John Coltrane
Reprodução

No dia 17 de julho, completam-se 40 anos da morte de um dos maiores jazzistas do século XX. Apesar de sua curta vida – o saxofonista morreu aos 40 – seu trabalho foi intenso e deixou um legado de clássicos que permanecem até hoje como modelos para os músiAlém de ser um dos saxofonistas mais cultuados da história, John Coltrane foi sem dúvida um dos músicos mais importantes e intensos do século passado. Ao todo, gravou mais de 100 LPs, entre discos solos e parcerias clássicas, como as que realizou com Miles Davis, Duke Elington, Thelonious Monk, Sonny Rollins e muitos outros grandes músicos do jazz. Cada um dos seus discos expressou os períodos da sua carreira marcada por uma rica e ousada diversidade.

Nascido no dia 23 de setembro de 1926, em Hamlet, na Carolina do Norte, Coltrane começou a tocar como profissional em 1947, depois que deixou o serviço militar onde se apresentava com a banda da Marinha. Em seguida, o músico assume o instrumento que o consagrou – o saxofone tenor – e passa a tocar em várias “big bands”, como eram chamadas as grandes orquestras. Foi aí que conheceu músicos como o trompetista Dizzy Gillespie.

No entanto, foi apenas a partir de 1955 que alcançou o refinamento musical que o tornou um dos maiores saxofonistas da história ao lado de ícones como Charlie “Bird” Parker e Lester Young. Foi nesse ano que ele recebeu um convite do já famoso trompetista Miles Davis para integrar o que seria um dos maiores quintetos da história do jazz: o Miles Davis Quintet.

De 1955 a 1960, Coltrane fez parte do histórico quinteto, participando de discos memoráveis como Cookin`, Relaxin`, Steamin`, Workin`, (gravados numa incrível maratona de apenas um ano), Milestones e Kind of Blue. Esse último é o álbum de jazz mais vendido de todos os tempos. É importante ressaltar que, nessa época, o jazz era uma música popular dos negros norte-americanos, vista muitas vezes com desdém por parte das elites brancas do país. Somente depois de muitos anos criou-se o mito de que o jazz era “música para as elites”.

A grande fase musical de Coltrane contrastava, porém, com um período muito difícil da sua vida pessoal. Viciado em heroína, Coltrane foi demitido e recontratado duas vezes por Davis, em 1956 e 1957. Porém, ao mesmo tempo em que enfrentava uma dura luta contra as drogas, entre as idas e vindas com Miles, o saxofonista gravou alguns discos com o pianista Thelonious Monk e aproveitou para alçar vôo próprio gravando o seu primeiro disco como líder de banda, o Blue Train. As “locomotivas” do álbum tornaram-se imediatamente um marco do estilo “hard bop” da época e impulsionaram outros álbuns que mostravam que, mesmo o fabuloso Quinteto de Miles tinha se tornando pequeno para tanta explosão de talento. Algo que foi reconhecido pelo próprio Davis em sua autobiografia.

Em 1959, o esforço solista de Coltrane no álbum Giant Steps, colocou o músico no devido lugar na história do jazz e gerou ondas criativas no universo musical. Giant Steps trouxe importantes transformações melódicas e harmônicas para o jazz, algo que se repetiria em vários discos depois que Coltrane deixa o Miles Davis Quintet para montar o seu próprio grupo com o pianista McCoy Tyner, o baixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones.

Em 1960, Coltrane lançou outra obra-prima, My Favorite Things, que introduziu um novo período na sua carreira, marcada por um som minimalista, hipnótico e solos longos. Em seguida lançou outra obra revolucionária, o álbum Impressions (Impressões, 1961).

Uma revolução musical
Ao contrário do que reza a lenda, Contrane não era um músico levado puramente pela “inspiração”. Bastante estudioso e com grande apetite para aprendizado, Coltrane sempre tentou ter uma grande disciplina para o trabalho. Ao final de sua vida, seus parceiros diziam que ele chegava a ensaiar mais de 12 horas por dia.

Tal dedicação o levou a uma exploração inédita da música. Desenvolvendo um estilo próprio e embarcando numa profunda radicalização da harmonia, foi capaz de literalmente “desconstruir” temas melódicos para deixá-los irreconhecíveis. Um exemplo disso foi quando gravou a música Bahia de Ary Barroso, em 1958. Ou, ainda, as muitas versões para My Favorite Things (algumas que duram mais de 20 minutos), uma simples valsa tocada por um sax-soprano, considerado um instrumento ultrapassado para o jazz da época.

No entanto, foi em 1964 que Coltrane gravou o que é considerado o seu maior disco: a suíte em quatro movimentos A Love Supreme. Influenciado por uma forte espiritualidade, este álbum abre as portas para o pisicodelismo que tomaria conta dos anos seguintes. Um simples acorde de baixo conduz o ouvinte a todas as faixas do disco. Desde a primeira, pontuada por uma intervenção vocal de Coltrane, que recita como um mantra o título do álbum, até a última e impressionante faixa, quando Elvin Jones faz de sua bateria um vulcão, enquanto Coltrane no sax-tenor termina sua “reza musical” com sucessões rápidas de notas agudas e graves, criando planos sonoros em permanente colisão. No final de tudo, o ouvinte é tomado pela necessidade de soltar um grande suspiro.

No entanto, como o próprio Coltrane explicou, o “misticismo” contido em A Love Supreme responde à necessidade de recuperar a musicalidade dos rituais religiosos africanos, perdidos por séculos de opressão da escravidão dos negros norte-americanos. Além disso, Coltrane gostava de dizer que, ao gravar um disco, tinha na cabeça o físico Albert Einstein, de quem era fã. Extravagância? Talvez não. O saxofonista gostava de associar a música à matemática, à forma como os intervalos afetam alguns acordes e como poderia ser usada para criar uma nova ordem musical.

Miles Davis, que não era dado a muitos elogios aos seus contemporâneos, após ouvir A Love Supreme reconheceu em sua biografia que Coltrane era na ocasião a maior referência cultural para os jovens negros americanos. Dizia que o grupo de Coltrane estava para os Panteras Negras, da mesma forma que ele estivera para o povo negro que lutava nos anos 1950 contra as absurdas leis de segregação racial vigentes em vários lugares dos EUA.

A Love Supreme vendeu mais de 100 mil cópias em um ano e abriu o caminho para um novo estilo, o free-jazz. A partir de então o jazz nunca mais seria o mesmo. As regras tradicionais da harmonia foram subvertidas e Coltrane mergulhou em trabalhos cada vez mais intrincados, viscerais, e que afugentariam muitos dos seus fãs. Consciente disso, o músico respondia que seu compromisso maior era com o desenvolvimento da música. Dessa época, seus álbuns mais conhecidos foram Meditations e Ascension, ambos de 1965.

Nos últimos anos de vida, sua ligação com a vanguarda se torna maior, quando se une a músicos “free”, como os sax-tenoristas Archie Shepp e Pharoah Sanders, entre outros.

Coltrane morreu prematuramente, em 1967, de câncer no fígado, antes de realizar seu sonho de conhecer a África. A morte de Coltrane privou o jazz de uma de suas figuras mais criativas do gênero, justamente num momento crucial de grandes inovações. Nas décadas seguintes, suas experiências jazzísticas se perderam, principalmente após a tentativa de vários músicos de jazz, como Miles Davis, de fundir o gênero com o rock e a música pop.

A linguagem musical de Coltrane é um convite a fugir do lugar comum e uma experiência fascinante de renovação dos conceitos sobre a sonoridade. Uma viagem musical que certamente vai causar fortes “impressões”.

Assista aos vídeos:

  • My Favorite Things
  • Naima

    DISCOGRAFIA

    Solo:
    Lush Life (1957)
    Blue Train (1957)
    Soultrane (1958)
    Settin’ The Pace (1958)
    Black Pearls (1958)
    Standard Coltrane (1958)
    Bahia (1958)
    Coltrane Time (1958)
    My Favorite Things (1960)
    Africa/Brass (1961)
    Olé Coltrane (1961)
    Live At The Village Vanguard (1961)
    Impressions (1961)
    Ballads (1961)
    Afro Blue Impressions (1963)
    A Love Supreme (1964)
    Transition (1965)
    Meditations (1965)
    Sun Ship (1965)
    Kulu Se Mama (1965)
    Expression (1967)

    Parcerias:
    Com Miles Davis (como músico fixo da banda de Davis)

    Miles (1955)
    Cookin’ (1956)
    Relaxin’ (1956)
    Workin’ (1956)
    Steamin’ (1956)
    Round About Midnight (1956)
    Milestones (1958)
    Miles And Coltrane (1958)
    58 Sessions (1958)
    Compact Jazz/Miles Davis (1958)
    Mostly Miles (1958)
    Live In New York (1958)
    Kind Of Blue (1959)
    On Green Dolphin Street (1960)
    Live In Zurich (1960)
    Miles Davis In Stockholm (1960)

    Com Miles Davis (como convidado)
    Some Day My Prince Will Come (1961)
    Circle In The Round (1961)

    Com Sonny Rollins
    Tenor Madness (1956)

    Com Thelonious Monk
    Thelonious Himself (1957)
    Thelonious Monk With John Coltrane (1957)
    Monk’s Music (1957)
    Live At The Five Spot Discovery! (1958)
    The Complete Riverside Recordings (1958)
    The Complete Blue Note Recordings (1958)

    Com Cannonball Adderley
    Cannonball & John Coltrane (1959)

    Com Milt Jackson
    Bags & Trane (1959)

    Com Eric Dolphy
    John Coltrane Quartet With Eric Dolphy (1961)
    John Coltrane Meets Eric Dolphy (1961)

    Com Duke Ellington
    Duke Ellington & John Coltrane (1962)