo o “direito” de formar uma burguesia própria.

Significa isso tudo que a situação em Cuba é sem saída?

Não, de maneira alguma. Significa sim que não se pode ter nenhuma ilusão de que haverá algum “renascimento” do socialismo pelas mãos da burocracia castrista. E nem tampouco alguma ilusão de que a restauração do capitalismo trará alguma liberdade à ilha. A única saída está nas mãos da classe trabalhadora cubana, que terá de fazer uma nova revolução. Não só para se livrar da burocracia restauracionista, como para novamente expropriar a nova burguesia, oriunda do PC Cubano e do capital internacional. A Revolução Cubana ao seu tempo inspirou gerações e gerações de revolucionários por toda a América Latina e ao redor do mundo. Suas conquistas, como o fim da fome, do analfabetismo e o acesso universal à saúde pública de qualidade até hoje ainda são lembrados. A onda de solidariedade foi tamanha que os EUA em mais de 50 anos nunca conseguiram ocupar militarmente a pequena ilha para restaurar à força o capitalismo e suas propriedades. Uma nova revolução, que além de recuperar estas conquistas ainda afirmasse a liberdade política na ilha e a luta pela revolução mundial, seria seguida por uma onda de solidariedade ainda maior e teria grandes possibilidades de se estender pelos países da América Latina, entregues todos eles à brutal expoliação conjunta por suas burguesias nacionais associadas ao imperialismo. Seria uma chama de esperança em um continente já há muito conflagrado e com grande experiência de luta. Em nenhum lugar está escrito de antemão que não se poderia vencer!