A doença de Sharon tira de cena um dos piores carrascos que o povo palestino já teve de enfrentar na luta por recuperar seus direitos históricosPreso a uma cama, depois de um derrame cerebral, o primeiro ministro de Israel Ariel Sharon dificilmente voltará à política. Sai com a auréola de “grande pacificador”, “estrategista determinado e insubstituível”, “pai da política de convivência pacífica entre judeus e palestinos”. A verdade é que Sharon foi, literalmente, um criminoso de guerra, responsável por genocídios inimagináveis contra a humanidade e, particularmente, sobre o povo palestino. O “grande pacificador” sai da vida pública deixando atrás de si um enredo de guerras, um rastro de sangue, uma trajetória de desprezo pelos mais elementares direitos humanos, que desmascaram os reais interesses de Israel no Oriente Médio. Mais que “um lar para o povo judeu”, o que Sharon e seu amigo do peito George W. Bush tentavam era consolidar o estado gendarme como posto avançado do imperialismo no mundo árabe. E para isso estão dispostos a continuar a limpeza étnica que garanta a maioria judaica desse Estado na ponta do fuzil.

Sharon sempre foi um militar entregue de corpo e alma à consolidação de Israel e a eliminação dos palestinos, desde os idos de 1967, quando general do Exército de Israel, comandou a usurpação do Sinai durante a Guerra dos Seis Dias. Trabalhou para tentar convencer o mundo inteiro do direito de Israel à existência e de que a única forma de fazer isso era eliminando os palestinos. Apoiou-se conscientemente no mito sionista de que Israel fora fundado em 1948 sobre uma “terra sem povo”, que na verdade era habitada por milhões de palestinos, massacrados e espoliados pelo “povo sem terra”. Montado nessa história fantástica, Ariel Sharon foi sem dúvida um dos mais adequados personagens da saga sionista por continuar achando possível construir e manter um país em cima de um vulcão incandescente.

Sharon encerra sua vida pública sem ter conseguido realizar sua mais incrível missão: garantir a segurança de Israel sem ser ameaçado pela Intifada. Ele não só não atingiu o que queria como os sionistas dependem cada vez mais do enorme respaldo das armas e do dinheiro dos Estados Unidos, mais de três bilhões de dólares anuais, além do apoio do imperialismo europeu.

A trajetória de um carrasco
Ariel Sharon sempre depositou toda confiança na força das armas. Mesmo agora, quando diziam que buscava a negociação e o diálogo com os palestinos, ele sempre tinha embaixo da mesa uma arma apontada para os adversários. Essa era a sua “política”. E como dizia Lenin, a guerra é a continuação da política por outros meios. Era o que Sharon mais sabia fazer. E se preparou coerentemente para isso, porque sempre teve claro que sem a força das armas era impossível manter Israel de pé sobre terras usurpadas. E nesse ponto foi uma das figuras que mais combinou com o caráter militarista do próprio Estado de Israel, com exceção talvez de Moshe Dayan, o general que encarnou os primeiros anos de construção do país sobre os cadáveres de homens, mulheres e crianças palestinos.

Os últimos setenta anos de movimento sionista, que são os anos de vida de Sharon, foram anos de violência e destruição, de massacres e humilhações contra o povo palestino. Sharon é soldado desde os 14 anos, quando entrou na Haganah, o corpo militar precursor do exército israelense. De lá até hoje, muito sangue correu debaixo da ponte. Como diz Agustín Velloso, ninguém foi capaz de dar uma cifra nem sequer aproximada do número de mortos sobre os quais ele construiu sua carreira militar e política. No mesmo artigo, divulgado pelo site Rebelión (19/1/06), Velloso enumera alguns dos crimes de Sharon, avisando que é uma missão quase impossível dar uma cifra exata daqueles que pereceram sob suas mãos ou sob suas ordens. “Aos mortos causados por suas próprias mãos (mais de 50 no massacre dos moradores da aldeia de Kibiyeh, em 1953), os causados pelos soldados às suas ordens no exército e no governo (milhares de árabes nas guerras contra os países vizinhos do Oriente Médio na segunda metade do século XX), os mortos na repressão policial e do exército nos Territórios Ocupados (cerca de 4 mil palestinos durante os cinco anos da última Intifada, provocada por ele mesmo na Mesquita de Al Aqsa, em Jerusalém, apesar de serem muitos mais nas quase quatro décadas de ocupação ilegal da Palestina) e os assassinatos políticos cometidos pelo Mossad (a polícia secreta israelense, que obedece às ordens do governo, ou seja, de Sharon) em outros países (na Noruega, em 1974, em Túnes, em 1988, na Jordânia em 1997 etc), os milhares de refugiados palestinos que morreram em Sabra e Shatila, no Líbano, em 1982, quando Sharon era comandava o Exército israelense. Campanhas bélicas, bombardeios de civis em suas cidades, assassinatos de políticos e líderes da resistência, torturas cruéis a prisioneiros, demolição de casas com seus habitantes dentro, repressão selvagem (cerca de 700 menores palestinos foram assassinados na segunda Intifada segundo as próprias fontes israelenses) e indução ao assassinato, Sharon e o sionismo nunca perderam uma oportunidade de aterrorizar os palestinos”.

O plano atual de Sharon: separar os palestinos
Com esse curriculum, Sharon foi conquistando popularidade entre o povo israelense, que via nele um governante seguro, um líder moderado, em quem podiam confiar para levar adiante o mito sionista. Tanto que obteve uma vitória arrasadora nas eleições de 2003 e liderava as pesquisas de opinião para as próximas eleições, em março.
Mas “convivência pacífica entre dois povos” é o que ele menos buscou. Sua política parte da constatação de que Israel não pode manter eternamente uma situação em que dentro do país há cinco milhões de palestinos, sem direitos, e integrá-los ameaçaria a própria concepção sionista de estado judeu. Só há dois caminhos para Israel: expulsar os palestinos ou separá-los. A ultradireita abertamente fascista defende a expulsão em massa, hipocritamente chamada de “transferência” dos palestinos para a Jordânia. Mas o custo político é muito alto e o único que continuou defendendo isso foi o Likud de Benjamin Netaniahu, que votou contra a retirada dos assentamentos judeus da Faixa de Gaza e acabou por romper com o governo de Sharon, seu antigo correligionário.

Em vez de expulsar os palestinos, a política de Sharon era mais realista e conforme os Acordos de Oslo e o assim chamado Mapa do Caminho. Previa sua separação em pequenos territórios em menos de 15% da Palestina e a retirada dos judeus da Faixa de Gaza, passando seu controle para a Autoridade Palestina. Isso respondeu também a uma questão econômica, porque estava ficando cada vez mais caro para o governo israelense proteger militarmente os colonos em Gaza. Sharon também não abria mão da anexação de Jerusalém e toda a terra em volta de Israel, para varrer dali ou reduzir drasticamente os habitantes árabes e cercar tudo com o Muro da Separação. Com isso, a idéia dos “dois estados” caiu por terra, sem pena nem glória.

Em síntese, Sharon estava reeditando a política de criar bantustões, territórios desmembrados com autoridades locais para controlar o povo e falar em nome dele. Uma medida que foi usada pelo governo branco na África do Sul (o apartheid) e que não tem nada a ver com um “estado palestino real” e sim com verdadeiros guetos de miséria cercados pelos soldados israelenses, que atiram para matar ante qualquer movimento suspeito. A política de Sharon, nesse sentido, não tem nada de novo. Ela vem desde 1993, com a assinatura dos chamados Acordos de Oslo, negociados em segredo entre o governo israelense e Yasser Arafat, com o patrocínio da Casa Branca. O que preparou o terreno para esses acordos foi a mudança na estratégia palestina com a decisão da maioria do Congresso Nacional Palestino, dirigido por Arafat, em 1988, de reconhecer o direito do Estado de Israel à existência e abrindo mão dos direitos históricos e legítimos do povo palestino de reaver a integridade de seu território. Agora essa política tem continuidade com os correligionários de Sharon que integram o Kadima, partido de centro direita criado pelo próprio Sharon, quando rompeu com o Likud, e conta com o apoio de Abu Mazen, da Autoridade Palestina, e da liderança colaboracionista da Al Fatah.

Mas os defensores dessa política estão encontrando problemas dentro dos territórios ocupados. Tudo indica que as próximas eleições legislativas palestinas, marcadas para o dia 25, levem as forças apoiadas por Mazen a ficarem em uma difícil situação. Ele sofre inclusive revoltas dentro de seu próprio partido, com ocupação de postos eleitorais, enfrentamentos entre grupos armados e outros conflitos. A própria retirada de Gaza foi vista e comemorada como fruto da resistência palestina e não de uma “negociação de paz”.

A política de Sharon tem continuidade com Ehud Olmert, seu sucessor, e o Kadima, que é sustentado por Bush e todo o imperialismo europeu, como demonstra a entrada nele de Shimon Peres. Sendo assim, a tendência mais provável é a polarização e a continuidade da resistência palestina, por mais que as correntes islamistas, como o Hammas, falem em fazer acordos e baixar as armas.

A saída de Sharon do cenário político sem ter conseguido uma solução para o conflito mesmo com o interminável rastro de sangue que foi deixando atrás de cada um de seus passos durante todos esses anos, deve fazer os trabalhadores e povos do mundo inteiro refletirem sobre algumas questões. O papel chave do imperialismo na região, a inviabilidade da política dos “dois estados”, adotada pela AP tornando letra morta os direitos históricos e inalienáveis dos palestinos, os Acordos de Oslo e seus bantustões, que na prática já infernizam a vida dos palestinos e os submetem a condições de barbárie. Mas, sobretudo, os trabalhadores e povos do mundo inteiro têm de refletir sobre a necessidade imperiosa da revolução socialista, como único instrumento para derrotar de vez o imperialismo na região. E hoje ela se concretiza no apoio à Intifada e à resistência palestina.

A força das armas na qual Sharon sempre depositou confiança pode ser eficaz para os opressores somente enquanto a resistência do outro lado não se torna tão estendida e constante como a Intifada palestina. O sentimento anti-Israel vem crescendo no mundo inteiro, já que suas ações contra as população palestina e o papel de Israel como gendarme na região despertam cada vez mais o repúdio entre as massas árabes.

No Iraque, a resistência às tropas invasoras, que entraram lá chutando a porta, também não dá trégua. O sentimento antiimperialista se generaliza, expressando-se em uma repulsa à colonização militar e econômica em várias regiões do mundo, que além do sangue e dos massacres, traz outro tipo de desgraça, mais lenta, mas tão letal quanto a primeira: a fome, a espoliação de suas riquezas, a submissão.

Essa é uma lei de ferro: nenhum povo pode viver em paz se é obrigado a oprimir outro povo. E o imperialismo, em seu afã por controlar regiões estratégicas, tanto econômicas como políticas, usa as populações locais como bucha de canhão.

É o que ocorre em Israel. É possível a paz no Oriente Médio enquanto existir o Estado judeu? A resposta a essa pergunta está na própria natureza do Estado de Israel, um estado artificial, enclave militar do imperialismo norte-americano erigido sobre um território ocupado. Sua devolução, portanto, é condição imperiosa para que Israel saia de cena e dê lugar a uma Palestina laica, democrática e não racista, onde aí sim, judeus e palestinos possam viver em paz, sem que um precise oprimir o outro.

Essa é uma batalha possível, a única saída verdadeiramente possível, por mais dura que seja. E os jovens combatentes da Intifada precisam mais do que nunca do apoio dos trabalhadores e povos do mundo inteiro para levá-la adiante.

A doença de Sharon tira de cena um dos piores carrascos que o povo palestino já teve de enfrentar na luta por recuperar seus direitos históricos. Por isso, é compreensível a alegria que os palestinos vêm demonstrando nas ruas, embora não se deva esquecer que sua política vai continuar, pelas mãos do Kadima e seus sustentáculos imperialistas, e que só a mobilização revolucionária dos palestinos e todos os povos do Oriente Médio pode derrotá-la definitivamente.